Excelentíssimo Senhor Doutor Desembargador Presidente do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo

 

 

 

 

 

Protocolado nº 59.020/07

 

 

 

 

Ementa: Constitucional. Administrativo. Ação direta de inconstitucionalidade. Art. 17 da Lei n. 13.637, de 04 de setembro de 2003, do Município de São Paulo, inclusive na redação dada pelo art. 7º da Lei n. 14.381, de 07 de maio de 2007. Servidor Público. Remuneração. Vantagem Pecuniária. Gratificação de nível de assessoria. Fixação aleatória de valor. Instituição desvinculada do atendimento ao interesse público e às exigências do serviço. Ofensa aos princípios de moralidade, razoabilidade, finalidade e interesse público.

1. A instituição de gratificação de nível de assessoria a ocupantes de cargos de provimento em comissão lotados nos gabinetes de Vereador, Membro da Mesa e das Lideranças, em valores fixos a serem definidos a critério do respectivo Vereador, Membro da Mesa ou Líder, é incompatível com a reserva absoluta de lei que domina a remuneração de servidores públicos.

2. Ofende a razoabilidade, a proporcionalidade, a exigência do serviço, a moralidade, a finalidade e o interesse público a instituição de gratificação de nível de assessoria em favor do cargo de provimento em comissão cujo núcleo de funções é o assessoramento.

 

 

 

                   O PROCURADOR-GERAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO, no exercício da atribuição prevista no art. 116, VI, da Lei Complementar Estadual nº 734, de 26 de novembro de 1993, em conformidade com o disposto nos arts. 125, § 2º, e 129, IV, da Constituição Federal, e nos arts. 74, VI, e 90, III, da Constituição do Estado de São Paulo, com amparo nas informações colhidas no incluso protocolado, vem, respeitosamente, perante este Egrégio Tribunal de Justiça, promover a presente AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE em face do art. 17 da Lei n. 13.637, de 04 de setembro de 2003, inclusive na redação dada pelo art. 7º da Lei n. 14.381, de 07 de maio de 2007, do Município de São Paulo, pelos fundamentos a seguir expostos:

I - OS ATOS NORMATIVOS IMPUGNADOS

                   A Lei n. 13.367, de 04 de setembro de 2003, do Município de São Paulo, dispõe sobre a reorganização administrativa da Câmara Municipal de São Paulo e de seu Quadro de Pessoal.

                   Seu art. 17 institui em favor dos ocupantes do cargo de provimento em comissão de Assistente Parlamentar, cuja remuneração é fixada no mesmo diploma legal, a Gratificação de Nível de Assessoria, nos seguintes termos:

Art. 17 - Fica instituída a Gratificação de Nível de Assessoria, que será atribuída aos servidores titulares do cargo de Assistente Parlamentar, em exercício em Gabinete de Vereador, em valores fixos a serem definidos a critério do Vereador.

§ 1º - O limite máximo a ser despendido com o pagamento da Gratificação, por Gabinete de Vereador será a diferença entre a soma dos vencimentos básicos percebidos pelos Assistentes Parlamentares e o limite de custos com estes servidores, por Gabinete de Vereador, correspondente, na data desta lei, a R$ 68.187,60 (sessenta e oito mil, cento e oitenta e sete reais e sessenta centavos), reajustado nos mesmos índices previstos para os reajustes salariais dos servidores da Câmara.

§ 2º - A gratificação ora instituída não se incorpora ou se torna permanente, sob nenhuma hipótese, à remuneração do servidor e tampouco servirá de base de cálculo de qualquer vantagem pecuniária.

§ 3º - Ato da Mesa da Câmara disciplinará os procedimentos administrativos necessários à sua concessão.

§ 4º - Aos servidores afastados de outros órgãos públicos municipais, estaduais e federais ou entidades estatais, em exercício nos Gabinetes indicados no “caput” deste artigo, poderá ser atribuída a gratificação ora criada.

