Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo

 

 

Protocolado n. 118.732/13

 

 

 

 

 

Ementa: Constitucional. Ação direta de inconstitucionalidade. Art. 2º da Lei n. 3.921, de 12 de dezembro de 2012, do Município de São Roque. Conselho Tutelar. prorrogação de mandato. Ofensa ao princípio Democrático. Invasão da competência da União para, concorrentemente com os Estados e Distrito Federal, legislar sobre proteção à Infância e à Juventude.

 

 

                   O Procurador-Geral de Justiça do Estado de São Paulo, no exercício da atribuição prevista no art. 29, I, da Lei n. 8.625, de 12 de fevereiro de 1993 (Lei Orgânica Nacional do Ministério Público), no art. 103, II, da Lei Complementar Estadual n. 734, de 26 de novembro de 1993 (Lei Orgânica do Ministério Público de São Paulo), e no art. 90, III, da Constituição do Estado de São Paulo, em conformidade com o disposto nos arts. 125, § 2º e 129, IV, da Constituição Federal, com amparo nas informações colhidas no incluso protocolado, vem, respeitosamente, perante esse Egrégio Tribunal de Justiça, promover a presente AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE em face do artigo 2º da Lei nº 3.921, de 12 de dezembro de 2012, do Município de São Roque, pelos fundamentos a seguir expostos:

I – O ATO NORMATIVO IMPUGNADO

 

1.                A Lei nº 3.921, de 12 de dezembro de 2012, tem, com o nosso destaque, a seguinte redação:

 

“Art. 1º. Os artigos 10 e 19, da Lei nº 3.391, de 16 de dezembro de 2009, passam a vigorar com a seguinte redação:

‘Art. 10. O Conselho Tutelar é órgão permanente e autônomo, não jurisdicional, encarregado por zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente, composto de 5 (cinco) membros titulares, para mandato de 4 (quatro) anos, permitida uma recondução.

Art. 19. A eleição para conselheiro tutelar ocorrerá no primeiro domingo do mês de outubro do ano subsequente ao da eleição presidencial.

Parágrafo único. A posse dos conselheiros tutelares ocorrerá no dia 10 de janeiro do ano subsequente ao pleito de escolha.’

Art. 2º. Os mandatos dos atuais conselheiros tutelares durarão até a posse dos conselheiros eleitos, na forma do artigo 19, da Lei nº 3.391, de 16 de dezembro de 2009, com redação introduzida por esta lei.

Art. 3º. Esta lei entra em vigor na data de sua publicação”.

 

 

2.                Referido ato normativo, fruto do Projeto de Lei nº 77/12, de autoria do Poder Executivo, visou promover, malgrado se excedesse, a adequação da Lei Municipal nº 3.391, de 16 de dezembro de 2009, que dispõe sobre a política municipal de atendimento dos direitos da criança e do adolescente, à Lei Federal nº 12.696, de 25 de julho de 2012, que alterou dispositivos do Estatuto da Criança e do Adolescente, in verbis:

 

“Art. 1º Os arts. 132, 134, 135 e 139 da Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente) passam a vigorar com a seguinte redação:

Art. 132. Em cada Município e em cada Região Administrativa do Distrito Federal haverá, no mínimo, 1 (um) Conselho Tutelar como órgão integrante da administração pública local, composto de 5 (cinco) membros, escolhidos pela população local para o mandato de 4 (quatro) anos, permitida 1 (uma) recondução, mediante novo processo de escolha’ (NR)

Art. 134. Lei municipal ou distrital disporá sobre o local, dia e horário de funcionamento do Conselho Tutelar, inclusive quanto à remuneração dos respectivos membros, aos quais é assegurado o direito a:

I – cobertura previdenciária;

II – gozo de férias anuais remuneradas, acrescidas de 1/3 (um terço) do valor da remuneração mensal;

III – licença-maternidade;

IV – licença- paternidade;

V – gratificação natalina.

