EXCELENTÍSSIMO SENHOR DESEMBARGADOR PRESIDENTE DO E. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

 

Protocolado nº 100.550/2008

Assunto : Inconstitucionalidade da Lei Complementar nº 24, de 9 de janeiro de 2007, do Município de Ubarana.

 

Ementa: Lei municipal que institui cargos de provimento em comissão aos quais não correspondem funções de direção, chefia e assessoramento, mas funções próprias dos cargos de provimento efetivo.  Violação do art. 115, inc. II e V, da Constituição do Estado de São Paulo. Pedido para que se declare a inconstitucionalidade material das expressões da lei que identificam esses cargos.

 

           

 

O Procurador-Geral de Justiça do Estado de São Paulo, no exercício da atribuição prevista no art. 116, inciso VI da Lei Complementar Estadual nº 734, de 26 de novembro de 1993 (Lei Orgânica do Ministério Público de São Paulo), em conformidade com o disposto no art.125, § 2º e art. 129, inciso IV da Constituição Federal, e ainda art. 74, inciso VI e art. 90, inciso III da Constituição do Estado de São Paulo, com amparo nas informações colhidas no incluso protocolado, vem, respeitosamente, perante esse Egrégio Tribunal de Justiça, promover a presente AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE da Lei Complementar nº 24, de 9 de janeiro de 2007, do Município de Ubarana, pelos fundamentos a seguir expostos.

1. O ATO NORMATIVO IMPUGNADO.

A Lei Complementar nº 24, de 9 de janeiro de 2007, do Município de Ubarana, institui “normas que regulam as relações de trabalho dos servidores públicos municipais, reorganiza o quadro de servidores municipais da administração pública, reenquadrando-os e dá outras providências”.

 O capítulo II desse diploma legal é intitulado “Do quadro de pessoal”. Nele se encontra o artigo 3º., pelo qual se estabelece que os cargos constantes do anexo II da lei são “cargos públicos em comissão, preenchidos por livre escolha do Prefeito Municipal, respeitados os requisitos mínimos exigidos”.

O capítulo III trata “Dos cargos públicos e seus vencimentos”. Sob essa rubrica está a Seção II, “Dos cargos públicos de preenchimento em comissão”, com a seguinte regra derivada da redação do artigo 5º.: “Ficam mantidos, re-denominados ou criados os cargos públicos em comissão, nas quantidades e denominações especificadas sob o título de “situação nova” do Anexo V desta lei”.

Infere-se que o anexo II relaciona os cargos de provimento em comissão à escala de vencimentos e que, com a promulgação da lei, subsistem os cargos de provimento em comissão relacionados no anexo V, sob a denominação “situação nova”, a saber:

a)     Assessor de comunicação, 1 cargo;

b)     Assessor de gabinete, 1;

c)     Assessor jurídico, 2;

d)     Chefe Administrador de Bairros Isolados, 2;

e)     Chefe de Centro de Lazer, 1;

f)       Chefe de Enfermagem, 1;

g)     Chefe de Obras e Urbanismo, 1;

h)     Chefe de Serviço de Arrecadação, 1;

i)       Chefe de Serviço de Manutenção e Controle de Frota, 1;

j)        Chefe de Serviço de Limpeza Pública, 1;

k)     Conselheiro Tutelar, 5;

l)        Coordenador do CEICA, 1;

m)   Coordenador de Educação, 1;

n)     Coordenador de Esportes, 1;

o)     Coordenador de Saúde, 1;

p)     Coordenador de Saúde Bucal, 1;

q)     Coordenador Pedagógico, 3;

r)       Diretor de Creche, 1;

s)     Diretor de Escola, 3;

t)       Instrutor Chefe de Bandas e Fanfarra, 1;

u)     Médico Chefe Veterinário, 1;

v)      Chefe de Serviço de Compras, 1;

w)    Vice Diretor de Escola, 3.