§ 5º - É vedada a instituição, percepção e a extensão da gratificação de que trata este artigo, a servidores que não se encontrem nas condições do “caput” e parágrafo 4º deste artigo, e artigo 31 desta lei.

§ 6º - É vedada a percepção da gratificação de que trata este artigo com a Gratificação de Gabinete ou Gratificação de Apoio Legislativo, ainda que regularmente incorporadas ou tornadas permanentes nos termos da legislação anterior.

§ 7º - Excepcionalmente, para os atuais servidores dos Gabinetes de Vereadores que, legalmente, incorporaram ou tornaram permanente a Gratificação de Gabinete, na nova situação terão o valor a ela correspondente convertido em parcela fixa, irreajustável, enquanto permanecerem em exercício ininterrupto na Câmara Municipal.

§ 8º - A parcela fixa a que se refere o parágrafo anterior deste artigo, bem como os valores percebidos a título de adicional por tempo de serviço e sexta-parte dos vencimentos, de até 02 (dois) servidores por Gabinete de Vereador, ficam, até 31 de dezembro de 2004, excluídos do limite de custos estabelecido pelo parágrafo 1º deste artigo.

                   Referido preceito legal foi parcialmente alterado pelo art. 7º da Lei n. 14.381, de 07 de maio de 2007. Tal preceito ampliou o universo de beneficiários dessa gratificação que antes era restrito aos Assistentes Parlamentares e a partir dele foi destinado a todos quantos exercessem cargos de provimento em comissão nos gabinetes de Vereadores, de Membros da Mesa ou de Lideranças. Eis sua redação:

Art. 7º O “caput” e os §§ 1º,  e  do art. 17 da Lei nº13.637, de 4 de setembro de 2003, alterado pela Lei nº13.950, de 22 de fevereiro de 2005, passam a exibir a seguinte redação:

“Art. 17 Fica instituída a Gratificação de Nível de Assessoria, que será atribuída aos servidores titulares dos cargos de provimento em comissão lotados em Gabinete de Vereador, de Membro da Mesa e das Lideranças, em valores fixos a serem definidos a critério do respectivo Vereador, Membro da Mesa ou Líder. (NR)

§ 1º O limite máximo por Gabinete a ser despendido com o pagamento da Gratificação será:

I - nos Gabinetes de Vereadores: a diferença entre a soma dos vencimentos básicos percebidos pelos Assistentes Parlamentares e o limite de custos com estes servidores, por Gabinete de Vereador, correspondente a R$ 71.564,92 (setenta e um mil, quinhentos e sessenta e quatro reais e noventa e dois centavos), reajustado nos mesmos índices previstos para os reajustes salariais dos servidores da Câmara Municipal;

II - nos Gabinetes dos Membros da Mesa e das Lideranças de Governo e Representações Partidárias: 50% (cinquenta por cento) da soma dos vencimentos básicos percebidos pelos respectivos servidores em cargo de provimento em comissão. (NR)

........................................................................................

§ 7º Excepcionalmente, para os atuais servidores dos Gabinetes de Vereadores que, legalmente, incorporaram ou tornaram permanente a Gratificação de Gabinete, na nova situação terão o valor a ela correspondente convertido em parcela suplementar, enquanto permanecerem em exercício ininterrupto na Câmara Municipal. (NR)

§ 8º A parcela suplementar a que se refere o § 7º deste artigo, bem como os valores percebidos a título de adicional por tempo de serviço e sexta-parte dos vencimentos, ficam excluídos do limite de custos estabelecido pelo inciso I do § 1º deste artigo. (NR)”.

II – O parâmetro da fiscalização abstrata de constitucionalidade

                   O art. 17 da Lei n. 13.637/03, em sua redação original e na que foi dada pelo art. 7º da Lei n. 14.381/07, ambas do Município de São Paulo, contraria frontalmente a Constituição do Estado de São Paulo, à qual está subordinada a produção normativa municipal ante a previsão dos arts. 1º, 18, 29 e 31 da Constituição Federal.

