EXCELENTÍSSIMO SENHOR DESEMBARGADOR PRESIDENTE DO E. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

 

Protocolado nº 10432/2011

Assunto: Inconstitucionalidade dos arts. 33, inciso I, letra “e”, da Lei Municipal n. 4.804, de 11 de novembro de 1999 e 77, da Lei Municipal n. 5.365, de 28 de dezembro de 2004, do Município de São Bernardo do Campo, responsáveis pela criação do cargo de Consultor Técnico Jurídico

 

 

Ementa:

Ação direta de inconstitucionalidade. Cargo de comissão de “Consultor Técnico Jurídico” criado pelas Leis Municipais nsº 4.804, de 11 de novembro de 1999 e 5.365, de 28 de dezembro de 2004. Cargo meramente técnico ou burocrático. Inexigibilidade de especial relação de confiança. Violação de dispositivos da Constituição Estadual (art. 111, art. 115 I, II e V, e art. 144). Inconstitucionalidade reconhecida.

O Procurador-Geral de Justiça do Estado de São Paulo, no exercício da atribuição prevista no art. 116, inciso VI, da Lei Complementar Estadual nº 734 de 26 de novembro de 1993, e em conformidade com o disposto no art. 125, § 2º, e no art. 129, inciso IV, da Constituição da República, e ainda no art. 74, inciso VI, e no art. 90, inciso III da Constituição do Estado de São Paulo, com amparo nas informações colhidas no incluso protocolado (PGJ nº 10432/11, que segue como anexo), vem perante esse Egrégio Tribunal de Justiça promover a presente AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE de dispositivos das  Leis Municipais nsº 4.804, de 11 de novembro de 1999 e 5.365, de 28 de dezembro de 2004, do Município de São Bernardo do Campo, que prevêem a existência de cargos de provimento em comissão (Consultor Técnico Jurídico), pelos fundamentos expostos a seguir.

1)Dispositivos impugnados.

A propositura desta ação direta de inconstitucionalidade decorre de representação formulada pelo DD. Promotor de Justiça de São Bernardo do Campo.

Ficou evidenciado que as Leis Municipais nsº 4.804, de 11 de novembro de 1999 e 5.365, de 28 de dezembro de 2004, do Município de São Bernardo do Campo, previram a existência de cargos em comissão em contrariedade aos parâmetros constitucionais existentes nessa matéria.

Nesse sentido, mostra-se oportuno transcrever o art. 33, inciso I, letra “e”, da Lei Municipal n. 4.804, de 11 de novembro de 1999:

“Art. 33. O Anexo 3, Tabela I – QPE-PP-I, Quadro de Pessoal Estatutário, Parte Permanente, Cargos Isolados de Provimento em Comissão, da Lei Municipal n. 2240, de 13 de agosto de 1976, com suas alterações, passa a vigorar com as modificações constantes do Quadro II, que faz parte integrante desta lei, na forma como segue:

I – cargos criados:

(...)

e) 2(dois) Consultor Técnico Jurídico, referência “T”, nível III, GSJ-2”.

Por sua vez, a Lei Municipal de São Bernardo do Campo n. 5.365, de 28 de dezembro de 2004, em seu art. 77, dispõe o seguinte:

“Art. 77. O Anexo 3, Tabela I – QPE-PP-I, Quadro de Pessoal Estatutário, Parte Permanente, cargos Isolados de Provimento em Comissão, da Lei Municipal n. 2.240, de 13 de agosto de 1976, com suas alterações, passa a vigorar com as modificações constantes do Quadro II, que faz parte integrante desta lei”.

Constata-se, pois, que o art. 33, I, “e”, da Lei Municipal n. 4.804, de 11 de novembro de 1999, criou 2 (dois) cargos de Consultor Técnico Jurídico, posteriormente ampliados para 4 (quatro) cargos, em virtude do art. 77 da Lei Municipal n. 5.365, de 28 de dezembro de 2004.

