Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo

 

Protocolado nº 99.798/07

Assunto: Inconstitucionalidade da Lei Municipal nº 6.701, de 30 de outubro de 2006, de Franca.

 

Ementa: Lei Municipal. Alteração do uso e ocupação do solo. Loteamento fechado. Iniciativa parlamentar. Ausência de planejamento urbanístico. Violação da separação entre os Poderes (art.5º, e art.47 inc. II e XIV da CE). Violação das exigências de planejamento em matéria urbanística (art.180 e 181 da CE). Inconstitucionalidade reconhecida.

 

 

 

         O Procurador-Geral de Justiça do Estado de São Paulo, no exercício de suas atribuições (art.116 VI da Lei Complementar Estadual nº 734/93 - Lei Orgânica do Ministério Público de São Paulo -; art.125 §2º e 129 IV da Constituição Federal; art.74 VI e art.90 III da Constituição do Estado de São Paulo), com amparo nas informações colhidas no incluso protocolado (PGJ nº 99.798/07) vem perante esse Egrégio Tribunal de Justiça promover a presente AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE da Lei Municipal nº 6.701, de 30 de outubro de 2006, de Franca, pelos fundamentos a seguir expostos.

 

1)Do ato normativo impugnado.

 

         O protocolado que rende ensejo à propositura da presente ação foi instaurado por força de representação formulada pelo DD. 2º Promotor de Justiça de Franca, Dr. (...)¸ considerando a notícia de iniciativas parlamentares de projetos de leis destinados a produzir modificações no uso do solo do referido Município.

 

         A Lei Municipal nº 6.701 de 30 de outubro de 2006, de Franca, fruto de iniciativa parlamentar, que, conforme respectiva rubrica, “Institui loteamentos fechados no Município de Franca”, tem a seguinte redação:

 

         “Lei nº6.701 de 30 de outubro de 2006.

 

(Projeto de Lei nº 172/2006, de autoria do Vereador Fábio Celso de Jesus Liporoni)

 

Institui loteamentos fechados no Município de Franca.

 

SIDNEI FRANCO DA ROCHA, Prefeito Municipal de Franca, Estado de São Paulo, no exercício de suas atribuições legais,

 

FAZ SABER que a Câmara Municipal APROVOU e ele PROMULGA a seguinte LEI:

 

Art. 1o - Para os fins desta lei, conceitua-se loteamento fechado como sendo o caracterizado pelo uso exclusivo residencial unifamiliar horizontal, pela adoção de acessos privativos e de muros delimitadores, ou outro sistema de vedação admitido pela autoridade municipal, que se separem da malha viária urbana, sendo-lhe permitido controlar a entrada de pessoas a critério da administração.

 

§ 1o - Somente poderão ser fechados os loteamentos que tiverem a sua aprovação segundo as diretrizes desta Lei, e, no que couberem às demais legislações federais, estaduais e municipais.

 

§ 2o - Não será admitido o fechamento dos loteamentos já existentes.

 

Art. 2o - As áreas verdes e as vias de circulação definidas por ocasião da aprovação do loteamento, serão objetos de permissão de uso por tempo indeterminado, podendo ser revogada a qualquer momento pela Prefeitura, se houver necessidade devidamente comprovada, sem implicar em ressarcimento, na forma da lei municipal, observadas as normas de caráter geral expedida pela União e pelo Estado.

 

 

§ 1o - A localização do percentual de área verde que porventura venha a se situar interna ou externamente ao loteamento dependerá de aprovação da Prefeitura Municipal, atendidas as normas dos órgãos ambientais pertinentes.

 

§ 2o - A permissão de uso especial das áreas verdes e das vias internas de circulação somente será autorizada quando os loteadores a submeterem à Associação dos Proprietários, constituída sob a forma de pessoa jurídica, com explícita definição de responsabilidade para aquela finalidade.

 

§ 3o - A permissão de uso a que se refere este artigo atenderá às normas estabelecidas pela União e pelo Estado, no que couberem, observará o disposto na legislação municipal e dependerá de autorização legislativa.

 

Art. 3o - Quando as diretrizes viárias definidas pela Prefeitura Municipal seccionarem a gleba objeto de projeto de loteamento fechado deverão essas vias estar liberadas para o tráfego, sendo que as porções remanescentes poderão ser fechadas.

 

Parágrafo único - Nesta situação, o fechamento das áreas remanescentes será de inteira responsabilidade da Associação dos Proprietários.