                   Referidos preceitos normativos municipais são incompatíveis com os seguintes preceitos da Constituição Estadual, aplicáveis aos Municípios por força de seu art. 144, e que assim estabelecem:

Artigo 20 - Compete, exclusivamente, à Assembleia Legislativa:

.........................................................................................
III - dispor sobre a organização de sua Secretaria, funcionamento, polícia, criação, transformação ou extinção dos cargos, empregos e funções de seus serviços e a iniciativa de lei para fixação da respectiva remuneração, observados os parâmetros estabelecidos na lei de diretrizes orçamentárias;

.........................................................................................

Artigo 24 - A iniciativa das leis complementares e ordinárias cabe a qualquer membro ou Comissão da Assembleia Legislativa, ao Governador do Estado, ao Tribunal de Justiça, ao Procurador-Geral de Justiça e aos cidadãos, na forma e nos casos previstos nesta Constituição.

........................................................................................

§ 2º - Compete, exclusivamente, ao Governador do Estado a iniciativa das leis que disponham sobre:
1 - criação e extinção de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica, bem como a fixação da respectiva remuneração;

...........................................................................................
Art. 111. A administração pública direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes do Estado, obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, razoabilidade, finalidade, motivação, interesse público e eficiência.

...........................................................................................

Art. 128 – As vantagens de qualquer natureza só poderão ser instituídas por lei e quando atendam efetivamente ao interesse público e às exigências do serviço.

............................................................................................Art. 144 – Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.

                        No caso em foco, a lei institui vantagem pecuniária denominada “Gratificação de Nível de Assessoria” em favor de quem exerce exatamente cargo de provimento em comissão e para o qual já há remuneração básica específica correlata à sua natureza.

                   A instituição de vantagens pecuniárias para servidores públicos só se mostra legítima se realizada em conformidade com o interesse público e com as exigências do serviço, nos termos do art. 128 da Constituição do Estado, aplicável aos Municípios por força do art. 144 da mesma Carta.

                   Ora, a gratificação em cena não atende a nenhum interesse público e tampouco às exigências do serviço. Retrata simplesmente dispêndio público sem causa, o que desperta preocupação, pois, como observa Wellington Pacheco Barros:

“Comungo com o pensamento político moderno de que uma das causas do inchaço da despesa pública é a remuneração com pessoal, que não raramente inviabiliza a tomada de decisões do agente político sobre investimentos de obras públicas de caráter benéfico à população. E uma das causas da despesa pública com pessoal é a atribuição indiscriminada pelo legislador de vantagens pecuniárias a servidor público sem que haja uma contraprestação de serviço e, o que é pior, com o rótulo de permanente e de efeito incorporador ao vencimento, elitizando a administração de existência de remunerações desproporcionais entre o maior e o menor vencimento de um cargo público” (O município e seus agentes, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002, p. 128).

                   Vale lembrar o ensinamento de Hely Lopes Meirelles criticando a excessiva liberalidade da Administração Pública na concessão de vantagens pecuniárias “anômalas”, sem qualquer razão de interesse público:

“Além dessas vantagens, que encontram justificativa em fatos ou situações de interesse administrativo, por relacionadas direta ou indiretamente com a prestação do serviço ou com a situação do servidor, as Administrações têm concedido vantagens anômalas, que refogem completamente dos princípios jurídicos e da orientação técnica que devem nortear a retribuição do servidor. Essas vantagens anômalas não se enquadram quer como adicionais, quer como gratificações, pois não têm natureza administrativa de nenhum destes acréscimos estipendiários, apresentando-se como liberalidades ilegítimas que o legislador faz à custa do erário, com o só propósito de cortejar o servidor público” (Direito Administrativo Brasileiro, São Paulo: Malheiros, 2008, 34ª ed., p. 495).

