EXCELENTÍSSIMO SENHOR DESEMBARGADOR PRESIDENTE DO E. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

 

 

Protocolado nº 42.294/2012

Assunto: inconstitucionalidade dos parágrafos 1º e 3º do art. 8º, do § 1º do art. 12, da frase “revogação do Termo de Recebimento e Aceitação Parcial - TRAP e documentos subsequentes e”, constante do § 3º, do art. 12, e dos §§ 1º ao 4º, do art. 15, todos da Lei nº 15.150, de 06 de maio de 2010, do Município de São Paulo

 

 

 

Ementa:

1)      Ação direta de inconstitucionalidade. Inconstitucionalidade dos parágrafos 1º e 3º do art. 8º, do § 1º do art. 12, da frase “da revogação do Termo de Recebimento e Aceitação Parcial - TRAP e documentos subsequentes e”, constante do § 3º, do art. 12, e dos §§ 1º ao 4º, do art. 15, todos da Lei nº 15.150, de 06 de maio de 2010, do Município de São Paulo.

2)      Disposições legais que: (a) limitam o valor das contrapartidas (compensações) a serem exigidas para empreendimentos qualificados como “Polos Geradores de Tráfego” ao teto de 5% do valor do próprio empreendimento; e (b) permitem o início da atividade e a obtenção do Certificado de Conclusão da Edificação (“habite-se”) antes da conclusão das contrapartidas ou obras de compensação do tráfego gerado.

3)      Defesa do meio ambiente natural e artificial ou urbano, da cidade e dos munícipes. Princípios constitucionais estabelecidos. Princípio da razoabilidade. Inconstitucionalidade dos dispositivos glosados por contrariedade aos artigos 111, 144, 180, I e III, e 191 da Constituição do Estado de São Paulo. Precedentes do Col. STF.

 

 

 

 

 

O Procurador-Geral de Justiça do Estado de São Paulo, no exercício da atribuição prevista no art. 116, inciso VI, da Lei Complementar Estadual nº 734 de 26 de novembro de 1993, e em conformidade com o disposto no art. 125, § 2º, e no art. 129, inciso IV, da Constituição da República, e ainda no art. 74, inciso VI, e no art. 90, inciso III da Constituição do Estado de São Paulo, com amparo nas informações colhidas no incluso protocolado (PGJ nº 42.294/2012, que segue como anexo), vem perante esse Egrégio Tribunal de Justiça promover a presente AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE dos parágrafos 1º e 3º do art. 8º, do § 1º do art. 12, da frase “da revogação do Termo de Recebimento e Aceitação Parcial - TRAP e documentos subsequentes e”, constante do § 3º, do art. 12, e dos §§ 1º ao 4º do art. 15, todos da Lei nº 15.150, de 06 de maio de 2010, do Município de São Paulo, pelos fundamentos expostos a seguir.

1)  DISPOSITIVOS IMPUGNADOS

O protocolado que acompanha esta inicial foi instaurado em virtude de representação da Promotoria de Justiça de Habitação e Urbanismo da Capital, tendo como objeto a Lei Municipal nº 15.150, de 06 de maio de 2010, do Município de São Paulo, que, em conformidade com a respectiva rubrica “Dispõe sobre os procedimentos para a aprovação de projetos arquitetônicos e para a execução de obras e serviços necessários para a minimização de impacto no Sistema Viário decorrente da implantação ou reforma de edificações e da instalação de atividades – Polo Gerador de Tráfego”.

Os dispositivos impugnados nesta ação apresentam a redação transcrita a seguir:

“(...)

Art. 8º. Nos casos em que a análise do projeto apresentado indicar a necessidade da execução de obras e serviços relacionados à operação do Sistema Viário, o empreendedor arcará integralmente com as despesas do projeto e implantação das medidas.

§ 1º. O custo das melhorias viárias a serem executadas pelo empreendedor não poderá representar mais que 5% (cinco por cento) do custo total do empreendimento.