 

Art. 4o - Fica a Prefeitura Municipal autorizada a outorgar o uso de que trata o art. 2o , nos seguintes termos:

 

I. A aprovação do loteamento será formalizada por decreto do Poder Executivo e a Permissão de uso de áreas verdes e/ou públicas mediante autorização legislativa;

 

II. A outorga da permissão de uso deverá constar do registro do loteamento no Cartório de Registro de Imóveis;

III. Na lei de outorga da permissão de uso deverá constar os encargos relativos à manutenção e a conservação dos bens públicos em causa;

IV. Qualquer outra utilização das áreas públicas será objeto de autorização legislativa específica;

V. No sistema de loteamento fechado a área para equipamentos comunitários a ser doada ao município deverá ficar situada totalmente externa ao loteamento;

VI. A área destinada para equipamentos comunitários será definida por ocasião da aprovação do projeto do loteamento e será mantida sob responsabilidade da Associação dos Proprietários, que exercerá a manutenção e conservação até que a Prefeitura Municipal exerça plenamente sua função;

VII. A critério da Prefeitura Municipal, respeitando-se o art. 2o, parte da área verde poderá localizar-se externamente ao loteamento, e obrigatoriamente limítrofe ao mesmo;

VIII. As edificações de sede de clube, sanitários, vestiários e piscinas deverão ser construídos em áreas específicas, ficando vedado o uso da área verde para tal fim;

IX. Áreas consideradas como de preservação permanente definida por legislação, terão sua utilização condicionada à aprovação dos órgãos competentes.

 

Art. 5o - Será de inteira responsabilidade da Associação dos Proprietários a obrigação de desempenhar:

 

I. Serviços de manutenção das árvores e poda, quando necessário;

II. Limpeza das vias públicas;

III. Prevenção de sinistros;

IV. Outros serviços que se fizerem necessários;

V. Garantia na ação livre e desimpedida das autoridades e entidades públicas que zelam pela segurança e bem-estar da população.

 

Art. 6o - A Associação dos Proprietários, outorgada nos termos desta lei, afixará em lugar visível, nos acessos ao loteamento fechado, placas com dizeres da denominação do loteamento, número e data do decreto que regulamentou a permissão de uso, e razão social da Associação com o número do CNPJ e/ou Inscrição Municipal.

 

Art. 7o - A aprovação dos loteamentos fechados será condicionada à apreciação da Prefeitura Municipal das minutas dos estatutos do regimento interno ou de qualquer outro conjunto de normas que contenha o modo de administração e construção.

 

Parágrafo único - A Prefeitura Municipal, no que couber, poderá solicitar alterações nas minutas se houver descaracterização da finalidade ao que o empreendimento foi proposto.

 

Art. 8o - As despesas do fechamento do loteamento, bem como toda a sinalização que vier a ser necessária em virtude de sua implantação, serão de responsabilidade da Associação dos Proprietários.

 

Art. 9o - Para efeitos tributários nos loteamentos fechados, cada unidade autônoma será tratada como imóvel isolado, competindo ao respectivo titular recolher os impostos, taxas, contribuições de melhoria e outras, relativas ao seu imóvel e, quando for o caso, relativo a fiação ideal correspondente.

 

Parágrafo único - A Associação dos Proprietários será considerada contribuinte de imposto sobre serviço com responsabilidade tributária pelo recolhimento das respectivas taxas.

 

Art. 10 - Quando a Associação dos Proprietários se omitir na prestação desses serviços e houver desvirtuamento da utilização das áreas públicas, a Prefeitura Municipal assumi-los-á, determinando o seguinte:

 

I. Perda do caráter de loteamento fechado;

II. Pagamento de multa correspondente a 01 (uma) UFMF por m2 (metro qua-drado) de terreno, aplicável a cada proprietário de lote pertencente ao lotea-mento fechado.

 

Parágrafo único - Quando a Prefeitura Municipal determinar a retirada das benfeitorias, tais como fechamentos, portarias e outros, esses serviços serão de responsabilidade dos proprietários, e deverão ser executados nos prazos determinados pela Prefeitura Municipal, cabendo à Associação dos Proprietários o ressarcimento de seus custos.

 

Art. 11 - Quando da descaracterização de loteamento fechado, com abertura ao uso público das áreas objeto de permissão de uso, as mesmas passarão a reintegrar normalmente o sis-tema viário e de lazer no município, bem como as benfeitorias nelas executadas, sem qualquer ônus, sendo a responsabilidade pela retirada do muro de fechamento e pelos encargos recorrentes da Associação dos Proprietários.

 

Parágrafo único - Se por razões urbanísticas for necessário intervir nas áreas públicas sobre as quais incide a permissão de uso segundo esta lei, não caberá à associação dos Proprietários qualquer indenização ou ressarcimento por benfeitorias eventual-mente afetadas.

