EXCELENTÍSSIMO SENHOR DESEMBARGADOR PRESIDENTE DO E. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

 

Protocolado n :  102.071/2008

Assunto: Inconstitucionalidade do Decreto n. 181 de 30 de dezembro de 1992, do Município de Caraguatatuba.

 

 

Ementa.  1) Decreto Municipal n. 181/1992, do Município de Caraguatatuba, que “dispõe sobre permissão de uso de áreas na faixa compreendida entre o Rio Tabatinga e Rio Juqueriquerê”.        2) Diploma que não observa o princípio da licitação.                       3) Inconstitucionalidade constatada. 4) Ação Direta visando à declaração de inconstitucionalidade da norma legal impugnada.

 

 

         O   PROCURADOR-GERAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO,  no exercício  da  atribuição prevista no artigo 116,     inciso   VI, da Lei Complementar n.º 734, de 26 de novembro de 1993, e em conformidade com o disposto  nos artigos 125, § 2º, e 129, inciso IV, da Constituição da República e artigo 74, inciso VI, e 90, inciso III, da Constituição Estadual, com amparo nas informações colhidas no incluso protocolado (PGJ nº 102.071/2008), vem,   respeitosamente, promover perante esse Colendo Tribunal de Justiça a presente AÇÃO DIRETA DE  INCONSTITUCIONALIDADE,  postulando   a  inconstitucionalidade do Decreto n. 181, de 30 de dezembro de 1992,  pelos motivos de fato e de direito que passa a expor .

 

 

 

         Convém, de início, fixar a autonomia do Decreto impugnado que, na verdade, não regulamenta nenhuma Lei Municipal.

 

         Desta feita, o decreto não se reveste da característica regulamentadora da lei; ao contrário, adquire autonomia, tratando de tema  não inserido  em lei.

 

         Como se sabe, decretos, em princípio, não se expõem ao  controle normativo abstrato. De fato, segundo a orientação que emana do Supremo Tribunal Federal, os atos normativos secundários, necessariamente subordinados a preceitos legais e destituídos, por isso, de autonomia jurídica, não se sujeitam à fiscalização abstrata de constitucionalidade (cf. Adin-MC-311-DF, j. em 08.08.90, Rel. Min. Carlos Velloso, DJU de 14.09.90, p. 9.423; Adin-MC-360-DF, j. em 21.09.90, Rel. Min. Moreira Alves, DJU de 26.02.93, p. 2.354; Adin-MC-392-DF, j. em 20.06.91, Rel. Min. MARCO AURÉLIO, DJU de 23.08.91, p. 11.264, RTJ 137/75, entre outros).

 

         Contudo, o Pretório Excelso, excepcionalmente, tem admitido o controle concentrado de constitucionalidade quando o decreto, “no todo ou em parte, manifestamente não regulamenta lei,  apresentando-se, assim, como decreto  autônomo, o que    margem  a  que  seja  ele examinado em face diretamente da Constituição no que diz respeito ao princípio da reserva legal” (Cf. Adin-MC 708-DF, j. em 22.05.92, Rel. Min. Moreira Alves, DJU de 07.08.92, p. 11.778, RTJ 142/718).

 

         Com efeito, há previsão, na Constituição Federal, da competência do poder regulamentar (artigo 84, inciso IV), garantindo que o Executivo detenha, como o Legislativo, o poder normativo, ainda que de modo secundário, sendo regra obrigatória de conduta, de força análoga da lei, mas com ela não se confunde, já que deve estar relacionado a uma lei anterior, — que traga simplesmente princípios básicos e genéricos —, explicitando seu conteúdo, em seu fiel atendimento.

 

         Mas, excepcionalmente e em matéria organizativa, admite-se o chamado regulamento autônomo, independente de lei prévia, que encontra limites na Constituição Federal, podendo, assim, ser objeto da análise de sua inconstitucionalidade, em respeito à hierarquia normativa.

 

         E esta é a hipótese dos autos, eis que o Decreto em questão como mencionado anteriormente  não se destina a regulamentar nenhuma Lei Municipal, que trata de igual matéria.

 

        Feitas essas considerações iniciais, verifica-se que o mencionado Decreto, segundo a ementa, “dispõe sobre permissão de uso de áreas na faixa da praia compreendida entre o Rio Tabatinga e o Rio Juqueriquerê”, no Município de Caraguatatuba,  apresenta a seguinte redação:

 

         Art. 1º - O Chefe do Poder Executivo Municipal, através de termo próprio, outorgará permissão de uso de áreas pré-estabelecidas, na faixa de praia compreendida entre o Rio Tabatinga e o Rio Juqueriquerê, para a construção de Quiosques.

