Excelentíssimo Senhor Doutor Desembargador Presidente do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

 

Protocolado nº 112.907/11

Interessado: Promotoria de Justiça de Caieiras

Assunto: Inconstitucionalidade dos artigos 144, 145, 146 e 147 da Lei n.º 2.418/1994, do Município de Caieiras.

 

 

 

Ementa: Artigos 144, 145, 146 e 147 da Lei n.º 2.418/1994, do Município de Caieiras. Gratificação pela prestação de serviços em regime integral (RI). Vantagem funcional que, na verdade, assemelha-se ao adicional de tempo integral e serve para remunerar servidor que, por determinação da autoridade competente, exerce atividades comuns ou ordinárias em jornada de trabalho superior à constitucionalmente prevista. Dispositivo legal que confere ampla margem de discricionariedade ao administrador público para determinar o enquadramento de servidor no regime integral. Caracterizada, na espécie, a violação dos princípios da reserva legal, independência e harmonia entre os Poderes, legalidade, moralidade, razoabilidade, finalidade e interesse público (CE, artigos 5.º, § 1.º, 19, III, 24, § 2.º, 4, 111, 124, § 3.º, 128 e 144). Acolhimento da representação.

 

 

O PROCURADOR-GERAL DE JUSTIÇA, no exercício da atribuição prevista no artigo 116, inciso VI, da Lei Complementar Estadual n.º 734, de 26 de novembro de 1993 (LOMPSP) e em conformidade com o disposto nos artigos 125, § 2.º e 129, inciso IV, da Constituição Federal, e artigos 74, inciso VI e 90, inciso III, da Constituição do Estado de São Paulo, com base nos elementos de convicção contidos no incluso protocolado (PGJ n.º 112.907/2011), vem perante este Egrégio Tribunal de Justiça promover a presente AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE do inciso I do artigo 144, e do artigo 145, parágrafo único, da Lei n.º 2.418, de 13 de maio de 1994, do Município de Caieiras, este último com a redação dada pela Lei n.º 3.047/2001, e também na sua redação original, e dos artigos 146, caput (expressão: ‘após utilizado acréscimo previsto no artigo anterior’),e 147, caput (expressão: ‘ou com RI’), do aludido Estatuto, pelos fundamentos a seguir expostos:

 

1.      A iniciativa da propositura da presente ação decorre do acolhimento de representação da Promotoria de Justiça de Caieiras na qual se impugnava dispositivo legal (Lei n.º 2.611/1996, artigo 5.º) que autorizou a incorporação da gratificação pela prestação de serviços em regime integral (RI) por servidor que tivesse exercido mandato de Prefeito Municipal, norma essa que contemplava apenas um servidor, mas que foi posteriormente revogada pela Lei n.º 2.792/1998, remanescendo, assim, a necessidade de impugnar a aludida vantagem funcional, que, como será visto a seguir, é incompatível com a Constituição.

2.      As disposições normativas impugnadas na presente ação rezam o seguinte:

 

“Artigo144 – será concedida gratificação:

I – pela prestação de serviços em Regime Integral (RI);

Artigo 145– Ao funcionário que, por determinação da autoridade competente, efetua jornada de trabalho de 200 (duzentas) horas mensais ou de 220 (duzentas e vinte) horas mensais, perceberá sobre o valor de sua referência, um acréscimo de 33% (trinta e três por cento) e 50% (cinquenta por cento), respectivamente. (Redação dada pela Lei n.º 3.047/2001)

Parágrafo único – O servidor que tenha completado ou venha a completar 3 (três) anos ininterruptos ou não, de recebimento da gratificação prevista neste artigo, no desempenho do regime, à seu pedido, terá o acréscimo incorporado à seus vencimentos, não podendo ser suprimido para todos os efeitos legais. (Redação dada pela Lei n.º 4.170/2008)

Artigo 145 – Ao funcionário que, por determinação da autoridade competente, efetuar jornada de trabalho acrescida de duas horas diárias, perceberá sobre seus vencimentos mais 1/3 (um terço). (Redação original)