As atribuições dos cargos questionados são as seguintes:

“Auxiliar o Secretário e o Assessor da Secretaria de Assuntos Jurídicos nas decisões, despachos e demais atividades referentes a assuntos técnicos da Pasta; e auxiliar de modo geral a ação administrativa diante da Secretaria, compreendendo matéria jurídica, técnico-legislativa, administrativa, orçamentária e econômico-financeira”.

É perceptível que, nada obstante a descrição das atribuições dos referidos cargos de provimento em comissão, não se identifica em seu perfil o elemento diferencial que poderia justificar o seu provimento sem a realização de concurso público, que em realidade é essencialmente técnico e administrativo.

2)Incompatibilidade vertical com o ordenamento constitucional.

O cargo de Consultor Técnico Jurídico posto em destaque é verticalmente incompatível com a ordem constitucional vigente, em especial com o art. 111, art. 115 incisos I, II e V, e art. 144, todos da Constituição do Estado de São Paulo.

Embora o Município seja dotado de autonomia política e administrativa, dentro do sistema federativo (cf. art. 1º e art. 18 da Constituição Federal), esta autonomia não tem caráter absoluto, pois se limita ao âmbito pré-fixado pela Constituição Federal (cf. José Afonso da Silva, Direito constitucional positivo, 13. ed., São Paulo, Malheiros, 1997, p. 459).

A autonomia municipal deve ser exercida com a observância dos princípios contidos na Constituição Federal e na Constituição Estadual (cf. Luiz Alberto David Araújo e Vidal Serrano Nunes Júnior, Curso de direito constitucional, 9. ed., São Paulo, Saraiva, 2005, p. 285).

A autonomia municipal envolve quatro capacidades básicas: (a) capacidade de auto-organização (elaboração de lei orgânica própria); (b) capacidade de autogoverno (eletividade do Prefeito e dos Vereadores às respectivas Câmaras Municipais); (c) capacidade normativa própria (autolegislação, mediante competência para elaboração de leis municipais); (d) capacidade de autoadministração (administração própria para manter e prestar serviços de interesse local) (Cf. José Afonso da Silva, ob. cit., p. 591).

Nas quatro capacidades acima estão configuradas: (a) a autonomia política (capacidades de auto-organização e de autogoverno); (b) autonomia normativa (capacidade de fazer leis próprias sobre matéria de suas competências); (c) autonomia administrativa (administração própria e organização dos serviços locais); (d) autonomia financeira (capacidade de decretação de seus tributos e aplicação de suas rendas), como se colhe, ainda uma vez, nos ensinamentos de José Afonso da Silva (ob. cit., p. 591).

Para que possa exercer sua autonomia administrativa, o Município deve criar cargos, empregos e funções, mediante atos normativos, instituindo carreiras, vencimentos, entre outras questões, bem como se estruturando adequadamente.

Todavia, a possibilidade de que o Município organize seus próprios serviços encontra balizamento na própria ordem constitucional, sendo necessário que o faça através de lei, respeitando normas constitucionais federais e estaduais relativas ao regime jurídico do serviço público.

A regra, no âmbito de todos os Poderes Públicos, deve ser o preenchimento dos cargos através de concurso público de provas ou de provas e títulos, pois assim se garante a acessibilidade geral (prevista inclusive no art. 37, I da Constituição Federal; bem como no art. 115, I da Constituição do Estado de São Paulo). Essa deve ser a forma de preenchimento dos cargos de natureza técnica ou burocrática.

A criação de cargos de provimento em comissão, de livre nomeação e exoneração, deve ser limitada aos casos em que seja exigível especial relação de confiança entre o governante e o servidor, para que adequadamente sejam desempenhadas funções inerentes à atividade predominantemente política.

Há implícitos limites à criação, por lei, de cargos de provimento em comissão, visto que assim não fosse, estaria na prática aniquilada a exigência constitucional de concurso para acesso aos cargos públicos.

A propósito, anota Hely Lopes Meirelles, amparado em precedente do E. STF, que “a criação de cargo em comissão, em moldes artificiais e não condizentes com as praxes do nosso ordenamento jurídico e administrativo, só pode ser encarada como inaceitável esvaziamento da exigência constitucional do concurso (STF, Pleno, Repr.1.282-4-SP)” (Direito administrativo brasileiro, 33. ed., São Paulo, Malheiros, 2007, p. 440).