 

Art. 12 - Os loteamentos que forem fechados sem autorização da Prefeitura Municipal estarão sujeitos a multa igual um décimo de UFMF por m2 (metro quadrado) de terreno, a cada proprietário de lote pertencente ao loteamento, por dia de permanência em situação irregular após o prazo estipulado.

 

Art. 13 - As penalidades previstas nos artigos 10 e 12 da presente lei, serão processadas através de auto de infração e multa que deverão ser lavrados com clareza, sem omissões, ressalvas e entrelinhas, e deverá constar obrigatoriamente:

 

I. Data da lavratura;

II. Nome e localização do loteamento;

III. Descrição dos fatos e elementos que caracterizam a infração;

IV. Dispositivo legal infringido;

V. Penalidade aplicável;

VI. Assinatura, nome legível, cargo e matrícula da autoridade fiscal que constatou infração e lavrou o auto.

 

Parágrafo único - Após a lavratura do auto de infração, será instaurado o processo administrativo contra o infrator, providenciando-se ainda, se não tiver ocorrido, a sua intimação pessoal, ou por via postal com aviso de recebimento, ou edital publicado no Diário Oficial do Município.

 

Art. 14 - Caberá impugnação do auto de infração e a imposição de penalidade a ser apresentada pelo autuado, junto ao serviço protocolado na Prefeitura Municipal, no prazo de 15 dias, contando da data da lavratura do auto, sob pena de revelia.

 

Art. 15 - A decisão definitiva, que impuser ao autuado a pena de multa ou a perda do caráter de loteamento fechado, deverá ser cumprida no prazo de dez dias, contados da data da comunicação.

 

Art. 16 - As restrições para loteamentos fechados são as seguintes:

 

I. Número máximo de lotes de 200 unidades;

II. Número mínimo de lotes de 25 unidades;

III. Área mínima dos lotes de 400,00 m2;

IV. Testada mínima dos lotes em meio de quadra de 13,OO m;

V. Testadas mínimas dos lotes de esquina de 16,00 m;

VI. Profundidade mínima dos lotes de 30,00 m;

VII. Área para equipamento comunitário, de no mínimo de 3% (três por cento) da área total loteamento;

VIII. Área verde, de no mínimo de 10% (dez por cento) da área total do loteamento;

IX. Área do sistema viário, sendo no mínimo 18% (dezoito por cento) da área total do loteamento, e caso venha ocupar área inferior, a diferença deverá ser acrescida à área verde ou para equipamentos comunitários, a ser definida pela Prefeitura Municipal;

X. Área máxima destinada aos lotes de 55% (cinqüenta e cinco por cento) da área total do loteamento;

XI. Da área total do loteamento, aquelas que não estiverem incluídas no percentual de lotes, áreas para equipamentos urbanos e comunitários, sistema viário e área verde deverão ter uso comum que será definido pela Associação de Proprietários através das minutas dos estatutos do regimento interno ou de qualquer outro conjunto de normas que contenha o modo de administração e construção;

XII. Não poderão estar incluídas no percentual das áreas verdes, para equipamentos comunitários e vias de circulação, aquelas que porventura sejam necessárias para a instalação de equipamentos urbanos;

XIII. Nos lotes somente será permitido o uso residencial unifamiliar horizontal;

XIV. Todos os serviços de abastecimentos de água, coleta de esgoto, galeria de águas pluviais coletas de lixo deverão ser executadas pelas concessionárias autorizadas.

 

Art. 17 - A área máxima do loteamento fechado dependerá de considerações urbanísticas viárias, ambientais, e do impacto que possa ter sobre a estrutura urbana, sempre dentro das diretrizes estabelecidas pela Prefeitura Municipal.

 

§ 1o - No ato da solicitação do pedido de diretrizes deverá ser especificada a intenção de implantação da modalidade de loteamento fechado.

 

§ 2o - As diretrizes urbanísticas definirão um sistema viário de contorno às áreas fechadas

 

§ 3o - Em caso de indeferimento do pedido, a Prefeitura municipal deverá apresentar as razões técnicas devidamente fundamentadas.