                   Não se deve olvidar ainda neste concerto clássica admoestação salientando que:

“a imoralidade salta aos olhos quando a Administração Pública é pródiga em despesas legais, porém inúteis, como propaganda ou mordomia, quando a população precisa de assistência médica, alimentação, moradia, segurança, educação” (Maria Sylvia Zanella Di Pietro. Discricionariedade administrativa na Constituição de 1988, São Paulo: Atlas, 1991, p. 111).

                   Não se vislumbra interesse público nem socorro às exigências do serviço na instituição da gratificação que não tem qualquer causa jurídica hígida e significa autêntica liberalidade com o dinheiro público. O art. 128 da Constituição Estadual, norma que descende diretamente dos princípios de seu art. 111, condiciona a criação normativa subordinando a outorga de vantagens aos servidores aos motivos nele indicados (interesse público e exigências do serviço).

                   Não há na vantagem outorgada pelas leis impugnadas qualquer causa razoável a justificar sua instituição se o Assistente Parlamentar tem sua remuneração básica fixada exatamente pela natureza de seu cargo.

                   O preceito legal impugnado vulnera os princípios da moralidade, do interesse público e da finalidade, bem como o da razoabilidade que deve nortear a Administração Pública e a atividade legislativa e que, como aqueles, têm assento no art. 111 da Constituição do Estado, aplicável aos Municípios por força do art. 144 da mesma Carta.

                   Por força desse princípio é necessário que a norma passe pelo denominado “teste” de razoabilidade, ou seja, que ela seja: (a) necessária (a partir da perspectiva dos anseios da Administração Pública); (b) adequada (considerando os fins públicos que com a norma se pretende alcançar); e (c) proporcional em sentido estrito (que as restrições, imposições ou ônus dela decorrentes não sejam excessivos ou incompatíveis com os resultados a alcançar).

                   Nessa análise pormenorizada, infere-se que a gratificação em foco não passa por nenhum dos critérios do teste de razoabilidade: (a) não atende a nenhuma necessidade da Administração Pública, vindo em benefício exclusivamente da conveniência dos servidores públicos beneficiados por essa vantagem pecuniária; (b) é, por consequência, inadequada na perspectiva do interesse público; (c) é desproporcional em sentido estrito, pois cria ônus financeiros que naturalmente se mostram excessivos e inadmissíveis, tendo em vista que não acarretarão benefício algum para a Administração Pública.

                   Não é ocioso obtemperar que a razoabilidade é critério de aferição da constitucionalidade de leis e atos normativos como sumula a jurisprudência:

“(...) TODOS OS ATOS EMANADOS DO PODER PÚBLICO ESTÃO NECESSARIAMENTE SUJEITOS, PARA EFEITO DE SUA VALIDADE MATERIAL, À INDECLINÁVEL OBSERVÂNCIA DE PADRÕES MÍNIMOS DE RAZOABILIDADE. - As normas legais devem observar, no processo de sua formulação, critérios de razoabilidade que guardem estrita consonância com os padrões fundados no princípio da proporcionalidade, pois todos os atos emanados do Poder Público devem ajustar-se à cláusula que consagra, em sua dimensão material, o princípio do ‘substantive due process of law’. Lei Distrital que, no caso, não observa padrões mínimos de razoabilidade. A EXIGÊNCIA DE RAZOABILIDADE QUALIFICA-SE COMO PARÂMETRO DE AFERIÇÃO DA CONSTITUCIONALIDADE MATERIAL DOS ATOS ESTATAIS. - A exigência de razoabilidade - que visa a inibir e a neutralizar eventuais abusos do Poder Público, notadamente no desempenho de suas funções normativas - atua, enquanto categoria fundamental de limitação dos excessos emanados do Estado, como verdadeiro parâmetro de aferição da constitucionalidade material dos atos estatais. (...)” (STF, ADI-MC 2.667-DF, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, 19-06-2002, v.u., DJ 12-03-2004, p. 36).