 

         Art. 2º -  A permissão de que trata este Decreto somente será outorgada aos interessados que possuírem licença municipal para a exploração de comércio de “traillers”, localizadas na faixa de praia referida no artigo anterior.

 

         Art. 3º - As permissões serão outorgadas pelo prazo de cinco (05) anos, a contar da data da assinatura dos respectivos termos, e os permissionários assumirão o encargo de executar as obras ás suas próprias custas e sem qualquer ônus para o Município e de acordo com os projetos técnicos elaborados pela Prefeitura.

 

         §1º - Findo o prazo de permissão, conforme previsto neste artigo, as construções passarão para o patrimônio e administração da Prefeitura, sem qualquer indenização aos permissionários.

 

         §2º - Durante a vigência do Termo de Permissão, os permissionários poderão obter autorização da Prefeitura para a execução de obras e melhorias necessárias ao bom funcionamento e não constantes do projeto originário.

 

         §3º - Findo o prazo de permissão de que trata este artigo, as obras e melhorias realizadas na forma do parágrafo anterior, também serão incorporadas ao patrimônio municipal, sem direito aos permissionários quanto à sua retenção ou indenização.

 

         Art.4º - As obras referidas no art. 1º , deverão ser iniciadas no máximo trinta (30) dias após a assinatura do Termo de Permissão e, deverá estar concluídas 8 (oito) meses da data de seu início.

 

         Art. 5º - Os interessados em obter a permissão de que trata este Decreto, deverão apresentar seu pedido através de requerimento protocolizado na Prefeitura.

 

         Parágrafo único- Ao proprietário de “traillers” que tiver deixado de requerer a permissão, será concedida licença para funcionamento, com o prazo de validade até 31 de dezembro de 1993, após o que deverá desocupar o local onde estiver instalado e, cessar suas atividades.

 

         Art. 6º - O Chefe do Poder Executivo prorrogará os prazos das permissões por período igual ao do   desde que haja interesse dos permissionários e desde que não tenham infringido qualquer dos dispositivos deste Decreto, ou quaisquer das cláusulas  do Termo de Permissão.

 

         Parágrafo único- Decorrido os prazos estabelecidos no art. 3º  e no “caput” deste artigo, ou na hipótese de desinteresse dos permissionários, ou ainda, em caso de revogação da permissão por infringência de dispositivos deste Decreto ou de cláusulas do Termo respectivo, será publicado edital de chamamento dos interessados em obter permissão de uso para a exploração comercial  dos Quiosques.

 

         Art. 7º- Decorrido o prazo previsto no artigo anterior e havendo prorrogação, os permissionários arcarão com os encargos referentes a alugueis que serão fixados, para cada unidade, por comissão designada pelo Prefeito, composta por dois permissionários, dois representantes da Prefeitura e um representante da Associação dos Corretores de Imóveis do Litoral Norte de Caraguatatuba.

 

         Art. 8º - A permissão de que trata este Decreto será concedida a título precário, de forma pessoal, podendo sua transferência a terceiros, sem prévia anuência da Prefeitura.

 

         Art. 9º - A exploração comercial dos Quiosques consistirá na venda de produtos alimentícios próprios para a comercialização nas praias.

 

         §1º - A venda de produtos que não sejam próprios para a comercialização em praias, bem como eventual prestação de serviços, somente poderá ser realizada mediante a prévia licença  da Prefeitura que poderá autorizar ou negar a licença em função da adequação e oportunidade do pedido ao interesse público.

 

 

         §2º - A critério do Executivo, determinados produtos serão tabelados, e seus preços somente poderão ser majorados por autorização expressa, após pedido formulado pelos permissionários, devidamente justificado.

 

         Art. 10 – Os permissionários estarão sujeitos à fiscalização da Prefeitura, quanto ao cumprimento dos deveres constantes deste Decreto e do Termo de Permissão à obediência ao tabelamento de preços, à preservação da higiene, da moral, dos bons costumes e do sossego público, a limpeza do local objeto de permissão de uso e suas proximidades e às demais normas vigentes.

 

         Art. 11- A partir do dia 1º de julho de 1993, na faixa de praia referida no artigo 1º , fica proibida a exploração comercial por “traillers” ou semelhantes, extinguindo-se, na mesma data, as licenças respectivas, devendo tais instalações ser removidas pelos seus proprietários, sob pena de remoção forçada e apreensão pela Municipalidade, além das demais sanções pertinentes.