 

Art. 18 - As vias internas de circulação e as de acesso aos loteamentos fechados ficam classificadas nas seguintes categorias, com as suas respectivas características geométricas:

 

I. Estrutural: largura de 32,00 m com passeio de 2,00 x 4,00 m., separador mediano de 5,00 m e caixa de 2,00 x 9,50 m., sendo a rampa máxima de 12% (doze por cento);

II. Coletora: largura de 20,00 m com passeio de 2,00 x 4,00 m e caixa de 12,00m., sendo a rampa máxima de 12% (doze por cento);

III. Local: largura de 13,00 m com passeio de 2,00 x 3,00 m e caixa de 7,00 m, sendo a rampa máxima de 15% (quinze por cento);

IV. Pedestre: largura de 4,00m, sendo a rampa máxima de 15%.

 

§ 1o - Os valores definidos para as características geométricas das vias são os mínimos permitidos, podendo ser aumentado e critério da Prefeitura.

 

§ 2o - As vias de circulação sem saída deverão ser providas de praças de manobra, ou alças que possam conter um círculo de diâmetro não inferior a 20,00 (vinte) metros.

 

§ 3o - Nas vias de circulação internas ao loteamento poderão ser dispensadas a execução dos meios-fios e sarjetas, desde que o sistema de drenagem a ser adotado e aprovado garanta o perfeito escoamento das águas pluviais, previamente aprovado pela Prefeitura Municipal.

 

Art. 19 - O órgão da Prefeitura Municipal responsável pela aplicação da presente lei será a Secretaria de Meio Ambiente e Infra-estrutura.

 

Parágrafo único - Caberá aos órgãos ambientais pertinentes, o estudo do impacto ambiental do empreendimento e demais orientações visando à fiel aplicação desta lei.

 

Art. 20 - As despesas com a execução da presente Lei correm à conta de dotações próprias do orçamento vigente.

 

Art. 21 - Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário.

 

 

Prefeitura Municipal de Franca, aos 30 de outubro de 2006.”

 

         Entretanto, referido diploma é verticalmente incompatível com nossa sistemática constitucional.

 

2)Violação da separação de poderes.

 

         O projeto de lei nº 172/2006, que deu origem à Lei Municipal nº 6.701/06, de Franca, decorreu de iniciativa parlamentar.

 

         Deste fato legislativo decorre também a inexistência de adequado planejamento para a elaboração do ato normativo.

 

         Embora a rubrica da lei refira-se apenas à instituição de “loteamentos fechados” no Município de Franca, de sua leitura chega-se à conclusão de que seu objeto é muito mais amplo.

 

         Apenas para conceder destaque a preceitos da lei que demonstram sua amplitude, note-se que:

 

(a)ficou estabelecido que a aprovação de loteamentos se dará por decreto do Poder Executivo, mas a permissão de uso de áreas verdes e/ou públicas dependerão de autorização legislativa (art.4º I);

 

(b)qualquer outra utilização de áreas públicas será objeto de autorização legislativa (art.4º IV);

 

(c)foram fixadas inúmeras restrições e condições para os loteamentos fechados, com definição de: [i] número máximo e mínimo de lotes; [ii] área mínima dos lotes; [iii] configuração mínima dos lotes (testada e profundidade); [iv] proporções entre áreas para equipamentos comunitários, áreas verdes e área do sistema viário; [v] restrições ao uso de cada lote (art.16 e incisos);

 

(d)classificações e limites das vias internas de circulação dos loteamentos (art.18);

 

(e)imposição de obrigações a órgãos do Executivo, entre eles a Secretaria do Meio Ambiente e Infra-estrutura, encarregada da aplicação da lei, fiscalização, e aplicação de sanções administrativas nela previstas (art.19).

 

         Frise-se: a lei não se limitou a permitir a instituição de loteamentos fechados no Município. Mais que isso, disciplinou pormenorizadamente o próprio uso do solo, criou obrigações para o Poder Executivo local, e condicionou a prática de atos de administração à expedição de autorizações legislativas.

        

         Nesse contexto, evidencia-se a incompatibilidade entre o diploma e o ordenamento constitucional.

 

         A matéria atinente à gestão da cidade decorre, essencialmente, da administração realizada pelo Chefe do Executivo, o que leva à conclusão de que, na hipótese em exame, foi violado o princípio da separação de poderes (art.5º, 47 II e XIV da Constituição Paulista; art.2º da Constituição Federal).

 

         Embora o Município seja dotado de autonomia política e administrativa, dentro do sistema federativo (cf. art.1º e art.18 da Constituição Federal), esta autonomia não tem caráter absoluto. Limita-se ao âmbito pré-fixado pelo ente estrutural e hierarquicamente superior, i. é, a Constituição Federal (cf. José Afonso da Silva, Direito constitucional positivo, 13ª ed., São Paulo, Malheiros, 1997, p.459).