Ocorre que a quase totalidade dos cargos assinalados não se relacionam funções de direção, chefia e assessoramento, o que não condiz com o artigo 37, incisos II e V, da Constituição Federal ou com o artigo 115, incisos II e V, da Constituição Estadual.

É o que será demonstrado a seguir.

2. FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA

A Constituição em vigor consagrou o Município como entidade federativa indispensável ao nosso sistema federativo, integrando-o na organização político-administrativa e garantindo-lhe plena autonomia, como se observa da análise dos arts. 1.º, 18, 29, 30 e 34, VI, “c” da CF (Cf. Alexandre de Moraes, in “Direito Constitucional”, Atlas, 7.ª ed., p. 261).

Essa autonomia consagrada aos Municípios não tem caráter absoluto e soberano, muito pelo contrário, encontra limites nos princípios emanados dos poderes públicos e dos pactos fundamentais, que instituíram a soberania de um povo (Cf. De Plácido e Silva, “Vocabulário Jurídico”, Forense, Rio de Janeiro, Volume I, 1984, p. 251), sendo definida por José Afonso da Silva como “a capacidade ou poder de gerir os próprios negócios, dentro de um círculo prefixado por entidade superior”, que no caso é a Constituição (Cf. “Curso de Direito Constitucional Positivo”, Malheiros Editores, São Paulo, 8.ª ed., 1992, p. 545).

A autonomia municipal se assenta em quatro capacidades básicas: (a) auto-organização, mediante a elaboração de lei orgânica própria, (b) autogoverno, pela eletividade do Prefeito e dos Vereadores as respectivas Câmaras Municipais, (c) autolegislação, mediante competência de elaboração de leis municipais sobre áreas que são reservadas à sua competência exclusiva e suplementar, (d) auto-administração ou administração própria, para manter e prestar os serviços de interesse local (Cf. José Afonso da Silva, ob. cit., p. 546).

Nessas quatro capacidades, encontram-se caracterizadas a autonomia política (capacidades de auto-organização e autogoverno), a autonomia normativa (capacidade de fazer leis próprias sobre matéria de sua competência), a autonomia administrativa (administração própria e organização dos serviços locais) e a autonomia financeira (capacidade de decretação de seus tributos e aplicação de suas rendas, que é uma característica da auto-administração) (ob. e loc. cits).                                                     

Assim, por força da autonomia administrativa de que foram dotadas, as entidades municipais são livres para organizar os seus próprios serviços, segundo suas conveniências locais. E, na organização desses serviços públicos, a Administração cria cargos e funções, institui classes e carreiras, faz provimentos e lotações, estabelece vencimentos e vantagens e delimita os deveres e direitos de seus servidores (Cf. Hely Lopes  Meirelles, in “Direito Municipal Brasileiro”, Malheiros Editores, São Paulo, 1996, 8.ª edição, p. 420).

Contudo, a liberdade conferida aos Municípios para organizar os seus próprios serviços não é ampla e ilimitada; ela se subordina às seguintes regras fundamentais e impostergáveis: (a) a que exige que essa organização se faça por lei; (b) a que prevê a competência exclusiva da entidade ou Poder interessado; e (c) a que impõe a observância das normas constitucionais federais pertinentes ao servidor público (ob. e loc. cits.)

No caso em exame, a Câmara Municipal de Ubarana criou cargos de provimento em comissão para o exercício de funções estritamente técnicas ou profissionais, próprias dos cargos de provimento efetivo. São funções que denotam a natureza profissional do vínculo entre seus agentes e a Administração Pública e que, por essa razão, só poderiam ser preenchidas por concurso público.

Segundo RUY CIRNE LIMA (“Princípios de Direito Administrativo, RT, 6.ª ed., p. 162), o funcionário público profissional se peculiariza por quatro característicos básicos, a saber: (a) natureza técnica ou prática do serviço prestado; (b) retribuição de cunho profissional; (c) vinculação jurídica à Administração Direta; (d) caráter permanente dessa vinculação.

