EXCELENTÍSSIMO SENHOR DESEMBARGADOR PRESIDENTE DO E. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

 

Protocolado n. 102.244/08

Assunto: Inconstitucionalidade das Leis Complementares Municipais de n. 594/2001 e 628/2002, do Município de Lins

 

Ementa: 1. Leis Complementares Municipais de n. 594/2001 e 628/2002, do Município de Lins, ambas de iniciativa parlamentar, dispondo sobre alterações do Código de Posturas do Município (Lei Complementar n. 502/99); 2. Leis verticalmente incompatíveis com a regra da iniciativa reservada e com os princípios da independência e harmonia entre os Poderes, da isonomia e da razoabilidade. Violação ao dever de observância das normas urbanísticas, de segurança, higiene e qualidade de vida; 3. Inconstitucionalidade formal subjetiva pelo vício de iniciativa e pela ofensa ao Princípio da Separação e da Harmonia entre os Poderes; 4. Violação aos arts. 5º, 47, II, 111, 144 e 180, V, (art. 5º, caput, da Constituição do Estado); 5. Ação direta ajuizada.

 

O Procurador-Geral de Justiça do Estado de São Paulo, no exercício da atribuição prevista no art. 116, inciso VI da Lei Complementar Estadual nº 734, de 26 de novembro de 1993 (Lei Orgânica do Ministério Público de São Paulo), em conformidade com o disposto no art.125, § 2º e art. 129, inciso IV da Constituição Federal, e ainda art. 74, inciso VI e art. 90, inciso III da Constituição do Estado de São Paulo, com amparo nas informações colhidas no incluso protocolado (PT n. 102.244/08), vem, respeitosamente, perante esse Egrégio Tribunal de Justiça, promover a presente AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE, com pedido de liminar, em face das Leis Complementares Municipais de n. 594/2001 e 628/2002, ambas do Município de Lins e ambas de iniciativa parlamentar, dispondo sobre alterações do Código de Posturas do Município (Lei Complementar n. 502/99), pelos fundamentos a seguir expostos.

A Lei Complementar Municipal n. 594, de 22 de maio de 2001, cujo projeto é de iniciativa parlamentar (fls. 45), alterou a redação do parágrafo único do art. 43 do Código de Posturas do Município (Lei Complementar n. 502/99), nos seguintes termos:

“Art. 43 – É proibido executar qualquer serviço de propaganda que produza ruído que perturbe o sossego público, antes das dez e depois das vinte horas, aos sábados, domingos e feriados, nas proximidades de hospitais, escolas, asilos, casas de repouso e residenciais.

Parágrafo único – Exclui-se da proibição deste artigo os cultos religiosos, desde que realizados no período compreendido entre as nove e vinte e duas horas, cujo volume de som produzido não ultrapasse setenta decibéis”.

Por sua vez, a Lei Complementar Municipal n. 628, de 4 de março de 2002, também decorrente de projeto de iniciativa parlamentar (fls. 46), alterou a redação do art. 40-A do Código de Posturas do Município (Lei Complementar n. 502/99), que passou a ter a seguinte redação:

“Art. 40-A – A medição do volume de som referente as infrações deste capítulo, excetuando-se o preceituado no artigo 42, feita pela fiscalização da Prefeitura Municipal através do aparelho decibelímetro, será realizada sempre a partir do interior do imóvel do reclamante, acompanhada de duas testemunhas do referido estabelecimento”.

Ocorre, porém, que o Legislativo Municipal não tem legitimidade para deflagrar processo legislativo propondo a alteração do Código de Posturas do Município e dispor sobre a forma de realização de atividades no âmbito do município, além de definir como será desenvolvido o serviço de fiscalização, de forma a se inserir na esfera das atribuições privativas do Chefe do Poder Executivo invadindo a sua esfera de competência, a quem cabe a iniciativa dos projetos de lei que disponham sobre tais matérias.

Por isso, apenas o Prefeito Municipal tem iniciativa para deflagrar processo legislativo para aprovação de leis com o conteúdo das que se pretende ver declaradas como inconstitucionais, sob pena de indevida interferência de um Poder sobre o outro.

A Constituição Estadual estabelece, em seu art. 5º, que:

São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

Por sua vez, o art. 47, II, da Carta Constitucional paulista veicula princípio de observância obrigatória aos municípios:

Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas nesta Constituição (...) exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior da administração estadual (...).