        

         A autonomia municipal deve ser exercida com a observância dos princípios contidos na Constituição Federal e na Constituição Estadual (cf. Luiz Alberto David Araújo e Vidal Serrano Nunes Júnior, Curso de direito constitucional, 9ªed., São Paulo, Saraiva, 285).

 

         A autonomia municipal envolve quatro capacidades básicas: (a) capacidade de auto-organização (elaboração de lei orgânica própria); (b) capacidade de autogoverno (eletividade do Prefeito e dos Vereadores às respectivas Câmaras Municipais); (c) capacidade normativa própria (autolegislação, mediante competência para elaboração de leis municipais); (d) capacidade de auto-administração (administração própria para manter e prestar serviços de interesse local) (Cf. José Afonso da Silva, ob. cit., p.591).

 

         Nas quatro capacidades acima estão configuradas: (a) a autonomia política (capacidades de auto-organização e de autogoverno); (b) autonomia normativa (capacidade de fazer leis próprias sobre matéria de suas competências); (c) autonomia administrativa (administração própria e organização dos serviços locais); (d) autonomia financeira (capacidade de decretação de seus tributos e aplicação de suas rendas), como se colhe, ainda uma vez, nos ensinamentos de José Afonso da Silva (ob. cit., p.591).

 

         A autonomia do Município, entretanto, deve respeitar o princípio da separação dos Poderes, contando o art.5º da Constituição do Estado com a expressa previsão de que eles atuam de forma independentemente e harmônica, regra, aliás, que também consta do art.2º da Constituição Federal, igualmente aplicável no âmbito estadual por força do art.144 da Constituição Bandeirante.

 

         Recorde-se, com Hely Lopes Meirelles, que as atribuições do Prefeito são de natureza governamental e administrativa, sendo certo que atua sempre “por meio de atos concretos e específicos, de governo (atos políticos) ou de administração (atos administrativos), ao passo que a Câmara desempenha suas atribuições típicas editando normas abstratas e gerais de conduta (leis). Nisso se distinguem fundamentalmente suas atividades. O ato executivo do Prefeito é dirigido a um objetivo imediato, concreto e especial; o ato legislativo da Câmara é mediato, abstrato e genérico(...) O prefeito provê in concreto, em razão do seu poder de administrar; a Câmara provê in abstracto em virtude de seu poder de regular. Todo ato do prefeito que infringir a prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art.2º c.c. o art.31), podendo ser invalidado pelo Judiciário” (Direito Municipal Brasileiro, 6ªed., 3ª tir., atualizada por Izabel Camargo Lopes Monteiro e Yara Darcy Police Monteiro,
São Paulo, Malheiros, 1993, p.523).

 

         A lei em exame ofendeu a separação que deve ocorrer no exercício das funções estatais, por ingressar na esfera de competência do Poder Executivo.

 

         É bem verdade, a propósito, que não há previsão de iniciativa legislativa reservada na matéria.

 

         Entretanto, pela natureza da matéria e pelos requisitos que nosso sistema constitucional estabelece para a elaboração da legislação urbanística, é lícito afirmar que ela demanda planejamento administrativo. E o planejamento na ocupação e uso do solo urbano das cidades é algo que só o Poder Executivo é habilitado, estrutural e tecnicamente, a fazer.

 

         Considerando que ao Poder Legislativo cabe legislar, e ao Poder Executivo cabe administrar, é lícito concluir que o ato legislativo que invade a esfera da gestão administrativa - que envolve atos de planejamento, estabelecimento de diretrizes e a realização propriamente dita do que foi estabelecido na fase do planejamento (realização de atos administrativos concretos) – é inconstitucional, por violar a regra da separação de Poderes.

 

         No caso ora examinado, como a iniciativa legislativa partiu de Vereador, chega-se à conclusão de que o Legislativo Municipal violou a regra que exige independência e harmonia entre os Poderes, invadindo a esfera das atribuições do Executivo Municipal.

 

         Por igualdade de razões é que a Constituição Estadual, em dispositivo aplicável aos Municípios em função do seu art.144, prevê, nos incisos II e XIV do seu art.47 as atribuições privativas do Chefe do Executivo para “exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior da administração estadual”, bem como “praticar os demais atos de administração, nos limites da competência do Executivo”.