Desse modo, nitidamente diferenciado dos cargos que reclamam provimento em comissão, as funções profissionais devem ser exercidas em caráter permanente, ou seja, pelo quadro estável de servidores públicos municipais, os quais, em conformidade com o disposto no art. 115, inciso II, da Constituição do Estado de São Paulo, só podem ser arregimentados por concurso público de provas ou de provas e títulos.

Na verdade, o cargo em comissão destina-se apenas às atribuições de “direção, chefia e assessoramento” (CF., art. 37, inciso V, com a redação dada pela EC n.º 19/98) e tem por finalidade propiciar ao governante o controle das diretrizes políticas traçadas. Exige, portanto, das pessoas indicadas a titularizá-los, absoluta fidelidade à orientação fixada pela autoridade nomeante. Em outras palavras, o cargo de provimento em comissão está diretamente ligado ao dever de lealdade à linha fixada pelo agente político superior.

Daí por que a exceção contida na parte final do inciso II, do artigo 115, da Constituição do Estado de São Paulo - “ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração” -, que, no ponto, reproduz a dicção do artigo 37, inciso II, da Constituição da República, tem alcance limitado a situações excepcionais, relativas aos cargos cuja natureza especial justifique a dispensa de concurso público.

Torna-se evidente, portanto, que a limitação apontada não tem caráter puramente formal, de simples e incriteriosa indicação legal de cargos de provimento em comissão, que pudesse afastar o princípio constitucional da igual acessibilidade aos cargos públicos.

Bem a propósito, ao estudar com profundidade esse assunto, o jurista MARCIO CAMMAROSANO deixou anotado que o princípio democrático implica no princípio da igualdade “e este no princípio da igual acessibilidade dos cargos públicos, com o que se resguarda também o princípio da probidade administrativa” (Cf. “Provimento de Cargos Públicos no Direito Brasileiro”, Revista dos Tribunais, São Paulo, 1.ª ed., p. 45).

Assim, para que a lei criadora de um cargo em comissão não venha a se constituir em burla ao princípio constitucional arrolado, enunciado expressamente pelo artigo 37, incisos I e II, da Constituição da República, deverá observar criteriosamente a natureza das funções a serem desempenhadas, pois, no dizer de CELSO ANTONIO BANDEIRA DE MELLO (O Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade, Editora Revista dos Tribunais, 1.ª edição, pág. 49), “impende que exista uma adequação racional entre o tratamento diferençado construído e a razão diferencial que lhe serviu de supedâneo”.

Afinado a esse mesmo entendimento, HELY LOPES MEIRELLES (“Direito Administrativo Brasileiro”, Malheiros, 18.ª ed., p. 378) adverte sobre pronunciamento do Supremo Tribunal Federal no sentido de que “a criação de cargo em comissão em moldes artificiais e não condizentes com as praxes de nosso ordenamento jurídico e administrativo, só pode ser encarada como inaceitável esvaziamento da exigência constitucional de concurso”.

E, da mesma forma, já decidiu o Pretório Excelso que “a exigência constitucional do concurso público não pode ser contornada pela criação arbitrária de cargos em comissão para o exercício de funções que não pressuponham o vínculo de confiança que explica o regime de livre nomeação e exoneração que os caracteriza.” (STF, RTJ 156/793)

Na esteira desse raciocínio, é inescusável que a parte final do inciso II do art. 115 da Constituição do Estado de São Paulo, tem alcance circunscrito a situações em que o requisito da confiança seja predicado indispensável ao exercício do cargo. De fato, como se trata de uma exceção à regra do concurso público, a criação de cargos em comissão pressupõe o atendimento do interesse público e só se justifica para o exercício de funções de “direção, chefia e assessoramento”, em que seja necessário o estabelecimento de vínculo de confiança entre a autoridade nomeante e o servidor nomeado. Fora desses parâmetros, é inconstitucional qualquer tentativa de criação de cargos dessa natureza.