Parágrafo único – O servidor que tenha completado ou venha a completar 5 (cinco) anos ininterruptos ou não, de recebimento de gratificação prevista neste artigo, no desempenho do regime, à seu pedido, terá o acréscimo de jornada integral, com benefício pecuniário incorporado à seus vencimentos, não podendo ser suprimido para todos os efeitos de direito. (Redação original)

Parágrafo único – O benefício pecuniário de que trata este artigo não se incorporará aos vencimentos do Servidor, podendo ser suprimido a qualquer tempo pela autoridade que o conceder. (Redação dada pela Lei n.º 3.047/2001)

Artigo 146 – O funcionário público ocupante de cargo de provimento efetivo ou comissão, quando convocado para trabalhar em horário diverso de seu expediente, se necessário for, após utilizado acréscimo previsto no artigo anterior, terá direito a gratificação por serviços extraordinários.

Artigo 147 –A gratificação será paga por hora de trabalho, prorrogado ou antecipado, que exceda o período normalou com RI acrescido de 50% (cinquenta por cento) do valor da hora normal de trabalho.”

 

3.      A aludida vantagem funcional é legalmente denominada de “gratificação pela prestação de serviços em regime integral” (RI), mas, em que pese à terminologia adotada, trata-se de vantagem anômala, instituída em frontal desacordo com a Constituição em vigor, máxime com as seguintes disposições:

 

“Artigo 5.º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

§ 1.º - É vedado a qualquer dos Poderes delegar atribuições.

Artigo 19 – Compete à Assembleia Legislativa, com a sanção do Governador, dispor sobre todas as matérias de competência do Estado, ressalvadas as especificadas no art. 20, e especialmente sobre:

III – criação, transformação e extinção de cargos, empregos e funções públicas, observado o que estabelece o art. 47, XIX, ‘b’;

Artigo 24 - .......

.................................................

§ 2.º - Compete, exclusivamente, ao Governador do Estado, a iniciativa das leis que disponham sobre:

................................................

4 – servidores públicos do Estado, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria de civis, reforma e transferência de militares para a inatividade;

Artigo 111 – A administração pública direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes do Estado, obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, razoabilidade, finalidade, motivação e interesse público.

Artigo 124 – Os servidores da administração pública direta, das autarquias e das fundações instituídas ou mantidas pelo Poder Público terão regime jurídico único e planos de carreira.

................................................

§ 3.º - Aplica-se aos servidores a que se refere ao caput deste artigo o disposto no art. 7.º (....) XIII (....) da Constituição Federal.

Artigo 128 – As vantagens de qualquer natureza só poderão ser instituídas por lei e quando atendam efetivamente ao interesse público e às exigências do serviço.”

 

4.      A princípio, verifica-se que os pressupostos legais para o percebimento da “gratificação pela prestação de serviços em regime integral (RI)” são os seguintes: [1] determinação da autoridade competente; [2] jornada de trabalho de 200 (duzentas) horas mensais ou então de 220 (duzentas e vinte) horas mensais.

 

5.      Ocorre, porém, que o regime integralpropriamente dito nada tem a ver com horas trabalhadas além de o horário normal de expediente, pois que, consoante o abalizado magistério de Hely Lopes Meirelles, ‘o que caracteriza o regime de tempo integral é o fato de o servidor só poder exercer uma função ou um cargo público, sendo-lhe vedado realizar qualquer outra atividade profissional particular ou pública.’ (Cf. “Direito Administrativo Brasileiro”, Editora Malheiros, São Paulo, 28.ª edição, 2003, atualizada por Eurico de Andrade Azevedo, Délcio Balestero Aleixo e José Emmanuel Burle Filho, pp. 463/464)

6.      Assim, a despeito da terminologia impropriamente adotada, o que essa lei a bem da verdade instituiu foi uma jornada especial de trabalho, de, respectivamente, 200 (duzentas) e 220 (duzentas e vinte) horas mensais, sem, contudo, determinar quais servidores ou categoria de servidores deverão se submeter ao aludido regime, tarefa que foi delegada à autoridade competente.

7.      É fora de dúvida que a lei pode instituir regime especial de trabalho em prol de certas categorias do funcionalismo (v.g.: professores, telefonistas), matéria concernente ao regime jurídico dos servidores públicos, que é submetida à reserva legal, nos termos do art. 24, § 2.º, 4, da Constituição Paulista.

