Excelentíssimo
Senhor Desembargador Presidente do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São
Paulo
Protocolado
nº105.284/07
Assunto:
Inconstitucionalidade da Lei Municipal nº1.867, de 04 de abril de 2005, do
Município de Guaiçara.
Ementa: 1)Criação de benefício previdenciário
(complementação de aposentadoria) sem a correspondente fonte de custeio total
(art.195 §5º da CF c.c. art.144 e 218 da CE). 2)Benefício incompatível com o
interesse público e exigências do serviço (art.128 da CE). 3)Violação do princípio
da moralidade administrativa (art.111 da CE). 4)Inconstitucionalidade
reconhecida |
O
Procurador-Geral de Justiça do Estado de São Paulo, no exercício de suas
atribuições (art.116 VI da Lei Complementar Estadual nº734/93 - Lei Orgânica do
Ministério Público de São Paulo -; art.125 §2º e 129 IV da Constituição Federal;
art.74 VI e art.90 III da Constituição do Estado de São Paulo), com amparo nas
informações colhidas no incluso protocolado (PGJ nº105.284/07) vem perante esse
Egrégio Tribunal de Justiça promover a presente AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE da Lei Municipal nº1.867, de 04 de abril de 2005, do Município de Guaiçara,
pelos fundamentos a seguir expostos.
1)Do ato normativo impugnado.
Anote-se
inicialmente, que o presente protocolado foi instaurado por força da provocação
do E. Tribunal de Contas do Estado de São Paulo, tirada nos autos do processo
nºTC-000974/026/05, referentes às Contas do Município de Guaiçara no exercício
de 2005 (fls.4).
A
Lei Municipal nº1.867, de 04 de abril de 2005, do Município de Guaiçara, que,
conforme respectiva rubrica, “Institui a
Complementação de Proventos de Aposentadoria aos Servidores da Câmara
Municipal”, tem a seguinte redação:
“Art.1º. Fica
o Poder Legislativo Municipal autorizado a pagar aos seus servidores, uma
Complementação dos Proventos de Aposentadoria a serem pagos pelo INSS ou pelo
órgão previdenciário a que estiver subordinado.
Parágrafo
único. Os valores a serem pagos a Título de Complementação serão
correspondentes à diferença entre a paga pelo INSS ou outro órgão
previdenciário e a remuneração paga aos servidores da ativa, obedecido o
respectivo Quadro Geral de Cargos Públicos dos Servidores da Câmara Municipal
de Guaiçara.
Art.2º. Farão
jus à Complementação referida no art.1º, todo servidor que se aposentar por
tempo de serviço, por invalidez, ou compulsoriamente e que tenha trabalhado na
Câmara Municipal de Guaiçara, os últimos 15 (quinze) anos que anteceder ao
pedido de aposentadoria, comprovados através de documentos registrados na
Secretaria da Câmara Municipal.
Art.3º.
Verificada a morte do servidor, o benefício continuará sendo recebido pelo
herdeiro, obedecendo-se a legislação previdenciária vigente, desde que
apresente atestado firmado por autoridade policial, judiciária, ou ainda,
declaração assinada pela própria e subscrita por 02 (duas) testemunhas,
constando que na época vivia na companhia e sob a dependência econômica do
falecido.
Art.4º. As
despesas com a execução da presente lei, correrão por conta de verba própria do
orçamento da Câmara Municipal.
Art.5º. Esta lei entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário.”
Contudo,
a Lei em exame é verticalmente incompatível com dispositivos da Constituição do
Estado de São Paulo a seguir indicados: art.111; 128; 144; 218.
2)Vício material: criação ou extensão de
benefício sem a correspondente fonte de custeio total.
A Lei nº1.867, 04 de abril de 2005, de
Guaiçara, concedeu o benefício de complementação de aposentadoria aos servidores
da Câmara Municipal, em valores correspondentes à diferença entre a paga pelo
INSS ou outro órgão previdenciário e a remuneração paga aos servidores da
ativa.
A solução contida no ato normativo
violou preceito constitucional expresso, segundo o qual “nenhum benefício ou serviço da seguridade social poderá ser criado,
majorado ou estendido sem a correspondente fonte de custeio total” (art.195
§5º da Constituição Federal, aplicável por força dos art.218 e 144 da
Constituição Estadual).
Pacífico é o entendimento a respeito da
matéria, no Pretório Excelso, conforme inúmeros precedentes, aqui indicados a
título de exemplificação: RE 485.940, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgamento em
9-2-07, DJ de 20-4-07; RE 419.954 e RE 414.741, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgamento
em 9-2-07, DJ de 23-3-07; RE 492.338, Rel. Min. Cezar Peluso, julgamento em
9-2-07, DJ de 30-3-07; ADI 3.205, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgamento em
19-10-06, DJ de 17-11-06; entre outros.
E não é possível considerar como fonte
de custeio suficiente, pura e simplesmente, a previsão legal de que o pagamento
do benefício será feito com recursos constantes de dotação orçamentária
própria. Isso significa, na prática, carrear todo o ônus financeiro ao erário
municipal. Este acaba sendo o único a financiar o pagamento da complementação
de aposentadoria.
Deve-se levar em conta que a Constituição
Federal estabelece, a propósito, a necessidade de respeito à diversidade da
base de financiamento (art.194 VI da CF), bem como a participação, concomitante,
de empregador e trabalhador (art.195 I e II da CF). Ademais, é impossível
desconsiderar, finalmente, o caráter contributivo do sistema previdenciário
(art.201 caput da CF).