Parágrafo único. Constará da lei orçamentária municipal e da do Distrito Federal previsão dos recursos necessários ao funcionamento do Conselho Tutelar e à remuneração d formação continuada dos conselheiros tutelares’ (NR).

Art. 135. O exercício efetivo da função de conselheiro constituirá serviço público relevante e estabelecerá presunção de idoneidade moral.

Art. 139.........................................

§ 1º O processo de escolha dos membros do Conselho Tutelar ocorrerá em data unificada em todo o território nacional a cada 4 (quatro) anos, no primeiro domingo do mês de outubro do ano subsequente ao da eleição presidencial.

§ 2º. A posse dos conselheiros tutelares ocorrerá no dia 10 de janeiro do ano subsequente ao da escolha.

§ 3º No processo de escolha dos membros do Conselho Tutelar, é vedado ao candidato doar, oferecer, prometer ou entregar ao eleitor bem ou vantagem pessoal de qualquer natureza, inclusive brindes de pequeno valor’ (NR)

Art. 2º (VETADO)

Art. 3º Esta lei entra em vigor na data de sua publicação.”

 

3.                A lei federal, em linhas gerais, aumentou de 03 para 04 anos o período do mandato do conselheiro tutelar, estendeu aos Conselheiros Tutelares alguns direitos sociais previstos no artigo 7º da Constituição Federal e unificou a data do processo de escolha dos conselheiros tutelares, determinando que a eleição passará a ocorrer a cada quatro anos, no primeiro domingo do mês de outubro do ano subsequente ao da eleição presidencial.

 

II – O parâmetro da fiscalização abstrata de constitucionalidade

 

4.                A autonomia municipal é condicionada pelo art. 29 da Constituição da República. O preceito estabelece que a Lei Orgânica Municipal e sua legislação deve observância ao disposto na Constituição Federal e na respectiva Constituição Estadual, sendo reproduzido pelo art. 144 da Constituição do Estado.

 

5.                Eventual ressalva à aplicabilidade das Constituições federal e estadual só teria, ad argumentandum tantum, espaço naquilo que a própria Constituição da República reservou como privativo do Município, não podendo alcançar matéria não inserida nessa reserva nem em assunto sujeito aos parâmetros limitadores da auto-organização municipal ou aqueles que contêm remissão expressa ao direito estadual.

 

6.                Posta essa premissa, o artigo 2º da Lei Municipal nº 3.921, de 12 de dezembro de 2012, é incompatível com os seguintes dispositivos da Constituição Federal, de observância obrigatória nos municípios:

 

“Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado  Democrático de Direito e tem como fundamentos:

(...)

Parágrafo Único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.”

 

“Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre:

(...)

XV – proteção à infância e à juventude”

 

A – DA VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DEMOCRÁTICO.

 

7.                Os princípios fundamentais da Constituição Federal, segundo José Afonso da Silva, podem ser assim discriminados: (a) princípios relativos à existência, forma e tipo de Estado; (b) princípio relativo à forma de governo; (c) princípio relativo à organização dos Poderes; (d) princípios relativos à organização da sociedade; (e) princípios relativos à vida política; (f) princípios relativos ao regime democrático – princípio da soberania popular, princípio da representação política e princípio da participação popular direta (art. 1º, parágrafo púnico); (g) princípios relativos à prestação positiva do Estado; e (h) princípios relativos à comunidade internacional (in Comentário Contextual à Constituição, Malheiros, 7ª edição, pagina 31).

 

8.                Discorrendo sobre o princípio democrático, afirma o mestre que “Democracia é conceito histórico. Não sendo, por si, um valor-fim, mas meio e instrumento de realização de valores essenciais de convivência humana, que se traduzem basicamente nos direitos fundamentais do homem, compreende-se que a historicidades destes a envolva na mesma medida, enriquecendo-lhes o conteúdo a cada etapa do evolver social, mantido sempre o princípio básico de que ela revela um regime político em que o poder repousa na vontade do povo. Sob esse aspecto, a democracia não é um mero conceito político abstrato e estático, mas é um processo de afirmação do povo e de garantia dos direitos fundamentais que o povo vai conquistando no correr da história”.