Podem ser de livre nomeação e exoneração apenas aqueles cargos que, pela própria natureza das atividades desempenhadas, exijam excepcional relação de confiança e lealdade, isto é, verdadeiro comprometimento político e fidelidade com relação às diretrizes estabelecidas pelos agentes políticos, que vão bem além do dever comum de lealdade às instituições públicas, necessárias a todo e qualquer servidor comum.

É esse o fundamento da argumentação no sentido de que “os cargos em comissão são próprios para a direção, comando ou chefia de certos órgãos, onde se necessita de um agente que sobre ser de confiança da autoridade nomeante se disponha a seguir sua orientação, ajudando-a a promover a direção superior da Administração. Por essas razões percebe-se quão necessária é essa fragilidade do liame. A autoridade nomeante não pode se desfazer desse poder de dispor dos titulares de tais cargos, sob pena de não poder contornar dificuldades que surgem quando o nomeado deixa de gozar de sua confiança” (cf. Diógenes Gasparini, Direito administrativo, 3. ed., São Paulo, Saraiva, 1993, p. 208).

Daí a afirmação de que “é inconstitucional a lei que criar cargo em comissão para o exercício de funções técnicas, burocráticas ou operacionais, de natureza puramente profissional, fora dos níveis de direção, chefia e assessoramento superior (cf. Adilson de Abreu Dallari, Regime constitucional dos servidores públicos, 2. ed., 2. tir., São Paulo, RT, 1992, p. 41, g.n.).

É a natureza do cargo e as funções a ele cometidas pela lei que estabelece o imprescindível “vínculo de confiança” (cf. Alexandre de Moraes, Direito constitucional administrativo, São Paulo, Atlas, 2002, p. 158), que justifica a dispensa do concurso. Daí o entendimento de que tais cargos devam ser destinados “apenas às atribuições de direção, chefia e assessoramento” (cf. Odete Medauar, Direito administrativo moderno, 5. ed., São Paulo, RT, p. 317).         

Essa também é a posição do E. STF (ADI-MC 1141/GO, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, J. 10/10/1994, Pleno, DJ 04-11-1994, PP-29829, EMENT VOL-01765-01 PP-00169).

Escrevendo na vigência da ordem constitucional anterior, mas em lição plenamente aplicável ao caso em exame, anotava Márcio Cammarosano a existência de limites à criação de cargos em comissão pelo legislador. A Constituição objetiva, com a permissão para criação de tais cargos:

 “propiciar ao Chefe de Governo o seu real controle mediante o concurso, para o exercício de certas funções, de pessoas de sua absoluta confiança, afinadas com as diretrizes políticas que devem pautar a atividade governamental. Não é, portanto, qualquer plexo unitário de competências que reclama seja confiado o seu exercício a esta ou aquela pessoa, a dedo escolhida, merecedora da absoluta confiança da autoridade superior, mas apenas aquelas que, dada a natureza das atribuições a serem exercidas pelos seus titulares, justificam exigir-se deles não apenas o dever elementar de lealdade às instituições constitucionais e administrativas a que servirem, comum a todos os funcionários, como também um comprometimento político, uma fidelidade às diretrizes estabelecidas pelos agentes políticos, uma lealdade pessoal à autoridade superior (...). Admite-se que a lei declare de livre provimento e exoneração cargos de diretoria, de chefia, de assessoria superior, mas não há razão lógica que justifique serem declarados de livre provimento e exoneração cargos como os de auxiliar administrativo, fiscal de obras, enfermeiro, médico, desenhista, engenheiro, procurador, e outros mais, de cujos titulares nada mais se pode exigir senão o escorreito exercício de suas atribuições, em caráter estritamente profissional, técnico, livres de quaisquer preocupações e considerações de outra natureza” (Provimento de cargos públicos no direito brasileiro, São Paulo, RT, 1984, p. 95/96).