A exigência de fonte de custeio total deve ser entendida como fonte de custeio que
satisfaça os pressupostos do sistema estabelecido na Constituição Federal: (a)
diversidade de base de financiamento; (b) caráter contributivo; (c) e
participação de empregador e trabalhadores.
Assim, criar benefício por meio de lei,
sem observar os parâmetros acima, que se resumem na necessidade de previsão de
fonte de custeio total, significa violar frontalmente dispositivos
constitucionais aplicáveis ao tema.
3)Vício material: concessão de benefício
contrário ao interesse público.
Ao conceder o benefício da
complementação de aposentadoria a sem a previsão da correspondente fonte de
custeio total, o legislador feriu diretamente o art.128 da Constituição do
Estado, pelo qual “as vantagens de
qualquer natureza só poderão ser instituídas por lei quando atendam
efetivamente ao interesse público e às exigências do serviço”.
Note-se que o ato normativo impugnado
concedeu benefício que não encontra amparo, de forma alguma, no interesse
público e nas exigências do serviço.
O
único aspecto que o legislador municipal levou em consideração, na hipótese em
exame, foi a melhoria da situação financeira de determinada gama de servidores
públicos inativos ou pensionistas vinculados à Câmara Municipal. A perspectiva
em que, de forma clara, se deu a aprovação da “complementação de
aposentadoria”, foi exclusivamente a do maior conforto e comodidade dos
respectivos beneficiários.
Não há, sequer superficialmente, nenhum
dado no ato normativo em exame que indique a possibilidade de existência de
qualquer interesse público, ou exigência decorrente do serviço que tenha sido
atendida em função da instituição do benefício.
Eis, então, fundamento consistente para
o reconhecimento da inconstitucionalidade da lei.
4)Vício material: violação da moralidade
administrativa.
Há também, na espécie em exame,
violação do princípio da moralidade administrativa, previsto no art.111 da
Constituição do Estado, aplicável aos Municípios por força do art.144 da Carta
Paulista.
Em oportuna síntese, anota Maria Sylvia
Zanella Di Pietro que “sempre que em
matéria administrativa se verificar que o comportamento da Administração ou do
administrado que com ela se relaciona juridicamente, embora em consonância com
a lei, ofende a moral, os bons costumes, as regras de boa administração, os
princípios de justiça e de equidade, a idéia comum de honestidade, estará
havendo ofensa ao princípio da moralidade administrativa” (Direito Administrativo, 19ª ed., São
Paulo, Atlas, 2006, p.94).
Não há dúvida de que, na hipótese,
houve ofensa à moralidade administrativa. O legislador municipal optou por
conceder benefício para servidores municipais aposentados e pensionistas do
Município, sem fonte de custeio total, ausente o interesse público, e fora de
qualquer perspectiva das exigências do serviço.
Sabe-se das dificuldades orçamentárias
que normalmente assolam as administrações municipais, e da existência de
assuntos que são presumivelmente prioritários como a saúde e educação dos
munícipes, entre outros. Diante disso, sem dúvida alguma colide com a
moralidade exigida do administrador a aplicação de recursos públicos em
benefício exclusivo (e no interesse estritamente privado) de determinada
categoria de servidores do Município.
Tamanha liberdade de ação
administrativa (que não se confunde com discrição, identificando-se sim com o
arbítrio), contraria a necessidade de respeito a valores imanentes à gestão de
verbas públicas. Abre-se ensejo, com fundamento na equivocada lei, para
favorecimento que não se coaduna com a administração de recursos que, em última
análise pertencem à própria sociedade local.
Tal solução fere uma concepção mais
ampla de justiça e equidade, e por isso também ofende a moralidade
administrativa. Daí a necessidade de reconhecimento da inconstitucionalidade.
Uma última observação.
Há notícia de que o mesmo benefício vem
sendo pago a aposentados e pensionistas do Poder Executivo Municipal, por força
da Lei Municipal nº1.043, de 19 de agosto de 1986 (fls.18). Como não é possível
impugnar, no controle concentrado de normas, diploma anterior à Constituição,
visto que o conflito, na hipótese, resolve-se pela revogação tácita da
legislação anterior incompatível com a nova ordem constitucional (cf. STF,
Pleno, ADI 2, Rel. Min. Paulo Brossard, julgamento em 6-2-92, DJ de 21-11-97;
na doutrina, confira-se de Oswaldo Luiz Palu, Controle de constitucionalidade, 2ªed., São Paulo, RT, 2001, p.225;
bem como Clèmerson Merlin Clève, A
fiscalização abstrata da constitucionalidade no direito brasileiro, 2ªed.,
São Paulo, RT, 2000, p 219 e ss.), foram adotadas providências para análise da
hipótese, na perspectiva do controle incidental da legitimidade constitucional
do referido ato normativo (encaminhamento à Promotoria de Justiça com
atribuições para análise do caso).
5)Conclusão e pedido.
Por todo o exposto, evidencia-se a
necessidade de reconhecimento da inconstitucionalidade da norma aqui apontada.
Assim, aguarda-se o recebimento e
processamento da presente ação declaratória, para que ao final seja julgada
procedente, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei Municipal nº1.867, de
04 de abril de 2005, do Município de Guaiçara.
Requer-se ainda sejam requisitadas
informações à Câmara Municipal de Guaiçara, bem como posteriormente citado o
Procurador-Geral do Estado para manifestar-se sobre o ato normativo impugnado.
Posteriormente, aguarda-se vista para
fins de manifestação final.
São Paulo, 30 de maio de 2008.
Fernando Grella Vieira
Procurador-Geral de Justiça