 

         Vale, a propósito, colacionar precedentes desse E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, acolhendo, em hipóteses análogas, a tese da inconstitucionalidade por violação da separação de Poderes, e por isso aplicáveis ao caso mutatis mutandis:

 

                “Ação Direta de Inconstitucionalidade da Lei 3.801, de 01 de julho de 2004, do Município de Valinhos, que ‘cria zona corredor 1 – ZC1, nas ruas Martinho Leardine e Pedro Leardine e altera o zoneamento de Z2A para Z3B no JD. Paiquerê e no Condomínio residencial Millenium’. Lei apenas em sentido formal. Incompetência do Poder Legislativo Municipal. Matéria afeta ao Poder Executivo. Violação dos princípios da independência e harmonia dos poderes. Ação procedente” (TJSP, ADIN 119.158-0/3, Comarca de Valinhos, rel. Des. Denser de Sá, j. 02.02.2006).

 

                    “Inconstitucionalidade. Ação Direta. Lei Complementar Municipal 1.482/03. ‘Autoriza, em caráter excepcional, atividades de prestação de serviços (clínicas de acupuntura, terapias e meditações) em trecho da Avenida Sumaré...’.Lei de iniciativa exclusiva do Prefeito. Ofensa à Constituição Estadual. Vício de iniciativa. Ação procedente. Inconstitucionalidade declarada”(TJSP, ADIN 115.322-0/3-00, Ribeirão Preto, rel. Des. Barbosa Pereira, j.27.07.2005).

 

                    “AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. Ribeirão Preto. Lei Complementar n° 1.973, de 03 de março de 2006, de iniciativa de Vereador, dispondo sobre matéria urbanística, exigente de prévio planejamento. Caracterizada interferência na competência legislativa reservada ao Chefe do Poder Executivo local. Procedência da ação.” (ADI 134.169-0/3-00, rel. des. Oliveira Santos, j. 19.12.2007, v.u.).

 

         Anote-se também que em recente iniciativa desta Procuradoria-Geral de Justiça, esse E. Órgão Especial reconheceu a inconstitucionalidade de lei de iniciativa parlamentar que alterou o zoneamento urbano, como se infere da ementa a seguir transcrita:

 

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE – Lei Complementar n° 294/05 do Município de Catanduva - Alteração de Zoneamento Urbano - Identificação de lotes que passam a ter característica comercial, em zona estritamente residencial – Inadmissibilidade - Vício de inconstitucionalidade, por motivo de vedada delegação de poder em matéria de reserva legal. Ação julgada procedente.” (ADI 148.671-0/1-00, rel. des. Walter Swensson, j. 23.01.2008, v.u.).

 

         Há inúmeros outros precedentes desse E. Tribunal de Justiça apontando, do mesmo modo, no sentido do reconhecimento da inconstitucionalidade, por quebra da regra da separação de poderes, em casos de leis que alteram o zoneamento ou uso do solo urbano: ADI 118.767-0/5-00, rel. des. Jarbas Mazzoni, j.07.04.06; ADI 125.012-0/7-00, rel. des. Jarbas Mazzoni, j.02.08.06; ADI 130.137-0/9-00, rel. des. Debatin Cardoso, j. 25.10.06; ADI 125.642-0/1-00, rel. des. Walter de Almeida Guilherme, j. 07.04.06.

 

         Em síntese: (a) partindo de parlamentar a iniciativa do processo legislativo que culminou com a edição da lei impugnada; e (b) interferindo esta no planejamento urbanístico, que se enquadra no conceito de gestão administrativa, reservada esta ao Poder Executivo; evidencia-se a inconstitucionalidade da Lei nº 6.701/06, de Franca, por violação ao disposto no art.5º, art.47 incisos II e XIV, e art.144 caput, todos da Constituição do Estado de São Paulo.

 

3)Ausência de planejamento urbanístico.

 

         É fato inegável que, no caso em exame, não ocorreu o indispensável planejamento urbanístico.

 

         A Constituição do Estado de São Paulo prevê objetivamente a necessidade de planejamento em matéria urbanística.

 

         O art.180 caput da Carta Bandeirante, ao tratar do tema, indica os critérios a serem observados, pelo Estado e pelos Municípios, no “estabelecimento de diretrizes e normas relativas ao desenvolvimento urbano”. Entre eles, de conformidade com o inciso I do referido artigo, encontra-se a participação das respectivas entidades comunitárias no estudo, encaminhamento e solução de problemas, “plano, programas e projetos que lhes sejam concernentes”.

 

         O art.181 da Constituição Estadual, por sua vez, prescreve que a “lei municipal estabelecerá em conformidade com as diretrizes do plano diretor, normas sobre zoneamento, loteamento, parcelamento, uso e ocupação do solo, índices urbanísticos, proteção ambiental e demais limitações administrativas pertinentes”; enquanto o respectivo §1º estabelece que “os planos diretores, obrigatórios a todos os Municípios, deverão considerar a totalidade do território Municipal”.