“(...) SUBSTANTIVE DUE PROCESS OF LAW E FUNÇÃO LEGISLATIVA: A cláusula do devido processo legal - objeto de expressa proclamação pelo art. 5º, LIV, da Constituição - deve ser entendida, na abrangência de sua noção conceitual, não só sob o aspecto meramente formal, que impõe restrições de caráter ritual à atuação do Poder Público, mas, sobretudo, em sua dimensão material, que atua como decisivo obstáculo à edição de atos legislativos de conteúdo arbitrário. A essência do substantive due process of law reside na necessidade de proteger os direitos e as liberdades das pessoas contra qualquer modalidade de legislação que se revele opressiva ou destituída do necessário coeficiente de razoabilidade. Isso significa, dentro da perspectiva da extensão da teoria do desvio de poder ao plano das atividades legislativas do Estado, que este não dispõe da competência para legislar ilimitadamente, de forma imoderada e irresponsável, gerando, com o seu comportamento institucional, situações normativas de absoluta distorção e, até mesmo, de subversão dos fins que regem o desempenho da função estatal. O magistério doutrinário de CAIO TÁCITO. Observância, pelas normas legais impugnadas, da cláusula constitucional do substantive due process of law. (...)” (RTJ 178/22).

                   A doutrina contém lúcida advertência sobre a instituição de vantagens pecuniárias, explicando que:

“as vantagens pecuniárias, sejam adicionais, sejam gratificações, não são meios para majorar a remuneração dos servidores, nem são meras liberalidades da Administração Pública. São acréscimos remuneratórios que se justificam nos fatos e situações de interesse da Administração Pública” (Diógenes Gasparini. Direito Administrativo, São Paulo: Saraiva, 2008, 13ª ed., p. 233).

                   A Gratificação de Nível de Assessoria remunera o Assistente Parlamentar, investido nesse cargo de provimento em comissão, pelo simples fato de ele exercer o assessoramento de membros do Poder Legislativo, o que significa duplicidade se cotejada com a fixação da remuneração própria à natureza cargo.

                   E não obstante o valor de referida gratificação não é fixada em lei, senão por ato individual de cada Vereador, Membro da Mesa ou Líder que foi dotado da ampla e ilimitada discricionariedade para escolha subjetiva, pessoal e sigilosa desse valor.

                   Tal fórmula normativa não observa o quanto disposto nos arts. 20, III e 24, § 2º, 1, da Constituição Estadual, que demandam no tocante à remuneração – e inclusive às vantagens pecuniárias e aos seus respectivos elementos máxime o valor – a observância rígida do princípio da legalidade absoluta (reserva de lei formal).

         A permissão contida na lei em foco que o valor dessa gratificação seja fixado em valores fixos a serem definidos a critério do respectivo Vereador, Membro da Mesa ou Líder, respeitados os limites máximos impostos, ofende os princípios da legalidade, da moralidade e da impessoalidade na Administração Pública, previstos nos arts. 24, § 2º, 1 e 111 da Constituição Estadual, aplicáveis aos Municípios por obra de seu art. 144.

         Com efeito, resulta dos arts. 20, III, 24, § 2º, 1 e 111, da Constituição Paulista, que os vencimentos dos servidores públicos devem ser fixados em lei específica. Nessa compreensão incluem-se as vantagens pecuniárias e seus respectivos valores. A dimensão da reserva de lei - da tradição jurídico-constitucional brasileira (art. 15, n. 17, Constituição de 1824; art. 34, n. 24, art. 72, n. 32, Constituição de 1891; art. 65, IV, Constituição de 1946; arts. 43, V, e 57, II, Constituição de 1967; art. 37, X, Constituição de 1988) - abrange quaisquer espécies remuneratórias e, aliás, quaisquer estipêndios pagos pelo poder público sob qualquer rubrica, alcançando acréscimos e vantagens pecuniários, indenizações, auxílios, abonos.