No caso em exame, evidencia-se claramente que o cargo impugnado nesta ação direta destina-se ao desempenho de atividade meramente burocrática ou técnica, que não exige, para seu adequado desempenho relação de especial confiança.

Em outras palavras, a descrição das atribuições não descreve qualquer atividade que exija, concreta e especificamente, especial relação de confiança, de sorte a permitir o provimento do cargo sem a realização de concurso.

Com a devida vênia, ao descrever atribuição que se mostra obscura, o legislador municipal apenas dissimulou a destinação de cargos a atividades que seguramente são de natureza técnica, e cujo preenchimento teria que ocorrer através de certame regular.

Admitir como válida, do ponto de vista constitucional, a criação de cargos em comissão que não ostentam os pressupostos para tanto, é dar aos dispositivos constitucionais que envolvem a regra do concurso e à sua exceção, interpretação equivocada, meramente literal.

Cumpre recordar que as exceções devem ser interpretadas restritivamente (Carlos Maximiliano, Aplicação do direito, 18. ed., Rio de Janeiro, Forense, 1999, p. 225).

Note-se que o cargo em comissão glosado nesta ação direta revela posto em que não se vislumbra qualquer exigência de especial relação de confiança.

Justifica-se, deste modo, a afirmação de que tal cargo não é de natureza tal que permita, sob o perfil dos limites constitucionais existentes na matéria em exame, o provimento em comissão.

É necessário ressaltar que a posição aqui sustentada encontra esteio em julgados desse E. Tribunal de Justiça (ADI 111.387-0/0-00, j. em 11.05.2005, rel. des. Munhoz Soares; ADI 112.403-0/1-00, j. em 12 de janeiro de 2005, rel. des. Barbosa Pereira; ADI 150.792-0/3-00, julgada em 30 de janeiro de 2008, rel. des. Elliot Akel; ADI 153.384-0/3-00, rel. des. Armando Toledo, j. 16.07.2008, v.u.).

Cabe também registrar que entendimento diverso do aqui sustentado significaria, na prática, negativa de vigência ao art. 115, incisos I, II e V, da Constituição Estadual, bem como ao art. 37 incisos I, II e V, da Constituição Federal, cuja aplicabilidade à hipótese decorre do art. 144 da Carta Estadual.

3)Conclusão e pedido.

Diante de todo o exposto, aguarda-se o recebimento e processamento da presente ação declaratória, para que ao final seja ela julgada procedente, reconhecendo-se a inconstitucionalidade do cargo de provimento em comissão (CONSULTOR TÉCNICO JURÍDICO), que foi previsto pelos arts. 33, inciso I, letra “e”, da Lei Municipal n. 4.804, de 11 de novembro de 1999 e 77 da Lei Municipal n. 5.365, de 28 de dezembro de 2004, do Município de São Bernardo do Campo.

Requer-se, ainda, sejam requisitadas informações à Câmara Municipal e ao Senhor Prefeito Municipal de São Bernardo do Campo, bem como posteriormente citado o Procurador-Geral do Estado para manifestar-se sobre o ato normativo impugnado. Posteriormente, aguarda-se vista para fins de manifestação final.

Termos em que,

Aguarda-se deferimento.

São Paulo, 18 de abril de 2011.

 

        Fernando Grella Vieira

        Procurador-Geral de Justiça

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Protocolado nº 10432/2011

Assunto: Inconstitucionalidade dos arts. 33, inciso I, letra “e”, da Lei Municipal n. 4.804, de 11 de novembro de 1999 e 77, da Lei Municipal n. 5.365, de 28 de dezembro de 2004, do Município de Guarulhos, responsáveis pela criação do cargo de Consultor Técnico Jurídico

 

 

1.    Distribua-se a inicial da ação direta de inconstitucionalidade.

2.    Oficie-se ao interessado, com o envio de cópias, comunicando-se a propositura da ação.

3.    Cumpra-se.

São Paulo, 18 de abril de 2011.

 

 

        Fernando Grella Vieira

        Procurador-Geral de Justiça

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