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Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo

 

 

 

 

 

Ementa: 1) Inciso VIII do art. 21 da Lei Municipal n. 270-A, de 22.08.94, acrescentado pela Lei n. 1.583-A, do município de São Vicente, que dispõe sobre os requisitos para ser candidato ao Conselho Tutelar; 2) Exigência de que o candidato comprove o exercício de, no mínimo, 2 (dois) anos em entidades devidamente registradas no Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente; 3) Inconstitucionalidade material por ofensa aos princípios constitucionais da isonomia e da razoabilidade; 4) Ação direta ajuizada.

 

 

                   O Procurador-Geral de Justiça de São Paulo, no exercício da atribuição prevista no art. 116, inciso VI, da Lei Complementar Estadual n. 734, de 26 de novembro de 1993 (Lei Orgânica do Ministério Público de São Paulo), e em conformidade com o disposto nos arts. 125, § 2.º, e 129, inciso IV, da Lei Maior, e arts. 74, inciso VI, e 90, inciso III, da Constituição Estadual, com base nos elementos de convicção existentes no incluso protocolado (PGJ n. 72.124/08), vem perante esse Egrégio Tribunal de Justiça promover a presente

 

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE

 

do inciso VIII do art. 21 da Lei Municipal n. 270-A, de 22.08.94, acrescentado pela Lei n. 1.583-A, do município de São Vicente, dispõe sobre os requisitos para ser candidato ao Conselho Tutelar, pelas razões e fundamentos a seguir expostos:

           A Lei Municipal n. 1.583-A, do município de São Vicente, alterou o art. 21 da Lei Municipal n. 270-A, de 22.08.94, que dispõe sobre a política municipal de atendimento e defesa dos direitos da criança e do adolescente e acrescentou o inciso VIII, ora impugnado, que estabelece o seguinte:

VIII – Comprovar o exercício de, no mínimo, 2 (dois) anos em entidades devidamente registradas no Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente;

Como se vê, a lei municipal impugnada por meio da presente ação direta é incompatível com a Carta Paulista, especialmente com os seus arts. 111 e 144 que asseguram o respeito aos princípios da isonomia e da razoabilidade, assim redigidos:

Art. 111 – A administração pública direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes do Estado, obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, razoabilidade, finalidade, motivação e interesse público.

Art. 144 – Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por Lei Orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.

Ocorre que o legislador municipal, ao dispor sobre a política municipal de atendimento e defesa dos direitos da criança e do adolescente e exercer a sua competência de suplementar a legislação federal que regula a matéria, acabou por afrontar os princípios da isonomia e da razoabilidade, conforme restará demonstrado.

 

DO CONSELHO TUTELAR E DO PODER SUPLEMENTAR DO MUNICÍPIO

 

O Conselho Tutelar, nos termos do art. 113 do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei Federal n. 8.69/90), é órgão permanente e autônomo, não jurisdicional, encarregado pela sociedade de zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente, definidos nesta lei.

O art. 133 da Lei Federal citada estabelece quais são os requisitos exigidos para que o cidadão seja candidato a integrar mencionado Conselho.

Reconhece a doutrina a competência do legislador municipal para suplementar a legislação federal, estabelecendo outros requisitos.

Nesse sentido a lição de Wilson Donizeti Liberati e Públio Caio Bessa Cyrino[1][1]:

“A lei federal preocupou-se, tão-somente, em estabelecer os requisitos mínimos de admissibilidade à candidatura dos conselheiros tutelares.

Pelo princípio da municipalização contido no art. 88, I, do ECA, fica a critério do Município suplementar a norma citada, com fulcro no art. 30, II, da CF, para ampliar esses requisitos, adequando-os às peculiaridades locais”.

Reconhece a doutrina, ainda, a possibilidade de que esses requisitos estejam relacionados à experiência no trata com crianças e adolescentes.

Nesse sentido os dispositivos da Constituição Federal a seguir citados:

Art. 24 - Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre:

XV - proteção à infância e à juventude (...)

§ 1.º No âmbito da legislação concorrente, a competência da União limitar-se-á a estabelecer normas gerais.