§ 2º. O custo das melhorias viárias será apurado com base em orçamento detalhado, elaborado pelo empreendedor conforme as tabelas oficiais utilizadas pelo Município de São Paulo, que deverá indicar:

I - o custo total das melhorias viárias, com a descrição detalhada dos preços de cada item;

II - o custo total do empreendimento; e

III - a equivalência entre o orçamento das melhorias viárias e o custo total do empreendimento.

§ 3º. Se o custo das melhorias viárias ultrapassar o limite estabelecido neste artigo, a Secretaria Municipal de Transportes – SMT, deverá, no prazo de 60 (sessenta) dias, eleger de forma expressa, dentre aquelas inicialmente previstas, as que deseja que devam ser executadas pelo empreendedor, que ficará desonerado em relação às demais obrigações que superem o limite mencionado no § 1º supra.

§ 4º. Todos os empreendimentos classificados como Polos Geradores de Tráfego deverão recolher ao Fundo Municipal de Desenvolvimento de Trânsito para a realização de projetos específicos de trânsito e transporte:

I - no caso de não ser necessária imediatamente nenhuma obra viária ou serviço, o valor correspondente a 1% (um por cento) do custo total do empreendimento;

II - no caso do valor das obras e serviços realizados não atingir o valor correspondente a 1% (um por cento) do custo total do empreendimento, o valor remanescente.

§ 5º. Para a apuração do custo total do empreendimento em:

I - implantação de edificações: o interessado deverá se valer dos parâmetros de quantificação e dos índices constantes da tabela editada pela Secretaria de Infraestrutura Urbana e Obras – SIURB para toda a obra;

II - reforma de edificações: o interessado deverá se valer dos parâmetros de quantificação e dos índices constantes da tabela editada pela Secretaria de Infraestrutura Urbana e Obras – SIURB para toda a obra somado ao Valor Venal da Construção - VVC preexistente; e

III - instalação de atividades: o interessado deverá se valer do Valor Venal da Construção - VVC preexistente.

§ 6º. A obrigatoriedade da execução de obras e serviços relacionados à operação do Sistema Viário e do recolhimento do valor referido no § 4º deste artigo independem de se tratar de empreendimento aprovado por meio de adesão a operação urbana e de ter havido o pagamento de outorga onerosa, vinculação de Certificados de Potencial Adicional de Construção para aprovação do projeto ou qualquer outra forma de contrapartida relacionada à utilização de regras urbanísticas diferenciadas.

(...)

Art. 12. No caso da impossibilidade do cumprimento das exigências estabelecidas na Certidão de Diretrizes por fatores alheios à sua atuação, o empreendedor poderá apresentar pedido autônomo à Secretaria Municipal de Transportes - SMT, contendo os elementos justificativos de inviabilidade, a solicitação de novo prazo e a indicação de garantias de aporte financeiro para a execução das obras necessárias.

§ 1º. O pedido apresentado pelo empreendedor será analisado pela Secretaria Municipal de Transportes - SMT, que poderá emitir o Termo de Recebimento e Aceitação Parcial - TRAP, oficiando à Subprefeitura competente para a adoção das providências necessárias.

§ 2º. As garantias mencionadas no ‘caput’ deste artigo serão efetuadas através de caução em dinheiro ou fiança bancária, no dobro do valor da obra ou serviço a ser executado pelo interessado.

§ 3º. Sanados os motivos impeditivos da realização das medidas mitigadoras, a Secretaria Municipal de Transportes - SMT deverá notificar o empreendedor para a realização imediata dos serviços, sob pena da revogação do Termo de Recebimento e Aceitação Parcial - TRAP e documentos subsequentes e da perda integral da garantia apresentada em favor do Fundo Municipal de Desenvolvimento de Trânsito.

§ 4º. Quando a impossibilidade do cumprimento das exigências contidas na Certidão de Diretrizes perdurar por mais de 12 (doze) meses, a Secretaria Municipal de Transportes - SMT deverá retificar a Certidão de Diretrizes, sem prejuízo da permanência da garantia oferecida.

(...)

Art. 15. A regularização da edificação e/ou a obtenção do Certificado de Conclusão da Edificação – ‘HABITE-SE’ estará condicionada à implantação integral das obras e serviços estabelecidos na Certidão de Diretrizes, atestados pela Secretaria Municipal de Transportes.