8.      Na ilustrada dicção de José Celso de Mello Filho, regime jurídico dos servidores públicos “é o conjunto de regras que disciplinam os diversos aspectos das relações, estatutárias ou contratuais, mantidas pelo Estado com os seus agentes. A expressão regime jurídico dos servidores públicos, que é ampla, abrange todas as normas relativas a: a) às formas de provimento; b) às formas de nomeação; c) à realização do concurso; d) à posse; e) ao exercício, inclusive hipótese de afastamento, de dispensa de ponto e de contagem de tempo de serviço; f) às hipóteses de vacância; g) à promoção e respectivos critérios, bem como avaliação do mérito e classificação final (cursos, títulos, interstícios mínimos); h) aos direitos e às vantagens de ordem pecuniária; i) às reposições salariais e de vencimentos; j) ao horário de trabalho e ponto, inclusive regimes especiais de trabalho; k) aos adicionais por tempo de serviço, gratificações, diárias, ajudas de custo e acumulações remuneradas; l) às férias, licenças em geral, estabilidade, disponibilidade, aposentadoria; m) aos deveres e proibições; n) às penalidades e sua aplicação; o) ao processo administrativo.” (Cf. “Constituição Federal Anotada”, Editora Saraiva, São Paulo, 2.ª edição, 1986, comentário ao artigo 57, p. 220, grifei.) 

9.      Como a criação de regimes especiais de trabalho é matéria submetida à reserva legal –neste caso, ao delegar ao Prefeito a tarefa de definir que servidor ou conjunto de servidores será submetido ao novo regime –, a legislação municipal em exame violou o princípio da independência e harmonia entre os Poderes, dado que ao legislador é defeso dispor dos seus próprios poderes.

10.    Nunca é demais lembrar que a Administração Pública direta deve obediência irrestrita aos princípios da legalidade, independência e harmonia entre os Poderes do Estado e aindelegabilidade das funções constitucionalmente confiadas a cada órgão de soberania.

11.    Ora, a lei é uma regra jurídica abstrata e geral, porquanto se destina a regular uma generalidade de pessoas inseridas em certa situação fática. E toda atividade administrativa, destinada ao atendimento do bem-comum, pauta-se pela sujeição do administrador público aos ditames legais, não podendo desobedecê-los, desviar-se deles ou exceder em seu cumprimento. A liberdade de ação administrativa se encontra limitada pelo princípio da legalidade, em razão da garantia aos administrados contra abuso ou excesso de poder. (José Cretella Jr., “Tratado de Direito Administrativo”, Rio de Janeiro, Forense, 1996, Vol. I, p. 18).

12.    O dever de cumprimento da lei vincula o administrador, que não tem permissão para, de acordo com seu arbítrio ou livre vontade, administrar a coisa pública, sob o risco de ser responsabilizado por improbidade administrativa, pois “Administração legítima só é aquela que se reveste de legalidade e probidade administrativas, no sentido de que tanto atende às exigências da lei como se conforma com os preceitos da instituição pública” (Hely Lopes Meirelles, ‘Direito Administrativo Brasileiro’, São Paulo, Malheiros, 1996, p. 83).

13.    Aliás, como proficientementeressaltado por Celso Antonio Bandeira de Mello, “em administração não há liberdade de querer (....) a regra é a ausência de autonomia de vontade” (Cf. “Ato Administrativo e Direitos dos Administrados”, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 1981, p. 13, grifei).

14.    Pode a lei, em determinados casos, fixar a liberdade do administrador em atuar, dentro dos limites que estipula e segundo os critérios de conveniência e oportunidade – que é a discricionariedade – a qual, porém, não se confunde com o agir em desconformidade com a lei ou mesmo sem nenhum parâmetro legal – arbitrariedade – pautado pela própria vontade. Ao tratar do assunto, citando e comentando MONTESQUIEU, Marcelo Caetano (Cf.‘Direito Constitucional – Direito Comparado - Teoria Geral do Estado e Da Constituição – As Constituições do Brasil’. Forense: Rio de Janeiro, 1987, 2ª Ed. Pág.243) registra que a doutrina do filósofo francês e de outros intérpretes de sua tese inscrita no Livro XI do tratado De l’esprit dês lois, tem num de seus principais desideratos “encontrar uma fórmula prática de desconcentrar a autoridade, repartindo-a por vários órgãos de maneira a acautelar e proteger a liberdade individual contra o arbítrio de um governante onipotente”. 