 

         Cumpre recordar que a exigência do plano diretor, como “instrumento básico da política de desenvolvimento e expansão urbana”, está assentada no §1º do art.182 da Constituição Federal, cuja aplicabilidade à hipótese decorre da regra contida no art.144 da Constituição do Estado de São Paulo.

 

         Anote-se, finalmente, que o art.182 caput da CF disciplina que “a política de desenvolvimento urbano, executada pelo poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes”.

 

         Recorde-se também que o inciso VIII do art.30 da Constituição Federal prevê a competência dos Municípios para “promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento, e da ocupação do solo urbano”.

 

         É possível extrair dos dispositivos acima apontados que: (a) a adequada política de ocupação e uso do solo é valor que conta com assento constitucional (federal e estadual); (b) a política de ocupação e uso adequado do solo se faz mediante planejamento e estabelecimento de diretrizes através de lei; (c) as diretrizes para o planejamento, ocupação e uso do solo devem constar do respectivo plano diretor, cuja elaboração depende de avaliação concreta das peculiaridades de cada Município; (d) a legislação específica sobre uso e ocupação do solo deve pautar-se por adequado planejamento.

 

         A sistemática constitucional - relativa à necessidade de planejamento, diretrizes, e ordenação global da ocupação e uso do solo - evidencia que o casuísmo, nessa matéria, não é em hipótese alguma admissível.

 

         O ato normativo que altera sensivelmente as condições, limites e possibilidades do uso do solo urbano em zona residencial, sem realização de qualquer planejamento ou estudo, viola diretamente a sistemática constitucional na matéria.

 

         Entendimento diverso tornará sem valor algum todo o trabalho previamente realizado para fins de elaboração e aprovação da Lei do Plano Diretor e de Uso e Ocupação do Solo Urbano. Qualquer iniciativa parlamentar poderá – como se verificou no caso em exame – levar à alteração legislativa casuísta.

 

         Tratando da elaboração do plano diretor do ordenamento urbano, anota Hely Lopes Meirelles que ”Toda cidade há que ser planejada: a cidade nova, para sua formação; a cidade implantada, para sua expansão; a cidade velha, para sua renovação”; acrescendo que “a elaboração do plano diretor é tarefa de especialistas nos diversificados setores de sua abrangência, devendo por isso mesmo ser confiada a órgão técnico da Prefeitura ou contratada com profissionais de notória especialização na matéria, sempre sob supervisão do Prefeito, que transmitirá as aspirações dos munícipes quanto ao desenvolvimento do Município e indicará as prioridades das obras e serviços de maior urgência e utilidade para a população”. (Direito Municipal Brasileiro, cit., p.393 e 395).

 

         Tratando especificamente do problema da ocupação e uso do solo, anota José Afonso da Silva que a respectiva ordenação é um dos aspectos fundamentais do planejamento urbanístico, salientando ainda que “recomenda-se, nessas alterações, muito critério, a fim de que não se façam modificações bruscas entre o zoneamento existente e o que vai resultar da revisão. É preciso ter em mente que o zoneamento constitui condicionamento geral à propriedade, não indenizável, de tal maneira que uma simples liberação inconseqüente ou um agravamento menos pensado podem valorizar demasiadamente alguns imóveis, ao mesmo tempo que desvalorizam outros, sem propósito. É conveniente que o zoneamento resultante da revisão ou da alteração constitua uma progressão harmônica do zoneamento revisado ou alterado, para não causar impactos, que, por sua vez, geram resistências que dificultam sua implantação e execução. É prudente avançar devagar, mas com firmeza, energia e justiça” (Direito Urbanístico, 4ªed., São Paulo, Malheiros, 2006, p.251).

 

         Cumpre finalmente destacar a importância do planejamento urbanístico e da necessária razoabilidade de que se deve revestir a legislação elaborada nesta matéria, recordando Toshio Mukai, que “a ocupação e o desenvolvimento dos espaços habitáveis, sejam eles no campo ou na cidade, não podem ocorrer de forma meramente acidental, sob as forças dos interesses privados e da coletividade. Ao contrário, são necessários profundos estudos acerca da natureza da ocupação, sua finalidade, avaliação da geografia local, da capacidade de comportar essa utilização sem danos para o meio ambiente, de forma a permitir boas condições de vida para as pessoas, permitindo o desenvolvimento econômico-social, harmonizando os interesses particulares e os da coletividade” (Temas atuais de direito urbanístico e ambiental, Belo Horizonte, Editora Fórum, 2004, p.29).