§ 1º. Caso o empreendedor não tenha iniciado ou concluído a implantação das obras e serviços estabelecidos na Certidão de Diretrizes por fatores alheios à sua atuação, a regularização da edificação e/ou a obtenção do Certificado de Conclusão da Edificação – ‘HABITE-SE’ estará condicionada à prestação de garantias de aporte financeiro para a execução das obras ainda necessárias e desde que atendidas as demais exigências legais não relacionadas à minimização dos impactos causados de forma direta ao Sistema Viário tratada nesta lei.

§ 2º. O pedido de prestação de garantias será apresentado à Secretaria Municipal de Transportes – SMT e será deferido desde que sejam apresentados os elementos justificadores da inviabilidade e a indicação de garantias de aporte financeiro para a execução das obras necessárias.

§ 3º. As garantias mencionadas no § 1º deste artigo serão efetuadas através de caução em dinheiro ou fiança bancária, no dobro do valor da obra ou serviço a ser executado pelo interessado.

§ 4º. Sanados os motivos impeditivos da realização das medidas mitigadoras, a Secretaria Municipal de Transportes – SMT deverá notificar o empreendedor para a realização imediata dos serviços, sob pena de perda imediata da garantia apresentada.

(...)”

Entretanto, os dispositivos ou partes de dispositivos colocados em destaque (negrito) são incompatíveis com a Constituição Estadual, como será exposto a seguir.

A inconstitucionalidade se refere, portanto: (a) aos parágrafos 1º e 3º do art. 8º; (b) ao § 1º do art. 12; (c) à frase “da revogação do Termo de Recebimento e Aceitação Parcial - TRAP e documentos subsequentes e”, constante do § 3º, do art. 12; (d) e aos §§ 1º ao 4º do art. 15; todos da Lei nº 15.150, de 06 de maio de 2010.

2)  FUNDAMENTAÇÃO

Os dispositivos antes mencionados contrariam o princípio da razoabilidade, bem como a proteção constitucional ao meio ambiente (que incluiu o meio ambiente urbano ou artificial) e ao uso equilibrado do solo urbano, princípios constitucionais estabelecidos, aplicáveis aos Municípios e previstos na Constituição do Estado de São Paulo nos seguintes dispositivos:

“(...)

Artigo 111 - A administração pública direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes do Estado, obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, razoabilidade, finalidade, motivação, interesse público e eficiência.

(...)

Artigo 144 - Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.

(...)

Artigo 180 - No estabelecimento de diretrizes e normas relativas ao desenvolvimento urbano, o Estado e os Municípios assegurarão:

I - o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e a garantia do bem-estar de seus habitantes;

II – (...)

III - a preservação, proteção e recuperação do meio ambiente urbano e cultural;

(...)

Artigo 191 - O Estado e os Municípios providenciarão, com a participação da coletividade, a preservação, conservação, defesa, recuperação e melhoria do meio ambiente natural, artificial e do trabalho, atendidas as peculiaridades regionais e locais e em harmonia com o desenvolvimento social e econômico.

(...)”

Ocioso dizer que tanto a observância, em benefício da coletividade, do princípio da razoabilidade, bem como o respeito ao meio ambiente natural e urbano ou artificial por parte do Poder Legislativo e do Poder Executivo em todas as esferas da Federação, também estão assentados pela Constituição Federal, como se observa nos dispositivos a seguir transcritos, que são aplicáveis aos Municípios por força do art. 144 da Constituição do Estado de São Paulo:

“(...)

Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios:

(...)

VI - proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas;

(...)

Art. 29. O Município reger-se-á por lei orgânica, votada em dois turnos, com o interstício mínimo de dez dias, e aprovada por dois terços dos membros da Câmara Municipal, que a promulgará, atendidos os princípios estabelecidos nesta Constituição, na Constituição do respectivo Estado e os seguintes preceitos:

(...)

Art. 30. Compete aos Municípios:

(...)

VIII - promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano;

(...)

Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:

(...)

VI - defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação;

(...)

Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.

(...)