15.    Em razão da repartição de Poderes – rígida determinação das funções dos Poderes Executivo e Legislativo, adotada pela Constituição, para evitar-se o confronto e a sobreposição de um Poder ao outro – é possível verificar as atribuições de cada um dos Poderes, sem olvidar que, muitas vezes, essas funções residem exatamente em garantir o equilíbrio dos órgãos do Estado, com o objetivo concreto de impedir a concentração e o exercício despótico do poder.

16.    Tanto por isso que o Estado de Direito moderno não aceita a atuação livre dos Poderes ou órgãos de soberania constituídos, pois se caracteriza pela supremacia da vontade de seus cidadãos, manifestada por seus representantes e pela atuação dos Poderes com o respeito às suas atribuições (Cf. Manuel Afonso Vaz, “Lei e Reserva da Lei”, Porto, 1992, p. 245). Aqui há que se mencionar, inclusive, o respeito aos limites impostos da atuação administrativa e à primazia da lei.

17.    Em princípio, a Constituição pode destinar a disciplina sobre certo objeto para tratamento legal, seja indicando qual órgão fará a disciplina, seja determinando que o legislador deve disciplinar, exaustivamente, a matéria reservada. É o que a doutrina denomina de reserva legal.

18.    Segundo José Celso de Mello Filho, “o princípio da reserva legal decorre de cláusula constitucional que discrimina as matérias cuja nomeação só pode ser disciplinada, válida e eficazmente, mediante lei formal. O constituinte, ao enunciar a exigência de reserva legal, opera uma separação de matérias, selecionando e indicando aquelas que, por sua natureza, só devam ser tratadas e desenvolvidas por lei formal. A aplicação do princípio da reserva legal importa submeter determinadas categorias temáticas ao domínio normativo da lei. Isso significa que, onde incidir referido princípio, ficará necessariamente excluída, salvo disposição constitucional em contrário, qualquer possibilidade de ingerência normativa do Poder Executivo.” (ob. cit., p. 429).

19.    Na verdade, a reserva legal “comporta non solo lapresenzadellaleggenellamateriariservata, maimponeche essa abiaundeterminatocontenuto, in modo da ridurre e restringerelesceltediscrezionalidell’esecutivo e in generedell´autoritàchiamata a darneapplicazione” (Cf. Federico Sorrentino, “ManualediDirittoPubblico”, Bologna, ilMulino, 1997, p. 145).

20.    Assim, certos temas, porque essenciais para a vida social, são destinados à regulamentação pela lei, que é um instrumento de proteção destes mesmos direitos, diante da manifestação, representada, da vontade popular. E este instrumento pode ser utilizado com a participação de diversos órgãos, a uns definindo a iniciativa, a outros o restante do processo legislativo, ora a exclusividade ou mesmo a concorrência de atividades. Nas palavras de Manuel Afonso Vaz, “no fundo, a reserva da lei significava a exigência de que as matérias impostas ao Poder (Monarca), por razões de Sociedade (de vontade popular), competissem à Representação popular (Parlamento), o que não obstava a que matérias de governo continuassem a se matérias de Governo (Monarca)” (ob. cit., p. 338).

21.    Ao discorrer sobre os poderes e as funções do Estado, Marcelo Caetano (ob. cit., p.245) assinala que “da idéia da colaboração entre órgãos, a cada um dos quais em princípio estaria confiado o desempenho exclusivo de certa função do Estado, passou-se à da divisão dos poderes, ou, mais rigorosamente, à divisão de cada função por vários órgãos distintos, de maneira a ser necessário o concurso e a colaboração deles para a prática de qualquer ato fundamental da vida do Estado. É assim que a função legislativa, por exemplo, pode ser dividida entre o Governo a quem se atribua a iniciativa das leis, o Parlamento que as discuta e vote e o Chefe de Estado que as sancione ou promulgue com direito de veto”.