As normas que tratam da reserva de iniciativa, longe de normas de direito estrito, ou de exceção, refletem com sutileza as nuances e a evolução do principio da separação de poderes. As regras de fixação de competência para a iniciativa do processo legislativo têm como corolário o princípio da separação dos poderes, que nada mais é do que o mecanismo jurídico que serve à organização do Estado, definindo órgãos, estabelecendo competências e marcando as relações recíprocas entre esses mesmos órgãos.

Ao Poder Legislativo, como se sabe, é vedada a administração da cidade, tarefa que incumbe, no Município, ao Prefeito, ou ao que, modernamente, chama-se de 'Governo', que tem na lei um dos seus mais relevantes instrumentos. O poder de iniciativa neste campo - administração da cidade - é do Executivo (melhor, do 'Governo'), participando o Poder Legislativo, quando assim determinar a Constituição, apenas a qualidade de aprovar-desaprovar os atos. A hipótese é de administração ordinária, cabendo ao Legislativo apenas o estabelecimento de normas gerais, diretrizes globais, jamais atos pontuais e específicos.

Para Hely Lopes Meirelles , após dizer que “todo o patrimônio municipal fica sob a administração do prefeito”:

“A atribuição típica e predominante da Câmara é a normativa, isto é, a de regular a administração do Município e a conduta dos munícipes no que afeta aos interesses locais. A Câmara não administra o Município; estabelece, apenas, normas de administração. Não executa obras e serviços públicos; dispõe, unicamente, sobre sua execução. Não compõe nem dirige o funcionalismo da Prefeitura; edita, tão-somente, preceitos para sua organização e direção. Não arrecada nem aplica as rendas locais; apenas institui ou altera tributos e autoriza sua arrecadação e aplicação. Não governa o Município; mas regula e controla a atuação governamental do Executivo, personalizado no prefeito.

Eis aí a distinção marcante entre a missão normativa da Câmara e a função executiva do prefeito; o Legislativo delibera e atua com caráter regulatório, genérico e abstrato; o Executivo consubstancia os mandamentos da norma legislativa em atos específicos e concretos de administração”.

As leis sindicadas na presente ação, ambas de iniciativa parlamentar, não contêm proposições gerais e abstratas e, bem analisadas, representam ingerência nas prerrogativas do Prefeito Municipal ao vincular, de forma ilegal, a atuação de órgãos públicos municipais e ao permitir poluição sonora em limite superior ao estabelecimento em legislação federal e, ainda, inviabilizar a eficácia da fiscalização a ser desenvolvida pelo Poder Executivo.

Não pode deixar de ser observado que, por meio das leis impugnadas, o Legislativo impôs restrição à atividade fiscalizatória do Prefeito e dos órgãos subordinados ao Chefe do Poder Executivo, em clara violação ao art. 5º, da Constituição Estadual.

Ocorre que é evidente incumbir ao Executivo o exercício, na sua plenitude do poder de polícia.

Por isso, cumpre verificar que o Poder Legislativo de Lins, ao excluir os cultos religiosos da proibição de produzir ruído que perturbe o sossego público nas proximidades de hospitais, escolas, asilos, casas de repouso e residenciais, acabou por tratar diferentemente situações idênticas, também violando o princípio da isonomia.

Afinal, não há uma razão plausível para que somente tais entes estejam livres das limitações impostas pelo Código de Posturas do Município.

Segundo Hely, poder de polícia “é o mecanismo de frenagem de que dispõe a Administração Pública para conter os abusos do direito individual. Por esse mecanismo, que faz parte de toda a Administração, o Estado detém a atividade dos particulares que se revelar contrária, nociva ou inconveniente ao bem-estar social, ao desenvolvimento e à segurança nacional”.

Ora, o Estado tem o poder-dever de impor determinadas limitações ao administrado, em benefício da própria coletividade. Mas, por conta das malsinadas leis isso não é possível, pois a mesma veda que as entidades excluídas tenham contra si tais espécies de restrição.

Não bastasse, e conforme se disse acima, a legislação impugnada acaba por impedir o Executivo Municipal de exercer o seu poder de polícia sobre as atividades dos estabelecimentos referidos na lei, em clara violação ao interesse público, embora, no dizer de Hely Lopes Meirelles, a finalidade do poder de polícia “é a proteção ao interesse público no seu sentido mais amplo”.

Também não deve ser esquecido que a emissão de ruídos acima dos limites toleráveis pelos seres humanos é qualificada como poluição sonora e, como tal, deve ser controlada e fiscalizada pelo Poder Público.  Estudo publicado pela Organização Mundial de Saúde assinala como efeitos do ruído: perda da audição; interferência com a comunicação; dor, interferência no sono; efeitos clínicos sobre a saúde; efeitos sobre a execução de tarefas; incômodo; efeitos não específicos (Cf. Paulo Affonso Leme Machado, “in” Direito Ambiental Brasileiro, Malheiros Editores, 6.ª ed., p. 482).