A Lei Municipal nº 15.150, de 06 de maio de 2010, do Município de São Paulo, tratou de um aspecto fundamental para a proteção do meio ambiente urbano e o equilibrado desenvolvimento da cidade no Município de São Paulo. Cuidou de estabelecer parâmetros normativos mais precisos e apropriados à realidade, quanto a procedimentos para a aprovação de projetos arquitetônicos e para a execução de obras e serviços, necessários para a minimização de impacto no Sistema Viário decorrente da implantação ou reforma de edificações e da instalação de atividades nos denominados Polos Geradores de Tráfego.

Contudo, o legislador municipal equivocou-se, com a devida vênia, ao incluir no texto legal os dispositivos impugnados nesta inicial, visto que eles permitem, em última análise, que: (a) as contrapartidas a serem exigidas do Poder Público Municipal junto ao empreendedor sejam insuficientes e inadequadas para a realização de compensações compatíveis com a situação real ou concreta; e (b) que o empreendimento entre em funcionamento antes que todas as contrapartidas estejam concluídas.

Nesse particular, observa-se que:

(a) os §§ 1º e 3º do art. 8º limita ao máximo de 5% do valor do empreendimento o custo das obras para melhorias viárias, a serem exigidas pelo Poder Público Municipal do empreendedor, o que pode se revelar, na prática dos casos concretos, manifestamente insuficiente para adequadamente tutelar o meio ambiente urbano e o bem-estar da cidade e dos munícipes;

(b) o § 1º do art. 12, combinado com a frase “da revogação do Termo de Recebimento e Aceitação Parcial - TRAP e documentos subsequentes” do § 3º do referido artigo, permitem a interpretação no sentido de que, mediante o depósito de caução equivalente ao dobro do valor das contrapartidas (limitadas estas a 5% do valor da obra), seja autorizado o funcionamento do empreendimento antes mesmo que as providências de mitigação do impacto no tráfego estejam totalmente concluídas, situação esta que pode criar, em casos concretos, riscos de danos irreparáveis ou de difícil reparação, mostrando-se tais disposições manifestamente insuficientes para adequadamente tutelar o meio ambiente urbano ou artificial e o bem-estar da cidade e dos munícipes;

(c) os §§ 1º ao 4º do art. 15 possibilitam a obtenção do Certificado de Conclusão da Edificação (“habite-se”) sem que as obras de mitigação (contrapartidas) tenham sido completamente realizadas, mediante o oferecimento de garantia financeira (caução em dinheiro ou fiança bancária). Essa solução, como antes afirmado, ao autorizar a ocupação e o funcionamento do empreendimento antes mesmo que as providências de mitigação do impacto no tráfego estejam totalmente concluídas, pode criar situações de risco de danos irreparáveis ou de difícil reparação, mostrando-se tais disposições manifestamente insuficientes para adequadamente tutelar o meio ambiente urbano ou artificial e o bem-estar da cidade e dos munícipes.

Observemos, inicialmente, a questão relacionada à fixação de limite máximo de 5% do valor do empreendimento para as obras de adequação viária (contrapartidas).

Contraria o princípio da razoabilidade tal limitação legal, pois ela pode significar, na prática, a adoção de medidas insuficientes para a adequada proteção do meio ambiente urbano e para o bom uso do solo da cidade, especialmente em uma metrópole como São Paulo, cuja população ultrapassa em muito, como é notório, dez de milhões de habitantes, e cujos problemas de trânsito são absolutamente evidentes, crônicos e aparentemente sem solução imediata.

A título de ilustração, anote-se que segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) a população da cidade de São Paulo no ano de 2010 era de 11.253.503 (onze milhões duzentos e cinquenta e três mil e quinhentos e três) habitantes (Fonte: http://www.ibge.gov.br, acesso em 28.05.2012).

Por outro lado, estima-se informalmente, em conformidade com notícias frequentes nos meios de comunicação, que a frota de veículos na cidade de São Paulo já se avizinha da casa dos sete milhões de veículos (Fonte: http://noticias.r7.com, notícia de 04.04.2011, acesso em 28.05.2011).

Esses números nos sensibilizam quanto à necessária preocupação para com a gravidade do problema da mobilidade urbana, na cidade de São Paulo, e a indispensável atenção e cuidado que o tema deve receber por parte de todos e do Poder Público em especial.