 

9.                E remata o renomado constitucionalista: “O povo é a fonte primária do poder, que caracteriza o princípio da soberania popular, fundamento do regime democrático (...) É no regime de democracia representativa que se desenvolvem a cidadania e as questões da representatividade, que tende a fortalecer-se no regime de democracia participativa. A Constituição combina representação e participação direta, tendendo, pois, para a democracia participativa. É o que desde o parágrafo único do art. 1º já está configurado, quando ai se diz que ‘todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos , [democracia representativa] ou diretamente’ [democracia participativa]. Consagram-se nesse dispositivo os princípios fundamentais da ordem democrática adotada” (Op. cit., pag. 43)

 

10.              No caso em exame, ao prorrogar os atuais mandatos dos Conselheiros Tutelares até a data da 1ª eleição unificada (primeiro domingo do mês de outubro de 2015), o legislador municipal feriu o princípio democrático, ou princípio da soberania popular.

 

11.              Com efeito, se o Estatuto da Criança e do Adolescente determina que os Conselheiros Tutelares sejam escolhidos mediante eleição direta no município, e se todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, disso decorre logicamente que os mandatos dos conselheiros tutelares não poderiam ter sido singelamente prorrogados por meio de lei municipal, havendo induvidosa ofensa ao princípio republicano.

 

12.              Nesse sentido, mutatis mutandis, já decidiu o Supremo Tribunal Federal:

 

“EMENTA: - Prorrogação do mandato do Governador e Vice-Governador de Minas Gerais, por lei constitucional votada pela Assembleia Legislativa do Estado. Contraria a constituição da República o ato legislativo, porque atenta contra o princípio da forma republicana representativa e o princípio democrático da temporariedade das funções eletivas. As assembleias legislativas estaduais não têm o poder de substituir o eleitorado, votando leis que substituam as eleições. Procedência da Representação.

(...)

O Supremo Tribunal, em memorável acórdão, de que foi relator o nosso eminente colega Ministro Cândido Motta Filho, (Representação nº 322 de Goiás, julgada em 18-9-1957) firmou sua jurisprudência no sentido de que a prorrogação de mandatos fere a forma republicana representativa e o princípio democrático da temporariedade das funções eletivas. Tratava-se da prorrogação do mandato do ex-governador de Goiás, do vice-governador e prefeitos daquele Estado, em 1957. O então Procurador Geral da República, Dr. Carlos Medeiros Silva, também naquele caso, impugnara com veemência a lei constitucional goiana: ‘Na prorrogação do mandato, disse o Procurador Geral de então, visa-se a pessoa determinada e o ato que a confere emana de corpo eleitoral restrito que, segundo a Constituição Federal, não tem poderes para substituir ao eleitorado geral’. E o egrégio relator, em voto magistral, apoiado por todo o Tribunal, acentuou que quem exercita um mandato eletivo, por determinado prazo, tem o seu mandato configurado por esse prazo. Prorrogá-lo é frustrar a sua índole representativa; é retirar do mandato as suas condições e as suas qualidades inerentes e proporcionar com isso, o desrespeito à Constituição. O mandatário atraiçoa o mandante, porque o substitui, sem poderes (...) ‘O que estamos julgando hoje não é apenas o caso de um Estado da Federação. Estão em causa a predominância do princípio republicano representativo em nossa pátria e o resguardo de um mínimo de moral política, sem o qual as nossas instituições democráticas afundarão no desprestígio e na ruína e cedo teríamos de deplorar o seu naufrágio.” (Representação nº 650 – MG, relator Ministro Gonçalves de Oliviera)

 

13.              Em vista disso, requer-se seja declarada a inconstitucionalidade do artigo 2º da Lei Municipal referida por violação do princípio democrático.

 

B – INVASÃO DA COMPETÊNCIA DA UNIÃO PARA, CONCORRENTEMENTE COM OS ESTADOS E O DISTRITO FEDERAL, LEGISLAR SOBRE A PROTEÇÃO À INFÂNCIA E À JUVENTUDE.