                   Pela lei local impugnada, todavia, mercê da previsão da vantagem pecuniária, a estipulação de seus valores ficou confiada ao alvedrio do superior hierárquico, descumprindo o princípio da legalidade remuneratória atinente aos servidores públicos (e decorrência do princípio da legalidade administrativa).

         Não obstante, a delegação da eleição do percentual devido a título de gratificação ofende ainda os princípios da moralidade e da impessoalidade, cunhados no art. 111 da Constituição Paulista.

         O esquema normativo impugnado fornece ao superior hierárquico ampla e excessiva discricionariedade, permitindo-lhe aquinhoar, por escolha imotivada ou motivada por critérios alheios ao interesse público primário, alguns servidores credores da gratificação com percentuais maiores ou menores que outros igualmente nessa situação.

         A escolha aleatória, subjetiva, pessoal e diferenciada dos percentuais da gratificação não se amolda às exigências da moralidade e impessoalidade na medida em que é permeável a critérios desprovidos de objetividade, neutralidade, imparcialidade, igualdade e impessoalidade. Na compreensão do princípio da impessoalidade está, entre outros, a matriz da igualdade, repudiando tratamentos discriminatórios desprovidos de relação lógica e proporcional entre o fator de discriminação e a sua finalidade.

         A previsão legal impugnada possibilita a atribuição de diferentes percentuais (referentes à gratificação) sem qualquer critério objetivo ou por critérios sigilosos ou subjetivos, expondo a Administração Pública a tratamentos desigualitários, imorais, desarrazoados, e, sobretudo, distantes do interesse público primário.

         A previsão legal impugnada permite, por exemplo, que uns sejam aquinhoados com maiores percentuais da vantagem pecuniária que outros, mercê da identidade objetiva de situações jurídicas. 

         Neste sentido invoco a jurisprudência:

O tema concernente à disciplina jurídica da remuneração funcional submete-se ao postulado constitucional da reserva absoluta de lei, vedando-se, em conseqüência, a intervenção de outros atos estatais revestidos de menor positividade jurídica, emanados de fontes normativas que se revelem estranhas, quanto à sua origem institucional, ao âmbito de atuação do Poder Legislativo, notadamente quando se tratar de imposições restritivas ou de fixação de limitações quantitativas ao estipêndio devido aos agentes públicos em geral. - O princípio constitucional da reserva de lei formal traduz limitação ao exercício das atividades administrativas e jurisdicionais do Estado. A reserva de lei - analisada sob tal perspectiva - constitui postulado revestido de função excludente, de caráter negativo, pois veda, nas matérias a ela sujeitas, quaisquer intervenções normativas, a título primário, de órgãos estatais não-legislativos. Essa cláusula constitucional, por sua vez, projeta-se em uma dimensão positiva, eis que a sua incidência reforça o princípio, que, fundado na autoridade da Constituição, impõe, à administração e à jurisdição, a necessária submissão aos comandos estatais emanados, exclusivamente, do legislador. Não cabe, ao Poder Executivo, em tema regido pelo postulado da reserva de lei, atuar na anômala (e inconstitucional) condição de legislador, para, em assim agindo, proceder à imposição de seus próprios critérios, afastando, desse modo, os fatores que, no âmbito de nosso sistema constitucional, só podem ser legitimamente definidos pelo Parlamento. É que, se tal fosse possível, o Poder Executivo passaria a desempenhar atribuição que lhe é institucionalmente estranha (a de legislador), usurpando, desse modo, no contexto de um sistema de poderes essencialmente limitados, competência que não lhe pertence, com evidente transgressão ao princípio constitucional da separação de poderes” (STF, ADI-MC 2.075-RJ, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, 07-02-2001, v.u., DJ 27-06-2003, p. 28).