Em perspectiva pragmática, não se mostra razoável que, diante da gravidade já constatada, contemporaneamente, no cotidiano da cidade de São Paulo quanto à precariedade de seu sistema viário e do incontornável e já exacerbado problema do tráfego urbano, a legislação municipal crie limite fixo às medidas de compensação.

Isso acaba por permitir, em homenagem exclusivamente aos interesses dos empreendedores e em detrimento dos interesses da cidade, do meio ambiente urbano e dos munícipes, que não sejam impostas medidas suficientes e adequadas, como contrapartidas, para viabilizar a realização de empreendimentos imobiliários e sua entrada em funcionamento.

Lembremos, com José Afonso da Silva (Direito Urbanístico, 6. Ed., São Paulo, Malheiros, 2010, p. 179), que:

“(...)

Uma das funções da atividade urbanística do Poder Público consiste em criar condições à circulação. (...) o sistema viário forma a estrutura da cidade, constituindo, talvez, seu mais importante elemento. (...) Nenhum outro elemento da composição material da cidade é tão permanente quanto suas ruas.

(...)”

A observância do princípio da razoabilidade é imperativa tanto na atividade da Administração Pública como na atividade legislativa, e tem assento no art. 111 da Constituição do Estado, aplicável aos Municípios por força do art. 144 da mesma Carta.

Por força desse princípio é necessário que a norma passe pelo denominado “teste” de razoabilidade, ou seja, que ela seja: (a) necessária (a partir da perspectiva dos anseios da Administração Pública); (b) adequada (considerando os fins públicos que com a norma se pretende alcançar); e (c) proporcional em sentido estrito (que as restrições, imposições ou ônus dela decorrentes não sejam excessivos ou incompatíveis com os resultados a alcançar).

Confira-se: Diogo de Figueiredo Moreira Neto, Curso de direito administrativo, 14. ed., Rio de Janeiro, Forense, 2006, p. 101; Maria Sylvia Zanella Di Pietro, Direito administrativo, 19. ed., São Paulo, Atlas, 2006, p. 95; Gilmar Ferreira Mendes, “A proporcionalidade na jurisprudência do STF”, publicado em Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade, São Paulo, Instituto Brasileiro de Direito Constitucional e Celso Bastos Editor, 1998, p. 83.

A regra consistente na fixação do limite de 5% para as contrapartidas exigidas como obras viárias, em relação a empreendimentos que se caracterizem como Polos Geradores de Tráfego, não supera nenhum dos critérios do teste de razoabilidade:

(a) não atende a nenhuma necessidade da Administração Pública, vindo em benefício exclusivamente da conveniência dos empreendedores, para que possam ter liberada a realização de seus empreendimentos e sua entrada em funcionamento, a despeito do interesse na adequada compensação, em benefício do meio ambiente urbano, da cidade e dos munícipes, que já vivem em um cotidiano caótico relativamente ao trânsito;

(b) é, por consequência, inadequada na perspectiva do interesse público, pois significa, nitidamente, prevalência do interesse particular, do empreendedor, em detrimento do interesse de toda a coletividade de munícipes;

(c) é desproporcional em sentido estrito, por criar uma situação de ônus ainda maior para o meio ambiente urbano ou artificial, a cidade, a Municipalidade (Administração Pública) e os munícipes.

Quanto ao último aspecto acima mencionado (“c”), lembremos que: o meio ambiente urbano e a cidade como um todo, com a instalação de um Polo Gerador de Tráfego sem as medidas compensatórias suficientes e adequadas (ou seja, sem a limitação de 5% do valor do empreendimento) sofrerão com uma degradação decorrente do aumento do tráfego urbano ainda maior; a Municipalidade (Administração Pública) será igualmente onerada, pois a todo aumento de tráfego se seguem novas medidas paliativas e novos gastos do Poder Público Municipal, que arca dessa forma com as consequências do exercício de atividades econômicas dos empreendedores responsáveis pelo novo Polo Gerador de Tráfego; os munícipes, com o aumento do tráfego, passam a viver numa situação de desgaste e degradação ainda maior, sem que tenham mecanismos adequados para evitar esse novo quadro.