22.    Logo, ainda que iniciado o processo legislativo pelo Chefe do Poder Executivo, há algumas matérias subtraídas ao arbítrio parlamentar, para sua conversão em lei; esse é mecanismo pelo qual a vontade dos cidadãos se concretiza através dos seus legítimos representantes.

23.    É inegável que a atuação dos Poderes não limita a chamada reserva da lei, assim entendida como um “espaço de expressão política da Representação popular, constituindo matérias subtraídas ao arbítrio do Monarca, porque a se são matérias de lei” (Manuel Afonso Vaz, ob. cit., p. 137), assegurando os direitos fundamentais e permitindo a participação democrática.

24.    Isto porque interessa ao Estado de Direito moderno o respeito a certas matérias que devem ser regulamentadas exclusivamente por lei, excluindo o poder do administrador, seja por limitar a discricionariedade, seja para evitar o arbítrio, circunscrevendo a atividade normativa do Poder Executivo (Federico Sorrentino, Manuale cit., p. 143)

25.    O objetivo da reserva legal é, portanto, delimitar a atividade dos Poderes constituídos, destinando certos temas para a disciplina legal – isto é, uma reserva material ou orgânica da lei – e não para a regulamentação do Chefe do Poder Executivo.

26.    Neste passo, a separação dos poderes é elemento do Estado de Direito, um princípio-valor que extrapola o direito posto, sendo que este deve se conformar com os princípios jurídicos fundamentais.

27.    A reserva de lei pode ser relativa no caso de haver um campo deixado pelo legislador na possibilidade de haver discricionariedade do administrador, ou pode ser absoluta, quando esta possibilidade não existe, restando ao administrador apenas a execução da lei (Federico Sorrentino, Manuale cit., pp. 144-145). Nessa mesma linha, José Celso de Mello Filho (ob. e loc.cits.) preceitua que “há duas modalidades de reserva de lei: (a) reserva absoluta, que não admite disciplinação normativa da matéria, senão mediante lei formal, (b) reserva relativa, que legitima, observados os limites e as condições fixadas previamente em lei, a intervenção normativa do Poder Executivo.”

28.    A criação de regime especial de trabalho e a fixação de vantagens para os servidores públicos devem ser efetivadas por lei, de iniciativa reservada ao Chefe do Poder Executivo e participação do Poder Legislativo, na forma prevista nos artigos 19, inciso III, e 24, § 2º, 4, da Constituição do Estado de São Paulo.

29.    A previsão desta dupla participação consubstancia evidência do princípio da separação dos Poderes, exigindo que a totalidade do tema referente à criação de regime especial de trabalho e à fixação de gratificação seja realizado pelos dois Poderes. Não se pode admitir a inércia voluntária, ou mesmo a proibição de atuar de um dos Poderes em favor de outro que, ao contrário de desenvolver dupla atividade, estará concretizando ofensa ao princípio da indelegabilidade de atribuições.

30.    No caso em análise, o artigo 145 da Lei Municipal n.º 2.418/1994, de Caieiras, simplesmente excluiu a participação necessária do Poder Legislativo na identificação dos servidores ou grupo de servidores a serem submetidos ao regime especial de trabalho e, outrossim, do próprio destinatário da gratificação, concentrando estas atividades apenas no Poder Executivo, dando-lhe amplos poderes para decidir sobre matéria que o constituinte reservou com exclusividade à disciplina normativa da lei formal.

31.    Não bastasse isso, a jornada especial de trabalho instituída no artigo 145 da Lei Municipal n.º 2.418/1994, de Caieiras, é incompatível com o artigo 124, § 3.º, da Constituição do Estado de São Paulo, que manda aplicar aos servidores o disposto no artigo 7.º, XIII, da Constituição Federal, que consagra o direito dos trabalhadores à ‘duração do trabalho normal não superior a oito horas diárias e quarenta e quatro semanais, facultada a compensação de horários e a redução da jornada, mediante acordo ou convenção coletiva de trabalho’.