§ 2.º A competência da União para legislar sobre normas gerais não exclui a competência suplementar dos Estados.

§ 3.º Inexistindo lei federal sobre normas gerais, os Estados exercerão a competência legislativa plena, para atender a suas peculiaridades.

§ 4.º A superveniência de lei federal sobre normas gerais suspende a eficácia da lei estadual, no que lhe for contrário.

Art. 30 - Compete aos Municípios:

I - legislar sobre assuntos de interesse local;

II - suplementar a legislação federal e a estadual no que couber...

Todavia, a autonomia legislativa consagrada aos Municípios não tem caráter absoluto e soberano, pois é limitada por diversos princípios previstos na Constituição do Estado de São Paulo.

           Referidos princípios funcionam como uma limitação à autonomia municipal de autolegislação, consistente na edição de leis municipais sobre áreas que são reservadas à sua competência exclusiva e suplementar.

           Por isso, a autonomia legislativa consagrada aos Municípios está sujeita a algumas regras fundamentais e impostergáveis.

           Nesse contexto, é inconstitucional o dispositivo legal impugnado na presente ação direta, pois, sob o pretexto de agir nos estritos limites de sua autonomia legislativa, o inciso VIII do art. 21 da Lei Municipal n. 270-A, de 22.08.94, acrescentado pela Lei n. 1.583-A, do município de São Vicente, exigiu, de forma irrazoável e ofensiva ao princípio da isonomia, que o candidato ao Conselho Tutelar comprove o exercício de, no mínimo, 2 (dois) anos em entidades devidamente registradas no Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente.

Ocorre que a Constituição do Estado de São Paulo, em seu art. 111, impõe aos Poder Públicos a observância dos mencionados princípios fundamentais, por força do art. 144 da Lei Maior Paulsita.

Pode-se, pois, cotejar o conteúdo normativo do dispositivo legal impugnado aos arts. 111 e 144 da Constituição do Estado e concluir-se pela inconstitucionalidade.

Cabe observar que a Constituição Federal de 1988 contém previsão expressa, no artigo 125, § 2º, para que o constituinte estadual adote o controle abstrato de normas destinado à aferição da constitucionalidade de leis estaduais ou municipais em face da Constituição estadual. Nesta linha, a Constituição do Estado de São Paulo, no art. 74, VI, determina que compete ao Tribunal de Justiça processar e julgar originariamente “a representação de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo estadual ou municipal, contestados em face desta Constituição (...)".

Daí a propositura da presente ação direta de inconstitucionalidade.

 

DA VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA ISONOMIA

           O princípio da isonomia restou ofendido pela dispositivo legal impugnado, uma vez que esse princípio vincula todas as instâncias de poder e tem por função precípua evitar indevidas discriminações, sendo de ser reconhecida a inconstitucionalidade de atos normativos que venham a desrespeitá-lo.

           Nesse sentido decidiu o Pretório Excelso, ao apreciar o Agravo Regimental no Agravo de Instrumento n. 360.461/MG, em que foi Relator o Ministro CELSO DE MELLO (2ª T, julgamento ocorrido no dia 06/12/2005 e publicado no DJe-055, divulg. Em 27-03-2008). Do acórdão, destacamos a seguinte passagem:

“O POSTULADO CONSTITUCIONAL DA ISONOMIA - A QUESTÃO DA IGUALDADE NA LEI E DA IGUALDADE PERANTE A LEI (RTJ 136/444-445, REL. P/ O ACÓRDÃO MIN. CELSO DE MELLO). - O princípio da isonomia - que vincula, no plano institucional, todas as instâncias de poder - tem por função precípua, consideradas as razões de ordem jurídica, social, ética e política que lhe são inerentes, a de obstar discriminações e extinguir privilégios (RDA 55/114), devendo ser examinado sob a dupla perspectiva da igualdade na lei e da igualdade perante a lei (RTJ 136/444-445). A alta significação que esse postulado assume no âmbito do Estado democrático de direito impõe, quando transgredido, o reconhecimento da absoluta desvalia jurídico-constitucional dos atos estatais que o tenham desrespeitado”.