É evidente que a atividade econômica provocada por boa parte dos empreendimentos geradores de tráfego também é responsável pela criação de empregos e, nesse sentido, é positiva para a cidade, devendo ser estimulada.

Mas isso não deve ocorrer sem a manutenção da boa qualidade de vida dos munícipes, sem o respeito ao meio ambiente urbano ou artificial e sem a preservação da cidade. É preciso compatibilizar os interesses em jogo, a fim de que o desenvolvimento econômico da cidade se dê de forma sustentável.

Não é por outra razão que o art. 2º do Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001) destaca como objetivo da política urbana ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana através de várias diretrizes gerais, que enfatizam o direito da coletividade a uma “cidade sustentável”. Este direito, em conformidade com o inciso I do referido dispositivo, envolve o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infraestrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações”

Nesse particular, lembra Carlos Ari Sundfeld (“O Estatuto da Cidade e suas Diretrizes Gerais”, “in” Estatuto da Cidade, coord. Adilson Abreu Dallari e Sérgio Ferraz, 3. Ed., São Paulo, Malheiros, 2010, p. 55), que:

“(...)

a população tem o direito coletivo a uma cidade sustentável, o que deve levar à fruição individual das vantagens dela decorrentes.

(...)”

Em sentido análogo, destacando a aproximação da função social da cidade daquilo que se pode compreender como desenvolvimento sustentável, confira-se ainda Nelson Saule Júnior, “in” Estatuto da Cidade Comentado, (org. Liana Portilho Mattos), Belo Horizonte, Mandamentos, 2002, p. 260.

Em outras palavras, afronta o princípio da razoabilidade admitir-se a realização e operação de qualquer empreendimento, sem que sejam exigidas contrapartidas suficientes, não limitadas a um valor previamente estabelecido na lei, mas sim apropriadas a cada situação, específica e concretamente considerada.

Assim, saber aquilo que será suficiente, a título de contrapartida ou compensação, para cada situação concreta, é algo que não deve ser definido previamente pelo legislador infraconstitucional, pois isso contraria a necessidade de integral prevenção, proteção e recuperação do meio ambiente natural e artificial ou urbano, bem como o interesse geral da população envolvida.

Como bem pontuado na representação de fls. 2/9, oriunda da Promotoria de Habitação e Urbanismo, o Col. STF já assentou esse entendimento ao definir que em sede de proteção ao meio ambiente, a definição do “quantum” para fins de compensação deve ser estabelecida caso a caso. Esse foi o teor do precedente estabelecido quando do julgamento da ADI 3.378, Rel. Min. Ayres Britto, julgamento em 14-6-2008, Plenário, DJE de 20-6-2008, aplicável, mutatis mutandis, à hipótese ora examinada:

“(...)

Compensação ambiental que se revela como instrumento adequado à defesa e preservação do meio ambiente para as presentes e futuras gerações, não havendo outro meio eficaz para atingir essa finalidade constitucional. Medida amplamente compensada pelos benefícios que sempre resultam de um meio ambiente ecologicamente garantido em sua higidez. Inconstitucionalidade da expressão ‘não pode ser inferior a meio por cento dos custos totais previstos para a implantação do empreendimento’, no § 1º do art. 36 da Lei 9.985/2000. O valor da compensação-compartilhamento é de ser fixado proporcionalmente ao impacto ambiental, após estudo em que se assegurem o contraditório e a ampla defesa. Prescindibilidade da fixação de percentual sobre os custos do empreendimento.

(...)” (g.n.)

Eis então, a afronta ao princípio da razoabilidade, pelos §§ 1º e 3º do art. 8º da Lei nº 15.150, de 06 de maio de 2010.

Mas não é só.

Há também, no caso em exame, desrespeito aos preceitos da Constituição Estadual que sinalizam para a necessidade de efetivo respeito ao meio ambiente natural ou urbano, o que só se torna possível com medidas de prevenção, e não com simples medidas futuras de reparação ou mitigação do dano.