 

         Deste modo, padece de inconstitucionalidade o ato normativo oriundo do Legislativo municipal que, sem qualquer estudo prévio consistente, e de forma casuística, altera o zoneamento ou uso do solo urbano, ferindo frontalmente o disposto nos art.180 caput e inciso II, art.181 caput e §1º, ambos da Constituição Estadual; bem como, por força do art.144 da Constituição Estadual, os princípios constitucionais estabelecidos nos art.182 caput e §1º, e o art.30 e inciso VIII da Constituição Federal.

 

4)Ausência de previsão de receita.

 

         Inegável, ademais, que o cumprimento, pela Administração, das providências e obrigações impostas pelo diploma impugnado, gerará despesas, para as quais não foi prevista a indispensável indicação de receitas.

 

         Isso significa violação ao disposto no art.25 da Constituição Paulista.

 

         Sob tal fundamento, esse E. Tribunal de Justiça tem reiteradamente reconhecido a inconstitucionalidade de atos normativos fruto de iniciativa parlamentar, como se infere em inúmeros julgados: ADI 134.844-0/4-00, rel. des. Jarbas Mazzoni, j. 19.09.2007, v.u.; ADI 135.527-0/5-00, rel. des. Carlos Stroppa, j.03.10.2007, v.u.; ADI 135.498-0/1-00, rel. des. Carlos Stroppa, j.03.10.2007, v.u..

 

         Necessário também, sob tal fundamento, o reconhecimento da inconstitucionalidade da lei.

 

5)Da liminar.

 

         Estão presentes, na hipótese examinada, os pressupostos do fumus bonis iuris e do periculum in mora, a justificar a suspensão liminar da vigência e eficácia dos atos normativos impugnados.

 

         A razoável fundamentação jurídica decorre dos motivos expostos anteriormente, que indicam, de forma clara, que as leis impugnadas na presente ação padecem de vício de inconstitucionalidade.

 

         O perigo da demora decorre especialmente da idéia de que, sem a imediata suspensão da vigência e eficácia dos atos normativos impugnados, instalar-se-á, provavelmente, situação consumada, decorrente da utilização ilegítima dos imóveis alcançados pelas alterações nas regras inerentes ao uso do solo.

 

         A idéia do fato consumado, com repercussão concreta, guarda relevância para a apreciação da necessidade da concessão da liminar na ação direta de inconstitucionalidade. Válida tal afirmação, na medida em que providências administrativas que ulteriormente serão necessárias para o restabelecimento do statu quo ante, com a esperada procedência da ação, trarão ônus e custos para a Administração Pública.

 

         Assim, a imediata suspensão da eficácia do ato normativo, cuja inconstitucionalidade é palpável, evita qualquer desdobramento no plano dos fatos que possa significar, na prática, prejuízo concreto para o Poder Público Municipal, tanto no aspecto administrativo, como do ponto de vista urbanístico.

 

         De resto, ainda que não houvesse essa singular situação de risco, restaria, ao menos, a excepcional conveniência da medida. Com efeito, no contexto das ações diretas e da outorga de provimentos cautelares para defesa da Constituição, o juízo de conveniência é um critério relevante, que vem condicionando os pronunciamentos do Supremo Tribunal Federal, preordenados à suspensão liminar de leis aparentemente inconstitucionais (cf. ADIN-MC 125, j. 15.2.90, DJU de 4.5.90, p. 3.693, rel. Min. Celso de Mello; ADIN-MC 568, RTJ 138/64; ADIN-MC 493, RTJ 142/52; ADIN-MC 540, DJU de 25.9.92, p. 16.182).

 

         Diante do exposto, requer-se a concessão da liminar, para fins de suspensão imediata da eficácia da lei impugnada.

 

6)Conclusão e pedido.

 

         Por todo o exposto, evidencia-se a necessidade de reconhecimento da inconstitucionalidade da lei aqui examinada.

 

         Assim, aguarda-se o recebimento e processamento da presente ação declaratória, para que ao final seja julgada procedente, reconhecendo-se a inconstitucionalidade da Lei Municipal nº 6.701, de 30 de outubro de 2006, de Franca.

 

         Requer-se ainda sejam requisitadas informações à Câmara Municipal e à Prefeitura Municipal de Franca, bem como posteriormente citado o Procurador-Geral do Estado para manifestar-se sobre o ato normativo impugnado.

 

         Posteriormente, aguarda-se vista para fins de manifestação final.

 

São Paulo, 23 de junho de 2008.

 

 

 

 

 

Fernando Grella Vieira

Procurador-Geral de Justiça