À exceção do cargo de Assessor de Gabinete, os demais, cuja validade jurídico-constitucional ora se examina não se apresentam como cargos ou funções da administração superior, ou mesmo de “direção, chefia e assessoramento”, que exijam relação de confiança ou especial fidelidade às diretrizes traçadas pela autoridade nomeante, mas sim de cargos comuns, de natureza profissional, que devem ser assumidos em caráter permanente por servidores aprovados em concurso.

Em recente julgado[1], aliás, esse E. Tribunal de Justiça declarou a inconstitucionalidade de dispositivos de lei municipal que instituiu cargos de provimento em comissão análogos (e com denominações equivalentes) aos impugnados, a saber: 1) Assistente Administrativo Escolar; 2) Diretor de Escola; 3) Supervisor de Ensino Fundamental; 4) Agente Municipal de Crédito; 5) Assistente Administrativo Escolar; 6) Chefe de Serviços de Acervo Histórico e Difusão Cultural; 7) Chefe de Serviços de Cadastro Único; 8) Chefe de Serviços de Comunicação; 9) Chefe de Serviços de Esportes Comunitários e de Rendimento; 10) Chefe de Serviços de Fiscalização de Tributos e Posturas; 11) Chefe de Serviços de Turismo; 12) Chefe de Serviços de Gerenciamento da Patrulha Agrícola; 13) Administrador do Ginásio de Esportes; 14) Administrador do Centro de Convivência; 15) Coordenador Geral de Creches; 16) Coordenador Médico; 17) Coordenador Odontológico; 18) Agente Administrativo Financeiro; 19) Agente Administrativo de Recursos Humanos; 20) Supervisor de Saneamento; 21) Assessor Administrativo; 22) Diretor Técnico do Centro de Reabilitação; 23) Assessor Administrativo da Guarda Municipal; 24) Assessor Pedagógico; e 25) Assessor de Diretor.

Noutro caso, ao examinar iniciativa semelhante, o Órgão Especial desse Egrégio Tribunal de Justiça (ADIn. n.º 11.939-0, relator Des. OLIVEIRA COSTA) entendeu por bem declarar a inconstitucionalidade material de expressões de lei criadora de cargos em comissão, cuja natureza não correspondia às características próprias dessas funções.

Em suma, os cargos relacionados nos anexos II e V, à exceção do Assessor de Gabinete, são verticalmente incompatíveis com os arts. 111; 115, incisos I, II e V e 144, da Constituição do Estado de São Paulo, impondo-se, por conseguinte, a sua exclusão da ordem constitucional em vigor.

Nestes termos, impõe-se declarar a insubsistência dos cargos discriminados, por inconstitucionalidade.

3. CONCLUSÃO E PEDIDO.

Por todo o exposto, evidencia-se a necessidade de reconhecimento da inconstitucionalidade da norma aqui apontada.

Assim, aguarda-se o recebimento e processamento da presente Ação Declaratória, para que ao final seja julgada procedente, reconhecendo-se a parcial inconstitucionalidade da Lei Complementar nº 24, de 9 de janeiro de 2007, do Município de Ubarana, bem assim de todos os anteriores atos normativos que contenham previsão dos cargos ora impugnados (para se evitar o efeito repristinatório).

Requer-se ainda sejam requisitadas informações à Câmara Municipal e ao Prefeito Municipal, bem como posteriormente citado o Procurador-Geral do Estado para se manifestar sobre o ato normativo impugnado.

São Paulo, 2 de outubro de 2008.

 

 

Fernando Grella Vieira

Procurador-Geral de Justiça



[1] Ação direta de inconstitucionalidade n° 157 951-0/0. Rel. Des. Sousa Lima. J. 25.6.2008.