Em outras palavras, as contrapartidas para empreendimentos que sejam geradores de tráfego devem ser integralmente exigidas e atendidas antes da entrada do empreendimento em funcionamento, sob pena de serem inócuas.

Admitir-se que as contrapartidas, que tem o condão de amenizar as consequências práticas decorrentes da geração de tráfego, sejam concluídas e entregues após a realização e entrada do empreendimento em funcionamento, significa, nitidamente, autorizar a degradação do meio ambiente natural e urbano, da cidade, e da qualidade de vida da população, a pretexto de assegurar o desenvolvimento econômico.

Observa-se nisso não só violação ao princípio da razoabilidade, antes apontado, mas também o desrespeito a todas as normas constitucionais antes indicadas que regem a proteção ao meio ambiente natural e urbano, às cidades e às pessoas que nelas vivem.

Esse desrespeito, que se qualifica como inconstitucional, está presente na Lei nº 15.150, de 06 de maio de 2010, no § 1º do art. 12, na frase “da revogação do Termo de Recebimento e Aceitação Parcial - TRAP e documentos subsequentes e”, do § 3º desse mesmo artigo, bem como nos §§ 1º ao 4º do art. 15 da referida lei.

Tais dispositivos permitem que a Secretaria Municipal de Transportes de São Paulo emita o “Termo de Recebimento e Aceitação Parcial – TRAP” sem que as obras (contrapartidas de mitigação do tráfego gerado) tenham sido totalmente concluídas, habilitando o empreendimento, portanto, a imediatamente entrar em funcionamento, a despeito da degradação que isso possa ocasionar para o tráfego urbano e consequentemente ao meio ambiente urbano, à cidade e aos munícipes.

Deles se extrai também a possibilidade de obtenção do Certificado de Conclusão da Edificação (“habite-se”) antes que tenha sido completada a realização das contrapartidas ou obras de mitigação do impacto viário.

Se determinado empreendimento tem tal potencial degradador, qualificado pela própria lei como “Polo Gerador de Tráfego”, mostra-se inaceitável, do ponto de vista do interesse da coletividade que vive na já sofrida cidade de São Paulo, que o início de seu funcionamento ocorra antes da realização integral das medidas de compensação suficientes para a efetiva eliminação das suas consequências nocivas.

Não é possível que o meio ambiente urbano ou artificial, a cidade, e os munícipes, arquem com as consequências do empreendimento que beneficiará, de forma direta e imediata, o interesse particular do empreendedor.

Saliente-se que o denominado princípio da precaução em matéria de proteção ao meio ambiente natural e artificial ou urbano, bem como para a asseguração de condições adequadas de vida em coletividade, já foi reconhecido pelo Col. STF, que aponta seu assento constitucional.

A título de exemplificação, como noticiou o Informativo 538-STF, ao examinar os riscos para a coletividade em função de medidas direcionadas ao incremento da importação de pneus usados, quando do julgamento da ADPF 101 (Rel. Min. Cármen Lúcia, julgamento em 11-3-2009, Plenário), o Col. STF:

“(...)

Fez ampla consideração sobre o direito ao meio ambiente – salientando a observância do princípio da precaução pelas medidas impostas nas normas brasileiras apontadas como descumpridas pelas decisões ora impugnadas –, e o direito à saúde.

(...)”

Em suma: quando se trata de proteger o meio ambiente natural ou urbano, as cidades e as pessoas que nelas vivem, a precaução deve prevalecer.

Aplicando esse raciocínio à hipótese em exame, conclui-se que empreendimentos geradores de tráfego, em cidade já tão saturada como São Paulo, poderão ser aceitos. Mas para tanto é indispensável que sejam oferecidas contrapartidas suficientes e necessárias em função de cada caso concreto (sem a fixação prévia, na norma infraconstitucional, de teto em função do valor do empreendimento), bem como desde que tais medidas estejam plenamente realizadas e entregues antes do início das atividades do Polo Gerador de Tráfego.

Do contrário, a seguir-se com a disciplina legal ora impugnada, ter-se-á o risco de criar-se, em inúmeros casos, situação de fato irreversível ou de difícil reversão, em detrimento da coletividade.