“Em tema de remuneração dos servidores públicos, estabelece a Constituição o princípio da reserva de lei. É dizer, em tema de remuneração dos servidores públicos, nada será feito senão mediante lei, lei específica. CF, art. 37, X, art. 51, IV, art. 52, XIII. Inconstitucionalidade formal do Ato Conjunto n. 01, de 5-11-2004, das Mesas do Senado Federal e da Câmara dos Deputados” (STF, ADI 3.369-MC, Rel. Min. Carlos Velloso, 16-12-2004, DJ 01-02-2005).

“INCONSTITUCIONALIDADE DO ARTIGO 3º, DA LEI Nº 373/02. NORMA REPRISTINADA EM RAZÃO DA DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE DA LEI MUNICIPAL Nº 881/15 QUE A REVOGARA. DELEGAÇÃO AO CHEFE DO PODER EXECUTIVO, PARA CONCEDER GRATIFICAÇÃO DE ATÉ 100% (CEM POR CENTO) SOBRE O VALOR BÁSICO DO CARGO OU EMPREGO, A TODO OCUPANTE DE CARGO PÚBLICO MUNICIPAL, EFETIVO OU EM COMISSÃO, 'DEPENDENDO DA PECULIARIDADE DO CARGO'. AFRONTA AO PRINCÍPIO DA RESERVA LEGAL. ARTIGOS 115, XI, 128 E 144 DA CONSTITUIÇÃO ESTADUAL.  A remuneração dos servidores públicos somente poderá ser fixada ou alterada por lei específica, de iniciativa do prefeito municipal, em se tratando de servidores municipais. 'Lei específica' é a que exclusivamente tem por finalidade a fixação, alteração ou revisão daquelas espécies remuneratórias, não existindo autorização constitucional para o Poder Legislativo delegar tal comando ao Chefe do Executivo local. Discricionariedade atribuída ao prefeito, que afronta o princípio da reserva de lei, bem como os princípios da moralidade, da impessoalidade e da isonomia. infringência aos artigos 115, XI, 128 e144 Constituição Estadual”. (TJSP, ADI 2271032-28.2015.8.26.0000, Rel. Des. Amorim Cantuária, 15-06-2016).

“Ação direta de inconstitucionalidade - Lei Municipal n° 1.860, de 2 9 de março de 1990, do município de Santa Bárbara d'Oeste, que ‘dispõe sobre a reestruturação de cargos e salários, criação e supressão de cargos da Prefeitura Municipal de Santa Bárbara d'Oeste, estabelecendo novo sistema de níveis de vencimentos dos funcionários e servidores municipais, dando outras providências’ – sustentada inconstitucionalidade do artigo 4º - no prever a norma hostilizada que ‘O Chefe do Poder Executivo poderá atribuir por serviços especiais ou funções de confiança ou qualquer outro servidor (...), gratificações, por tempo determinado e sempre a título precário, até o máximo de 50% (cinquenta por cento) do valor de referência das tabelas salariais correspondentes’, está ela a dar ao alcaide o poder reinol, quase divino, de determinar quem receberá a verba, porque a receberá, de quanto ela será, e por quanto tempo a perceberá - vantagem transitória e contingente que se transformou numa permanente e perene, essa circunstância já se afigurando suficiente à configuração de ofensa, pelo dispositivo legal telado, dos princípios da moralidade, razoabilidade e interesse público - realidade de insustentável subsistência, por contrariar também o princípio da eficiência inconstitucionalidade do dispositivo por igual decorrente de violação ao princípio da reserva legal em matéria de fixação de remuneração e vantagens para servidores públicos, na medida em que a fixação da vantagem, no caso, decorre de ato administrativo, e não de lei, o que configura verdadeira delegação legislativa - violação dos artigos 24, § 2°, n° 1, 111 e 128 da CE - indevida a modulação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade do preceito legal vergastado, se foi o alcaide, de um lado, quem provocou situação de insegurança jurídica no dar cunho salarial a gratificação que não deveria tê-lo, excepcional se afigurando sim, de outro, o interesse social, mas dos munícipes, de não verem os servidores municipais percebendo gratificação que deveria ser transitória e contingente, contudo transformada em adicional permanente e perene - ação procedente.” (TJSP, ADI 152.726-0/8-00, Rel. Des. Palma Bisson, 19-08-2009).