           De lembrar que o Supremo Tribunal Federal tem reafirmado a possibilidade de controle de constitucionalidade por ofensa ao princípio da isonomia. Assim foi afirmado no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 1.655/AP, em que foi Relator o  Ministro MAURÍCIO CORRÊA (Pleno, julgamento ocorrido em 03/03/2004 e publicado no DJ de 02-04-2004, p. 08):

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI ESTADUAL 356/97, ARTIGOS 1º E 2º. TRATAMENTO FISCAL DIFERENCIADO AO TRANSPORTE ESCOLAR VINCULADO À COOPERATIVA DO MUNICÍPIO. AFRONTA AO PRINCÍPIO DA IGUALDADE E ISONOMIA. CONTROLE ABSTRATO DE CONSTITUCIONALIDADE. POSSIBILIDADE. CANCELAMENTO DE MULTA E ISENÇÃO DO PAGAMENTO DO IPVA. MATÉRIA AFETA À COMPETÊNCIA DOS ESTADOS E À DO DISTRITO FEDERAL. TRATAMENTO DESIGUAL A CONTRIBUINTES QUE SE ENCONTRAM NA MESMA ATIVIDADE ECONÔMICA. INCONSTITUCIONALIDADE”.

           A ofensa à isonomia consiste em estabelecer requisito discriminatório, que alija do concurso de ingresso ao Conselho Tutelar cidadãos que preencham os requisitos da Lei Federal, mas que não tenham exercido por, no mínimo dois anos, atividade em entidades devidamente registradas no Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente, o que acaba por restringir indevidamente a competição.

 

DA VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA RAZOABILIDADE

           Mesmo que não se entenda violado o princípio da isonomia, há que se reconhecer a inconstitucionalidade por afronta ao princípio da razoabilidade, que encontra assento no art. 111 da Constituição do Estado de São Paulo.

           Como anota Diogo de Figueiredo Moreira Neto, o princípio da razoabilidade “visa a afastar o arbítrio que decorrerá da desadequação entre meios e fins”, tendo importância tanto quando da criação da norma como quando de sua aplicação. Ademais, prossegue o autor, “o princípio da proporcionalidade, uma vez admitido como um princípio substantivo autônomo, como é considerado na doutrina alemã do Direito Público, e não apenas com o sentido estrito contido no conceito de razoabilidade, prescreve, especificamente, o justo equilíbrio entre os sacrifícios e os benefícios resultantes da ação do Estado” (Curso de direito administrativo, Rio de Janeiro, Forense, 14ª ed., p. 101). Também neste sentido Maria Sylvia Zanella Di Pietro (Direito administrativo, São Paulo, Atlas, 19ª ed., p.95).

           Ainda em sede doutrinária, Gilmar Ferreira Mendes, examinando a aplicação do princípio da proporcionalidade pelo Pretório Excelso, anotou “de maneira inequívoca a possibilidade de se declarar a inconstitucionalidade da lei em caso de sua dispensabilidade (inexigibilidade), inadequação (falta de utilidade para o fim perseguido) ou de ausência de razoabilidade em sentido estrito (desproporção entre o objetivo perseguido e o ônus imposto ao atingido)” (“A proporcionalidade na jurisprudência do STF”, em Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade, São Paulo, Instituto Brasileiro de Direito Constitucional e Celso Bastos Editor, 1998, p. 83).

           No caso, há ausência de razoabilidade em sentido estrito, isto é,  desproporção entre o objetivo perseguido (seleção de cidadão apto para atuar no Conselho Tutelar) e o ônus imposto ao candidato para concorrer ao Conselho (ter atuado em entidade cadastrada pelo Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente).

           Afinal, embora não se negue a competência suplementar do Município, é imperioso que o legislador observe o princípio da razoabilidade ao estabelecer os requisitos para o ingresso na função pública.

           Ocorre que as restrições e exigências emanadas de ato normativo não podem exceder os parâmetros constitucionais, restringindo o acesso para uns e estabelecendo privilégios para outros, os cadastrados.