32.    É evidente que, por razões de interesse público, o servidor poderá excepcionalmente exceder esses limites, prática comum na Administração Pública, mas não é propriamente disso que tratou o dispositivoem exame, ao instituir jornadas especiais de trabalho com durações de 200 (duzentas) e 220 (duzentas e vinte) horas mensais, o que pressupõe que o servidor submetido a tais jornadas, por determinação da autoridade competente, considerando-se que o expediente nas repartições públicas funciona de segunda a sexta-feira, trabalhará 10 (dez) ou 11 (onze) horas diariamente e 50 (cinquenta) ou 55 (cinquenta e cinco) horas semanalmente.

33.    Ou seja, essas jornadas especiais de trabalho excedem os limites constitucionalmente previstos, e não se enquadram nas ressalvas previstas no art. 7.º, XIII, da Constituição Federal, norma que foi expressamente incorporada à Constituição do Estado de São Paulo, por seu art. 124, § 3.º, lembrando que, nos termos da orientação jurisprudencial mais recente do colendo STF, as normas remissivaspodem ser validamente utilizadas como parâmetros do controle de constitucionalidade (Recl. 733/BA, rel. Min. Ilmar Galvão).

34.    Afora isso, cumpre obtemperar que, no seu artigo 128, a Constituição prevê que “as vantagens de qualquer natureza só poderão ser instituídas por lei e quando atendam efetivamente ao interesse público e às exigências do serviço”, mas, neste caso, o benefício instituído não preenche nenhum desses requisitos.

35.    De fato, além de não ser possível identificar o beneficiário da gratificação em exame, matéria sujeita à reserva legal, inclusive por força do disposto no próprio artigo 128 (as vantagens de qualquer natureza só poderão ser instituídas por lei), é bem de ver que a Lei n.º 2.418/1994, no seu art. 146, instituiu a gratificação pela prestação de serviços extraordinários, devida ao servidor convocado para trabalhar em horário diverso de seu expediente, se necessário for, tratando-se de benefício análogo ao ora questionado.

36.    Ora, se o servidor que presta serviços extraordinários já é remunerado por gratificação específica, nada justifica a concessão de outra gratificação pelo mesmo fundamento, a constituir autêntico bis in idem, salvo o excesso de liberalidade com o dinheiro público.

37.    Em defesa da validade dessa norma poder-se-ia alegar que o servidor que recebe a gratificação pela prestação de serviços em regime integral (RI) não faz jus à gratificação pela prestação de serviços extraordinários, salvo se exceder a jornada especial de trabalho prevista no art. 145 da Lei n.º 2.418/1994, mas, com a devida vênia, o que se discute aqui não é a concomitância do pagamento, vedada por lei, mas sim que, na essência, os dois benefícios se equivalem, com a diferença de que no art. 146 da referida lei, que trata da gratificação pela prestação de serviços extraordinários, não existe lacuna, nem delegação de poderes ao administrador público, visto que todos os elementos necessários para a percepção do benefício estão presentes na lei.

38.    Conclui-se, daí, que a gratificação prevista no art. 145 da Lei n.º 2.418/1994 não atende efetivamente ao interesse público e às exigências do serviço, tratando-se, isto sim, de vantagem anômala, a ser paga aleatoriamente, para quem a autoridade determinar, sem nenhum parâmetro legal.

39.    Por derradeiro, o parágrafo único do artigo 145 da Lei n.º 2.418/1994 autoriza a incorporação da aludida vantagem pelo servidor que tenha completado ou venha a completar 3 (três) anos ininterruptos ou não de seu recebimento, previsão absurda e sobremodo ofensivaaos princípios da moralidade, razoabilidade, finalidade e interesse público, à medida que a expressão ‘ou não’ possibilita a incorporação de tal gratificação mesmo por aquele servidor que somente a tenha recebido por curto espaço de tempo (v.g.: 1 mês).         

40.    Em suma, o benefício previsto no artigo 145 da Lei n.º 2.418/1994 é inconstitucional porque: [a] a lei não define que servidor ou grupo de servidores serão submetidos às jornadas especiais de trabalho, delegando essa função ao Executivo, conquanto se trate de matéria sujeita à reserva legal, portanto, indelegável, verificando-se, assim, grave atentado ao princípio da independência e harmonia entre os Poderes; [b] essas jornadasespeciais de trabalho não obedecem os limites do artigo 7.º, inciso XIII, da Constituição Federal; [c] a gratificação pela prestação de serviços em regime integral (RI) não atende às exigências do serviço nem é compatível com o interesse público, constituindo autêntica superfetação, máxime considerando-se a existência de benefício similar, que é pago ao servidor encarregado da prestação de serviços extraordinários. 