 

         Art. 12- Os permissionários, em razão de condição contida no art. 2º , a partir do término da construção de Quiosques, perderão as respectivas licenças para a exploração comercial por meio de “traillers”, devendo proceder as remoções dos mesmos, concomitantemente à utilização dos Quiosques.

 

 

         Art. 13- Em caso de revogação da permissão antes do prazo previsto nos artigos 3º e 6º deste Decreto, sem justa causa motivada pelo permissionário, caberá ao mesmo indenização por perdas e danos a ser apurada em processo próprio.

 

         Art. 14- Em caso de infringência de quaisquer dispositivos deste Decreto, sem justa causa motivada pelo permissionário à Prefeitura assiste o direito de revogar a permissão, através de ato devidamente motivado e justificado, não cabendo ao permissionário qualquer outra forma de ressarcimento.

 

         Art. 15- Os casos omissos serão soberanamente resolvidos pelo Prefeito.

 

         Art. 16- Este Decreto entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário.

 

          Esse Decreto, como se verá, é verticalmente incompatível com a Constituição do Estado de São Paulo, em especial com as seguintes disposições:

 

           “Art. 111 – A administração pública direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes do Estado, obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, razoabilidade, finalidade, motivação e interesse público.

 

           Art. 117 – Ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações.

 

           Art. 144 - Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por Lei Orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.”

 

         A Constituição em vigor consagrou o Município como entidade federativa indispensável ao nosso sistema federativo, integrando-o na organização político-administrativa e garantindo-lhe plena autonomia, como se nota da exegese dos arts. 1.º, 18, 29, 30 e 34, VI, “c” da Constituição Federal.

 

         Na definição de José Afonso da Silva, autonomia é a capacidade ou poder de gerir os próprios negócios, dentro de um círculo prefixado por entidade superior, que no caso é a Constituição.  Verifica-se, pois, que essa autonomia consagrada ao Município não tem caráter absoluto e soberano, ao contrário, encontra limites nos princípios emanados dos poderes públicos e dos pactos fundamentais, que instituíram a soberania de um povo.

 

         A autonomia municipal assenta-se em quatro capacidades básicas: (a) auto-organização, mediante a elaboração de lei orgânica própria, (b) autogoverno, pela eletividade do Prefeito e dos Vereadores as respectivas Câmaras Municipais, (c) autolegislação, mediante competência de elaboração de leis municipais sobre áreas que são reservadas à sua competência exclusiva e suplementar, (d) auto-administração ou administração própria, para manter e prestar os serviços de interesse local.

 

         Nessas quatro capacidades, encontram-se caracterizadas a autonomia política (capacidades de auto-organização e autogoverno), a autonomia normativa (capacidade de fazer leis próprias sobre matéria de sua competência), a autonomia administrativa (administração própria e organização dos serviços locais) e a autonomia financeira (capacidade de decretação de seus tributos e aplicação de suas rendas, que é uma característica da auto-administração), conforme o mesmo autor.                 

         Por força da autonomia administrativa de que foram dotadas, as entidades municipais são livres para administrar seus próprios interesses, segundo suas conveniências locais. Mas a liberdade conferida aos Municípios para organizar os seus próprios serviços não é ampla e ilimitada; ela se subordina às seguintes regras fundamentais e impostergáveis: (a) a que exige que essa organização se faça por lei; (b) a que prevê a competência exclusiva da entidade ou Poder interessado; e (c) a que impõe a observância das normas constitucionais federais e estaduais pertinentes.

 

         Todavia,  verifica-se que o Prefeito de Caraguatatuba através do referido decreto, concedeu a outorga de permissão de uso nas áreas pré-estabelecidas, na faixa de praia compreendida entre o Rio tabatinga e o Rio Juqueriquerê,  a determinadas pessoas para construção e exploração de quiosques sem a devida  licitação, como lhe era exigido segundo a regra inscrita no art. 117, da Constituição do Estado de São Paulo.

 

         Maria Sylvia Zanella Di Pietro, lembrando o conceito de José Roberto Dromi define licitação “como o procedimento administrativo pelo qual um ente público, no exercício da função administrativa, abre a todos os interessados, que se sujeitem às condições fixadas no instrumento convocatório, a possibilidade de formularem propostas dentre as quais selecionará e aceitará a mais conveniente para a celebração de contrato”.  É comum na Administração Pública a contratação com terceiros. Consoante leciona Marçal Justen Filho, citando Cirne Lima, “o fim, - e não a vontade -, domina todas as formas de administração”.