           Além disso, deve-se observar que o dispositivo impugnado acaba por atentar contra o próprio interesse público ao alijar do concurso público inúmeros cidadãos que tenham atuado na defesa dos direitos da criança e do adolescente, mas que tenham atuado em entidades não cadastradas pelo órgão municipal.

           Além disso, como demonstrou a autora da representação para o ajuizamento da presente ação direta, o dispositivo legal impugnada acaba por obrigar aquele que quer integrar o Conselho Tutelar a integrar uma Entidade, isto é, a se associar, o que não é razoável: “Tal procedimento tirou do cidadão idôneo e atuante que não esteja ligado a uma Entidade o direito de postular uma vaga ao Conselho Tutelar Municipal. São cidadãos que por uma questão de escolha não estão atrelados a uma entidade (associação), direito este estabelecido no art. 5º, XX, da Constituição Federal, que estabelece que ninguém poderá ser compelido a associar-se a qualquer entidade” (fls. 02 do protocolado que acompanha a presente).

           Está demonstrada, portanto, a irrazoabilidade do dispositivo legal impugnado.

 

 

DA LIMINAR

 

           Estão presentes, na hipótese examinada, os pressupostos do fumus bonis iuris e do periculum in mora, a justificar a suspensão liminar da vigência e eficácia do dispositivo legal impugnado pela presente ação direta.

 

           A razoável fundamentação jurídica decorre dos motivos expostos, que indicam, de forma clara, a irrazoabilidade do requisito para integrar o Conselho Tutelar Municipal veiculado pelo dispositivo legal impugnado.

 

           O perigo da demora decorre especialmente da idéia de que sem a imediata suspensão da vigência e eficácia do ato normativo questionado, subsistirá a sua aplicação, com realização de despesas (e imposição de obrigações à Municipalidade), que dificilmente poderão ser revertidas aos cofres públicos, na hipótese provável de procedência da ação direta. Além disso, são evidentes os danos decorrentes da realização de concurso público de ingresso maculado.

 

           A idéia do fato consumado, com repercussão concreta, guarda relevância para a apreciação da necessidade da concessão da liminar na ação direta de inconstitucionalidade. Note-se que, com a procedência da ação, pelas razões declinadas, não será possível restabelecer o status quo ante.

 

           Assim, a imediata suspensão da eficácia do dispositivo legal impugnado evitará a ocorrência de maiores prejuízos.

 

           De resto, ainda que não houvesse essa singular situação de risco, restaria, ao menos, a excepcional conveniência da medida. Com efeito, no contexto das ações diretas e da outorga de provimentos cautelares para defesa da Constituição, o juízo de conveniência é um critério relevante, que vem condicionando os pronunciamentos mais recentes do Supremo Tribunal Federal, preordenados à suspensão liminar de leis aparentemente inconstitucionais (cf. ADIN-MC 125, j. 15.2.90, DJU de 4.5.90, p. 3.693, rel. Min. Celso de Mello; ADIN-MC 568, RTJ 138/64; ADIN-MC 493, RTJ 142/52; ADIN-MC 540, DJU de 25.9.92, p. 16.182).

 

           Diante do exposto, requer-se a concessão de medida liminar para a suspensão imediata do dispositivo legal impugnado.

 

           Requeiro, portanto, o processamento da presente ação direta, notificando-se o Prefeito Municipal e a Câmara de Vereadores de São Vicente para apresentar informações no prazo regimental (art. 669, § 2º), sobre as quais me manifestarei oportunamente, vindo, ao final, a ser declarada a inconstitucionalidade do inciso VIII do art. 21 da Lei Municipal n. 270-A, de 22.08.94, acrescentado pela Lei n. 1.583-A, do município de São Vicente, por violação aos arts. 111 e 144 da Carta Paulista.

São Paulo, 06 de janeiro de 2009.

 

 

 

 

FERNANDO GRELLA VIEIRA

Procurador-Geral de Justiça

 

 


Protocolado PGJ nº 72.124/2008

Interessado: (...)