“Ação Direta de Inconstitucionalidade – Ato normativo municipal que confere ao Chefe do Poder Executivo a possibilidade de, mediante portaria e a seu alvedrio, conceder gratificações de 20 e até 100% sobre os vencimentos dos servidores – Violação da cláusula da reserva legal, visto que somente por lei, em sentido formal, podem ser fixadas gratificações e vantagens – Precedente do Colendo Supremo Tribunal Federal – Preceito normativo que, ademais, vulnera a moralidade, o princípio da impessoalidade e da razoabilidade – Ofensa aos artigos 5º, 24, § 2º, nº 1, 111, 115, XI, todos da Constituição Estadual, aplicáveis aos Municípios ex vi o artigo 144 da mesma Carta – Inconstitucionalidade do § 1º do artigo 5º da Lei nº 3.122 do Município de Cruzeiro reconhecida – Inconstitucionalidade também do § 2º do mesmo preceito por arrastamento – Ação procedente” (TJSP, ADI 169.057-0/3-00, Órgão Especial, Rel. Des. A. C. Mathias Coltro, 28-01-2009, v.u.).

III – DO PEDIDO LIMINAR

                   À saciedade demonstrado o fumus boni iuris, pela ponderabilidade do direito alegado, soma-se a ele o periculum in mora. A atual tessitura da legislação contestada, apontada como violadora de princípios e regras da Constituição do Estado de São Paulo, é sinal, de per si, para suspensão de sua eficácia até final julgamento desta ação, evitando-se atuação desconforme com o ordenamento jurídico, criadora de lesão irreparável ou de difícil reparação, sobretudo pelo agravo ao erário.

                   À luz desta contextura, requer a concessão de liminar para suspensão da eficácia, até final e definitivo julgamento desta ação, do art. 17 da Lei n. 13.637, de 04 de setembro de 2003, inclusive na redação dada pelo art. 7º da Lei n. 14.381, de 07 de maio de 2007, do Município de São Paulo.

IV - PEDIDO

                   Face ao exposto, requer-se o recebimento e o processamento da presente ação para que, ao final, seja julgada procedente para declarar a inconstitucionalidade do art. 17 da Lei n. 13.637, de 04 de setembro de 2003, inclusive na redação dada pelo art. 7º da Lei n. 14.381, de 07 de maio de 2007, do Município de São Paulo.

                   Requer-se ainda sejam requisitadas informações ao Prefeito e à Câmara Municipal de São Paulo, bem como posteriormente citado o Procurador-Geral do Estado para se manifestar sobre os atos normativos impugnados, protestando por nova vista, posteriormente, para manifestação final.

                   Termos em que, pede deferimento.

                   São Paulo, 17 de janeiro de 2016.

 

Gianpaolo Poggio Smanio

Procurador-Geral de Justiça

 

wpmj

Protocolado nº 59.020/07

 

 

 

 

 

1.      Distribua-se a petição inicial da ação direta de inconstitucionalidade impugnando o art. 17 da Lei n. 13.637, de 04 de setembro de 2003, inclusive na redação dada pelo art. 7º da Lei n. 14.381, de 07 de maio de 2007, do Município de São Paulo, junto ao Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, instruída do protocolado em epígrafe.

2.    Oficie-se à douta Promotoria de Justiça do Patrimônio Público e Social sobre a propositura da ação, com cópia da petição inicial.

3.    Esclareço que promovi a revisão do entendimento anterior, que conduziu ao arquivamento da representação, em razão de sua desconformidade com a jurisprudência dominante.

 

São Paulo, 17 de janeiro de 2017.

 

 

Gianpaolo Poggio Smanio

Procurador-Geral de Justiça

 

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