41.    Remanesce, no presente caso, a necessidade da concessão de “MEDIDA LIMINAR”. Isso porque, quando se trata do controle normativo abstrato, e uma vez verificada a cumulativa satisfação dos pressupostos legais concernentes ao “fumus boni juris” e ao “periculum in mora”, o poder geral de cautela autoriza a suspensão da eficácia do ato normativo impugnado, até o final julgamento da presente ação direta de inconstitucionalidade.

42.    A plausibilidade jurídica da tese exposta na inicial é evidente, não admitindo maiores questionamentos, ante a adoção, por lei, de previsões e critérios permanentes nitidamente ofensivos aos princípios da reserva legal e da convivência harmônica entre os Poderes do Estado, entendendo-se esta, principalmente, como a vinculação constitucional de cada órgão bem desempenhar suas funções e delas não podendo abdicar em favor de outro órgão, seja expressa ou tacitamente. Com efeito, a forma aberta como foi disciplinada a questão na Lei n.º 2.418/1994, possibilita ao Prefeito Municipal de Caieiras a concessão de gratificação a qualquer servidor, seja em relação a cargos de provimento em comissão ou efetivos. Essa faculdade abusiva outorgada ao Chefe do Poder Executivo, sem qualquer critério ou regramento preestabelecido na norma, possibilita, inclusive, o manejo odioso de benesses salariais ao talante do administrador de momento, fato que deve ser corrigido de imediato, tanto para restauração do princípio da reserva legal, quanto para garantir a regência do princípio constitucional da isonomia entre os servidores municipais.

43.    E, por outro lado, também está delineada a situação de risco, caracterizadora do “periculum in mora”, tanto mais porque na situação dos autos e da disposição inconstitucional da lei impugnada, os cofres públicos estão suportando despesas ilegítimas com seu quadro de servidores, com fulcro só na vontade do administrador e sem avaliação do interesse público e exigência do serviço como critérios válidos para o sistema de concessão de gratificações no serviço público, o que macula, por via de consequência, os princípios da moralidade e da impessoalidade, isso sem falar no caráter alimentar da verba, que é irrepetível, potencializando o risco de dano irreparável ao erário.

Em face do exposto, com o deferimento da medida liminar, requeiro seja autorizado o processamento da presente ação direta, colhendo-se as informações pertinentes do Prefeito e da Câmara de Vereadores de Caieiras, sobre as quais me manifestarei no momento processual oportuno, vindo, afinal, a ser declarada a inconstitucionalidade doinciso I do artigo 144 e dos artigos 145, e seu parágrafo único (na sua redação atual e naquela que será repristinada), 146, caput (expressão: “após utilizado acréscimo previsto no artigo anterio”’), e 147, caput (expressão: “ou com RI”), da Lei Municipal nº 2.418, de 13 de maio de 1994, de Caieiras,por violação ao disposto nos arts. 5º, “caput”, e seu § 1º, 19, III, 24, § 2º, nº 4, 111, 124, § 3.º, 128 e 144, todos da Constituição do Estado de São Paulo.

 

São Paulo, 23 de novembro de 2011.

 

 

Fernando Grella Vieira

Procurador-Geral de Justiça

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Protocolado nº 112.907/11

Interessado: Promotoria de Justiça de Caieiras

Assunto: Inconstitucionalidade dos artigos 144, 145, 146 e 147 da Lei n.º 2.418/1994, do Município de Caieiras.

 

 

 

 

 

 

 

1.     Distribua-se a petição inicial da ação direta de inconstitucionalidade, em face dos artigos 144, 145, 146 e 147 da Lei n.º 2.418/1994, do Município de Caieiras,  junto ao Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

2.     Oficie-se ao interessado, informando-lhe a propositura da ação, com cópia da petição inicial.

3.     Tornem os autos conclusos ao Corpo Técnico para continuidade das apurações.

 

 

 

Fernando Grella Vieira

Procurador-Geral de Justiça

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