Assunto: Inconstitucionalidade do inciso VIII do art. 21 da Lei Municipal nº 270-A, acrescentado pela Lei nº 1.583-A, do Município de São Vicente.

 

 

 

 

 

1.         Distribua-se a petição inicial da ação direta de inconstitucionalidade, em face do inciso VIII do art. 21 da Lei Municipal nº 270-A, acrescentado pela Lei nº 1.583-A, do Município de São Vicente, junto ao Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

 

2.         Oficie-se ao interessado, informando-lhe a propositura da ação, com cópia da petição inicial.

 

 

                São Paulo, 6 de janeiro de 2009

 

 

 

FERNANDO GRELLA VIEIRA

Procurador-Geral de Justiça





(2)

Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Autos n. 173.779.0

 

Autor: Procurador-Geral de Justiça

 

Objeto de impugnação: inciso VIII do art. 21 da Lei Municipal n. 270-A, de 22.08.94, acrescentado pela Lei n. 1.583-A, do município de São Vicente

 

 

 

 

Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator

 

 

Colendo Órgão Especial

 

 

A presente ação direta foi ajuizada objetivando a declaração de inconstitucionalidade do inciso VIII do art. 21 da Lei Municipal n. 270-A, de 22.08.94, acrescentado pela Lei n. 1.583-A, do município de São Vicente, que dispõe sobre os requisitos para ser candidato ao Conselho Tutelar.

Requisitadas as necessárias informações, a municipalidade manifestou-se a fls. 234/245.

Devidamente citado, o Procurador-Geral do Estado manifestou-se a fls. 255/257.

É o breve relato.

A presente ação direta é procedente. Vejamos.

A Lei Municipal n. 1.583-A, do município de São Vicente, alterou o art. 21 da Lei Municipal n. 270-A, de 22.08.94, que dispõe sobre a política municipal de atendimento e defesa dos direitos da criança e do adolescente e acrescentou o inciso VIII, ora impugnado, que estabelece o seguinte:

VIII – Comprovar o exercício de, no mínimo, 2 (dois) anos em entidades devidamente registradas no Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente.

Demonstrou-se a incompatibilidade do dispositivo legal impugnado com os arts. 111 e 144 da Lei Maior paulista, uma vez que o legislador municipal, ao dispor sobre a política municipal de atendimento e defesa dos direitos da criança e do adolescente e exercer a sua competência de suplementar a legislação federal que regula a matéria, acabou por afrontar os princípios da isonomia e da razoabilidade.

Ocorre que, como destacado na inicial, o art. 133 do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei Federal n. 8.69/90) estabelece quais são os requisitos exigidos para que o cidadão seja candidato a integrar o Conselho Tutelar.

Reconhece a doutrina a competência do legislador municipal para suplementar a legislação federal, estabelecendo outros requisitos.

Nesse sentido a lição de Wilson Donizeti Liberati e Públio Caio Bessa Cyrino (Conselhos e fundos no Estatuto da Criança e do Adolescente, São Paulo: Malheiros, 1993, p. 127):

“A lei federal preocupou-se, tão-somente, em estabelecer os requisitos mínimos de admissibilidade à candidatura dos conselheiros tutelares.

Pelo princípio da municipalização contido no art. 88, I, do ECA, fica a critério do Município suplementar a norma citada, com fulcro no art. 30, II, da CF, para ampliar esses requisitos, adequando-os às peculiaridades locais”.

Reconhece a doutrina, ainda, a possibilidade de que esses requisitos estejam relacionados à experiência no trato com crianças e adolescentes.

Todavia, a autonomia legislativa consagrada aos Municípios não tem caráter absoluto e soberano, pois é limitada por diversos princípios previstos na Constituição do Estado de São Paulo.

Referidos princípios funcionam como uma limitação à autonomia municipal de autolegislação, consistente na edição de leis municipais sobre áreas que são reservadas à sua competência exclusiva e suplementar.

Por isso, a autonomia legislativa consagrada aos Municípios está sujeita a algumas regras fundamentais e impostergáveis.