 

         A falta de licitação é apenas um dos  vícios materiais encontrados nesse Decreto. Aliás, sobre o tema Marçal Justen Filho afirma: “Deve tomar-se em vista, como ponto de partida, a previsão constitucional de que todas as contratações administrativas serão precedidas de licitação, ressalvadas as exceções indicadas em lei. Portanto, a regra geral será a da licitação prévia.” 

 

         Referido Decreto malferiu, ainda, os princípios da igualdade, da impessoalidade e da moralidade, ao permitir que  determinadas pessoas fossem contempladas com a outorga da permissão de uso para construção e exploração de Quiosques, em área pública, bem de uso comum de todo o povo. É de conhecimento geral que o Poder Público age em nome do Estado, não podendo favorecer quem quer que seja, sob pena de invalidade dos atos que produzir. Para a doutrina, o princípio da impessoalidade ou da finalidade “exige que o ato seja praticado sempre com finalidade pública”, de modo que “o administrador fica impedido de buscar outro objetivo ou de praticá-lo no interesse próprio ou de terceiros.”

        

         Em conseqüência, não só a impessoalidade foi quebrada, mas também a isonomia, pois o favorecimento de alguns em detrimento de outros importa no descumprimento dos mais comezinhos princípios constitucionais, que é o de tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais. Sobre isso, José Afonso da Silva leciona: “Há duas formas de cometer essa inconstitucionalidade. Uma consiste em outorgar benefício legítimo a pessoas ou grupos, discriminando-os favoravelmente em detrimento de outras pessoas ou grupos em igual situação. Neste caso, não se estendeu às pessoas ou grupos discriminados o mesmo tratamento dado aos outros. O ato é inconstitucional, sem dúvida, porque feriu o princípio da isonomia”.

 

          O desprezo à ordem jurídica institucional gera violação ao princípio da moralidade, pois não se pode permitir que a administração pública aja sem isenção e ao arrepio da ordem constitucional.

 

         Portanto, o agente público, incluído aquele que detém mandato eletivo está preso à observação das normas e princípios constitucionais, como previsto no art. 111, da Carta Estadual.

 

         E, no caso em exame isso não ocorreu. Ao permitir que o Município de Caraguatatuba outorgasse a permissão de uso a pessoas determinadas para construção e exploração de quiosques, o Chefe do Poder Executivo local afrontou os mais comezinhos princípios administrativos, quais sejam, o da impessoalidade, da igualdade, da moralidade e o da Licitação.

 

         Assim, afigura-se irrecusável que a legislação em exame é verticalmente incompatível com os arts. 111 e 117 da Constituição do Estado de São Paulo, preceitos esses que são de observância obrigatória pelos Municípios, por força do disposto no art. 144 dessa mesma Carta, impondo-se, por conseguinte, a sua exclusão do ordenamento constitucional em vigor.

 

         Nestes termos, requeiro seja determinado o processamento da presente ação, colhendo-se informações pertinentes do Prefeito e da Câmara      de     Vereadores   de   Caraguatatuba, sobre as quais me

 

manifestarei no momento processual oportuno, vindo, no final, a ser reconhecida e proclamada a inconstitucionalidade do Decreto n. 181, de 30 de dezembro de 1992, do Município de Caraguatatuba, adotando-se, após, as providências necessárias à suspensão definitiva dos efeitos de sua execução.

 

         Requer-se ainda seja citado o Procurador-Geral do Estado, para manifestar-se sobre o ato normativo impugnado.

 

Posteriormente, aguarda-se vista para fins de manifestação final.

 

                                São Paulo,  19 de março de 2009.

 

 

                        Fernando Grella Vieira

                        Procurador-Geral de Justiça

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Protocolado nº  102.071/08 - MP

Interessado:  Promotoria de Justiça Regional do Meio Ambiente do Litoral Norte

Assunto: Inconstitucionalidade do Decreto n. 181, de 30 de dezembro de 1992, do Município de Caraguatatuba.

 

 

 

 

 

 

1.     Distribua-se a petição inicial da ação direta de inconstitucionalidade, em face do Decreto n. 181, de 30 de dezembro de 1992, do Município de Caraguatatuba, junto ao Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

2.     Oficie-se ao interessado, informando-lhe a propositura da ação, com cópia da petição inicial.

 

 

                   São Paulo, 19 de março de 2009.

 

 

 

 

Fernando Grella Vieira

Procurador-Geral de Justiça

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