Há que se lembrar que a liberdade religiosa (CR., art. 5.º, VI) está assegurada na forma da lei, ou seja, na forma da legislação em vigor (v.g., a  Resolução 001/90-CONAMA e Lei Federal n.º 6.938/81). Nem dentro dos templos, nem fora dos mesmos, podem os praticantes de um determinado credo prejudicar o direito ao sossego e à saúde dos que forem vizinhos, ou estiverem nas proximidades das práticas litúrgicas. Nesse sentido as restrições estabelecidas pela Res. 1/90 CONAMA.

E a Constituição do Estado dispõe de modo expresso que “no estabelecimento de diretrizes e normas relativas ao desenvolvimento urbano, o Estado e os Municípios assegurarão, dentre outras coisas, a observância das normas urbanísticas, de segurança, higiene e  qualidade de vida” (art. 180, inciso V). Afigura-se evidente que a lei em discussão afronta também a referida norma constitucional (art. 180, V, da CE), a qual serve de parâmetro para a aferição de inconstitucionalidade.

Está patente, na situação em exame, que a lei foi editada para satisfazer o interesse de grupos religiosos que não querem empreender gastos para cumprir as exigências urbanísticas impostas pelo Código de Posturas.

Por isso, e considerando, ainda, que a liberdade religiosa não é absoluta, fica claro que o Poder Legislativo não pode propor a alteração do Código de Posturas do Município para inibir a ação fiscalizadora do Chefe do Poder Executivo e dos órgãos da Administração Pública, mesmo porque a ação dos referidos órgãos deve ser voltada à proteção do meio ambiente.

Por conseguinte, ao contribuir para o aumento da poluição sonora, excluindo os templos religiosos da obrigação de respeito ao Código de Posturas, ou impondo condição que descaracteriza e dificulta o poder de fiscalização, os atos normativos em testilha violaram diretamente o texto constitucional estadual.

Também sob a ótica da razoabilidade a lei não subsiste, mesmo porque qual a razão de excluir templos e não excluir outras atividades?  A razoabilidade pressupõe a congruência lógica entre os motivos (pressupostos fáticos) e o ato emanado, tendo em vista a finalidade pública a cumprir. A bem da verdade, não existe nenhuma pertinência lógica entre a situação apresentada e a atuação concreta do Legislativo local, que impôs à Administração uma regra que visa apenas a satisfazer interesses de grupos religiosos. 

E como se sabe, a razoabilidade vem sendo utilizada pelo STF para o controle de constitucionalidade de leis, até porque a liberdade de conformação do legislador é ampla, mas também tem seus limites imanentes e estes são os direitos fundamentais e os princípios e valores constitucionais.  E se a lei provém da mesma função da qual exsurgem  os outros atos de governo (função governamental-normativa) ambas podem ser controladas com as mesmas técnicas.

Na linha do que ficou dito, um dos fundamentos do controle sobre o ato legislativo encontra-se também na razoabilidade. 

Face ao exposto, requer-se:

a) o recebimento da inicial e o regular processamento da presente ação direta até final julgamento;

b) a colheita das informações necessárias dos Excelentíssimos Senhores Prefeito e Presidente da Câmara Municipal de Lins, sobre as quais protesta por manifestação oportuna;

c) a oitiva do douto Procurador-Geral do Estado, nos termos do art. 90, § 2º, da Constituição Estadual;

d) ao final, seja julgada procedente a presente ação, declarando-se a inconstitucionalidade das Leis Complementares Municipais de n. 594/2001 e 628/2002, ambas do Município de Lins, por violação aos arts. 5º, 47, II, 111, 144 e 180, V, todos da Constituição Paulista.

São Paulo, 16 de março de 2009.

 

Fernando Grella Vieira

Procurador-Geral de Justiça

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Protocolado nº  102.244/08 - MP

Interessado:  Promotoria de Justiça de Lins

Assunto: Inconstitucionalidade das Leis Complementares Municipais de n. 594/2001 e 628/2002, do Município de Lins

 

 

 

 

 

 

1.     Distribua-se a petição inicial da ação direta de inconstitucionalidade, em face das Leis Complementares Municipais de n. 594/2001 e 628/2002, ambas do Município de Lins, junto ao Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

2.     Oficie-se ao interessado, informando-lhe a propositura da ação, com cópia da petição inicial.

 

 

                   São Paulo, 16 de março de 2009.

 

 

 

 

Fernando Grella Vieira

Procurador-Geral de Justiça

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