Nesse contexto, é inconstitucional o dispositivo legal impugnado na presente ação direta, pois, sob o pretexto de agir nos estritos limites de sua autonomia legislativa, o inciso VIII do art. 21 da Lei Municipal n. 270-A, de 22.08.94, acrescentado pela Lei n. 1.583-A, do município de São Vicente, exigiu, de forma irrazoável e ofensiva ao princípio da isonomia, que o candidato ao Conselho Tutelar comprove o exercício de, no mínimo, 2 (dois) anos em entidades devidamente registradas no Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente.

Ocorre que a Constituição do Estado de São Paulo, em seu art. 111, impõe aos Poder Públicos a observância dos mencionados princípios fundamentais, por força do art. 144 da Lei Maior Paulista.

Pode-se, pois, cotejar o conteúdo normativo do dispositivo legal impugnado aos arts. 111 e 144 da Constituição do Estado e concluir-se pela inconstitucionalidade.

Embora a intenção do legislador municipal seja nobre, não pode deixar de ser reconhecido o caráter absolutamente excepcional de dispositivos legais que restringem o direito de acesso aos órgãos públicos.

Não se nega que as entidades não governamentais de atendimento à criança e adolescente devem se registrar.

Todavia, parece-nos irrazoável que somente o cidadão que tenha atuado em entidade registrada no Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente, pelo prazo de dois anos, possa ter o direito de acesso ao Conselho Tutelar.

Vários exemplos podem ser invocados.

Cite-se, por exemplo, a situação de um médico pediatra que tenha por vários anos desenvolvido atividade em consultório particular ou, então, junto a um hospital público. Está impedido de integrar o Conselho Tutelar de São Vicente.

Ou, ainda como exemplo, um oficial de promotoria altamente vocacionado, um assistente técnico do Ministério Público, com notória atuação na área.

O requisito estipulado pelo legislador municipal, com a devida vênia, permite indevidas discriminações, sendo de ser reconhecida a sua inconstitucionalidade, seja pela ofensa ao princípio da isonomia, seja por afronta ao princípio da razoabilidade, que encontra assento no art. 111 da Constituição do Estado de São Paulo.

Ocorre que as restrições e exigências emanadas de ato normativo não podem exceder os parâmetros constitucionais, restringindo o acesso para uns e estabelecendo privilégios para outros, os cadastrados.

Além disso, deve-se observar que o dispositivo impugnado acaba por atentar contra o próprio interesse público ao alijar do concurso público inúmeros cidadãos que tenham atuado na defesa dos direitos da criança e do adolescente, mas que tenham atuado em entidades não cadastradas pelo órgão municipal.

Além disso, como demonstrou a autora da representação para o ajuizamento da presente ação direta, o dispositivo legal impugnada acaba por obrigar aquele que quer integrar o Conselho Tutelar a integrar uma Entidade, isto é, a se associar, o que não é razoável: “Tal procedimento tirou do cidadão idôneo e atuante que não esteja ligado a uma Entidade o direito de postular uma vaga ao Conselho Tutelar Municipal. São cidadãos que por uma questão de escolha não estão atrelados a uma entidade (associação), direito este estabelecido no art. 5º, XX, da Constituição Federal, que estabelece que ninguém poderá ser compelido a associar-se a qualquer entidade” (fls. 02 do protocolado que acompanha a presente).

Está demonstrada, portanto, a irrazoabilidade do dispositivo legal impugnado.

Em tais circunstâncias, e com a reiteração dos argumentos expostos na inicial, aguardo o julgamento de procedência da presente ação direta a fim de que seja declarada a inconstitucionalidade do inciso VIII do art. 21 da Lei Municipal n. 270-A, de 22.08.94, acrescentado pela Lei n. 1.583-A, do município de São Vicente.

São Paulo, 27 de julho de 2009.

 

 

 

 

Maurício Augusto Gomes

Subprocurador-Geral de Justiça

- Assuntos Jurídicos –

 

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[1][1] Conselhos e fundos no Estatuto da Criança e do Adolescente, São Paulo: Malheiros, 1993, p. 127.