 

14.              Não bastasse a ofensa ao princípio da soberania popular, o legislador municipal ainda invadiu a competência normativa da União para, concorrentemente com o Estado, legislar sobre a proteção à infância e à juventude (art. 24, XV, da Constituição Federal).

 

15.              Portanto, o artigo 2º da Lei Municipal é incompatível com a autonomia municipal expressa no art. 144 da Constituição Estadual que reproduz o art. 29 da Constituição Federal.

 

16.              Legislar sobre a periodicidade dos mandatos dos membros do Conselho Tutelar, prorrogando-os, é assunto que não pertence à esfera normativa dos Municípios por não se conter na predominância do interesse local nem se adstringir à suplementação da legislação federal ou estadual na medida do interesse local.

 

17.              É da essência da organização política brasileira o princípio federativo que ilumina a repartição de competências normativas e administrativas entre as unidades federadas.

 

18.              Bem por isso, é cabível o contraste de lei local com a Constituição Federal a partir da norma remissiva contida no art. 144 da Constituição Estadual - que reproduz o art. 29 caput da Constituição Federal – e que determina a observância na esfera municipal, além das regras da Constituição Estadual, dos princípios da Constituição Federal, sendo denominado “norma estadual de caráter remissivo, na medida em que, para a disciplina dos limites da autonomia municipal, remete para as disposições constantes da Constituição Federal”, como averbou o Supremo Tribunal Federal ao credenciar o controle concentrado de constitucionalidade de lei municipal por esse ângulo (STF, Rcl 10.406-GO, Rel. Min. Gilmar Mendes, 31-08-2010, DJe 06-09-2010; STF, Rcl 10.500-SP, Rel. Min. Celso de Mello, 18-10-2010, DJe 26-10-2010).

 

19.              Destarte, é possível o contraste dos preceitos normativos locais com o art. 144 da Constituição Estadual, por sua remissão à Constituição Federal e, em especial, ao art. 24, XV.

 

III – Pedido liminar

 

20.              À saciedade demonstrado o fumus boni iuris, pela ponderabilidade do direito alegado, soma-se a ele o periculum in mora. A atual tessitura da lei municipal apontada como violadora de princípios e regras da Constituição do Estado de São Paulo é sinal, de per si, para suspensão de sua eficácia até final julgamento desta ação, evitando suas nocivas consequências sobre a composição, organização e funcionamento de órgão de capital importância para a proteção da infância e da juventude.

 

21.              À luz deste perfil, requer a concessão de liminar para suspensão da eficácia, até final e definitivo julgamento desta ação, do artigo 2º da Lei n. 3.921, de 12 de dezembro de 2012, do Município de São Roque.

 

IV – Pedido

 

22.              Posto isso, requer o recebimento e o processamento da presente ação para que, ao final, seja julgada procedente para declarar a inconstitucionalidade do artigo 2º da Lei n. 3.921, de 12 de dezembro de 2012, do Município de São Roque.

 

23.              Requer ainda sejam requisitadas informações à Câmara Municipal e ao Prefeito Municipal de São Roque, bem como posteriormente citado o douto Procurador-Geral do Estado para se manifestar sobre o ato normativo impugnado, protestando por nova vista, posteriormente, para manifestação final.

 

                   Termos em que, pede deferimento.

                  

São Paulo, 23 de setembro de 2014.

 

 

 

 

Márcio Fernando Elias Rosa

Procurador-Geral de Justiça

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Protocolado n. 118.732/13

 

 

 

 

 

1.     Distribua-se a petição inicial da ação direta de inconstitucionalidade, em face do artigo 2º da Lei n. 3.921, de 12 de dezembro de 2012, do Município de São Roque, junto ao Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

2.     Oficie-se ao interessado, informando-lhe a propositura da ação, com cópia da petição inicial.

 

                   São Paulo, 23 de setembro de 2013.

 

 

 

 

Márcio Fernando Elias Rosa

Procurador-Geral de Justiça

 

 

 

 

 

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