3)  LIMINAR

Estão presentes, no caso em exame, os pressupostos para a concessão da liminar, com a determinação da suspensão da eficácia dos dispositivos impugnados.

O fumus boni iuris decorre da consistente fundamentação jurídica aqui adotada, demonstrando claramente que os preceitos legais contrariam a Constituição do Estado de São Paulo, notadamente os artigos 111, 144, 180, I e III, e 191.

Está presente, igualmente, o periculum in mora.

A cidade de São Paulo vive momento de intensa atividade, notadamente no mercado imobiliário, fato objetivo que é positivo sob a perspectiva essencialmente econômica.

Entretanto, as consequências dessa intensa atividade, no que diz respeito aos Polos Geradores de Tráfego, são sofridas pelo meio ambiente urbano ou artificial, pela cidade, pelos munícipes e também pela Administração Pública Municipal. Esta última acaba arcando com as consequências da expansão não planejada, sendo onerada com novos gastos e medidas que são meros paliativos, incapazes de reverter situações de dano já consolidado.

É necessário prevenir, obstando-se que, pela aplicação dos dispositivos legais aqui questionados, novas situações de degradação urbana (Polos Geradores de Tráfego), sem a adequada contrapartida, possam ser implantados e entrar em funcionamento.

Não há alternativa, caso se queira efetivamente impedir que a cidade alcance um quadro ainda mais caótico do que aquele que hoje já se apresenta.

É imprescindível que os preceitos impugnados sejam suspensos, a fim de que nos casos concretos, a Municipalidade possa exigir dos empreendedores, sempre antes do início da atividade dos empreendimentos aprovados pelo Poder Público Municipal, a adoção de contrapartidas efetivamente adequadas aos efeitos no trânsito urbano, gerados pelo empreendimento.

Diante do exposto, requer-se liminarmente a suspensão da eficácia dos seguintes dispositivos da Lei nº 15.150, de 06 de maio de 2010, do Município de São Paulo:

(a) §§ 1º e 3º do art. 8º;

(b) § 1º do art. 12;

(c) da frase “da revogação do Termo de Recebimento e Aceitação Parcial - TRAP e documentos subsequentes e”, constante do § 3º, do art. 12;

(d) §§ 1º ao 4º do art. 15.

4)  PEDIDO

Diante de todo o exposto, aguarda-se o recebimento e processamento da presente ação declaratória, para que ao final seja ela julgada procedente, reconhecendo-se a inconstitucionalidade dos seguintes dispositivos da Lei nº 15.150, de 06 de maio de 2010, do Município de São Paulo:

(a) §§ 1º e 3º do art. 8º;

(b) § 1º do art. 12;

(c) da frase “da revogação do Termo de Recebimento e Aceitação Parcial - TRAP e documentos subsequentes e”, constante do § 3º, do art. 12;

(d) §§ 1º ao 4º do art. 15.

Requer-se ainda sejam requisitadas informações à Câmara Municipal e ao Senhor Prefeito Municipal de São Paulo, bem como  citado o Procurador-Geral do Estado para manifestar-se sobre o ato normativo impugnado.

Posteriormente, aguarda-se vista para fins de manifestação final.

Termos em que,

Aguarda-se deferimento.

São Paulo, 29 de maio de 2012.

 

        Márcio Fernando Elias Rosa

        Procurador-Geral de Justiça

rbl

 

 

 

 

 

Protocolado nº 42.294/2012

Assunto: inconstitucionalidade dos parágrafos 1º e 3º do art. 8º, do § 1º do art. 12, da frase “revogação do Termo de Recebimento e Aceitação Parcial - TRAP e documentos subsequentes e”, constante do § 3º, do art. 12, e dos §§ 1º ao 4º do art. 15, todos da Lei nº 11.150, de 06 de maio de 2010, do Município de São Paulo

 

 

 

 

 

 

1.     Distribua-se a inicial da ação direta de inconstitucionalidade.

2.     Comunique-se à Promotoria de Justiça interessada a propositura da ação enviando-se cópias da inicial.

3.     Cumpra-se.

São Paulo, 29 de maio de 2012.

 

 

        Márcio Fernando Elias Rosa

        Procurador-Geral de Justiça

rbl