EXCELENTÍSSIMO SENHOR DESEMBARGADOR PRESIDENTE DO E. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

Protocolado nº 105.636/2010

Assunto: Inconstitucionalidade da Lei n. 2.067, de 06 de agosto de 2010, do Município de Gália.

 

Ementa: Ação direta de inconstitucionalidade em face da Lei nº 2.067, de 06 de agosto de 2010, do Município de Gália, que dispõe sobre a aplicação de penalidades administrativas de trânsito no Município de Gália, quanto às infrações de sua competência definidas no Código de Trânsito Brasileiro. Projeto de autoria de Vereador. Lei que dispõe sobre matéria de competência da União, violando, em conseqüência, o Princípio Federativo. Ademais, trata-se de matéria reservada ao Chefe do Poder Executivo, eis que implica em ato de gestão administrativa. Violação do princípio da separação dos poderes. Ofensa aos artigos  1º, 5º;  47, II e XIV; 144, da CE. Pedido para que se declare a inconstitucionalidade da lei.

 

 

O Procurador-Geral de Justiça do Estado de São Paulo, no exercício da atribuição prevista no art. 116, inciso VI, da Lei Complementar Estadual nº 734, de 26 de novembro de 1993 (Lei Orgânica do Ministério Público de São Paulo), em conformidade com o disposto no art. 125, § 2º e art. 129, inciso IV, da Constituição Federal, e ainda art. 74, inciso VI e art. 90, inciso III da Constituição do Estado de São Paulo, com amparo nas informações colhidas no incluso protocolado, vem, respeitosamente, perante esse Egrégio Tribunal de Justiça, promover a presente

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE

em face da Lei n. 2.067, de 06 de agosto de 2.010, do Município de Gália, que “dispõe sobre a aplicação de penalidades administrativas de trânsito no Município de Gália, quanto às infrações de sua competência definidas no Código de Trânsito Brasileiro” pelos fundamentos a seguir expostos.

1. DO ATO NORMATIVO IMPUGNADO.

A Lei n. 2.067, de 06 de agosto de 2.010, do Município de Gália, apresenta a seguinte redação:

Art. 1º. Fica estabelecida na circunscrição de Gália, Estado de São Paulo, como providência educativa, a aplicação de penalidade de advertência por escrito à infração de natureza leve ou média, passível de ser punida com multa, não sendo reincidente o infrator, na mesma infração, nos últimos doze meses, considerando o prontuário do infrator.

Art. 2º - É obrigatória a abordagem do infrator de trânsito pelo Agente de Autoridade de Trânsito do Município de Gália, determinando a parada para fiscalização de documentos, autuação ou outros fins educacionais, mediante dois silvos breves.

Parágrafo Único - Na impossibilidade, o Agente de Trânsito deverá pormenorizar os motivos que impediram a autuação pessoal do infrator, além de apresentar características pessoais do mesmo, ficando vedada anotação lacônica “prosseguiu na marcha”.

Art. 3º - Esta lei entrará em vigor na data de sua publicação revogadas as disposições em contrário”.

Contudo, é possível afirmar que a Lei impugnada ofende frontalmente os seguintes dispositivos da Constituição do Estado de São Paulo:

Artigo 1º - O Estado de São Paulo, integrante da República Federativa do Brasil, exerce as competências que não lhe são vedadas pela Constituição Federal.

Art.5º - São Poderes do Estado, independentes e Harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

Artigo 144 - Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.”

 É o que será demonstrado a seguir.

2. VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO FEDERATIVO.

 

Um dos princípios constitucionais estabelecidos é o denominado princípio federativo, que está assentado nos arts. 1º e 18 da Constituição da República, bem como no art. 1º da Constituição Paulista.

Como é cediço, a Constituição da República estabelece a repartição constitucional de competências entre as diversas esferas da federação brasileira. E a repartição de competências entre os entes federados é o corolário mais evidente do princípio federativo.

Referindo-se aos princípios fundamentais da Constituição, que revelam as opções políticas essenciais do Estado, José Afonso da Silva aponta que entre eles podem ser inseridos, entre outros, “os princípios relativos à existência, forma, estrutura e tipo de Estado: República Federativa do Brasil, soberania, Estado Democrático de Direito (art. 1º)” (Curso de direito constitucional positivo, 13ªed., ed., São Paulo, Malheiros, 1997, p. 96, g.n.).

Um dos aspectos de maior relevo, e que representa a dimensão e alcance do princípio do pacto federativo, adotado pelo Constituinte em 1988, é justamente o que se assenta nos critérios adotados pela Constituição Brasileira para a repartição de competências entre os entes federativos, bem como a fixação da autonomia, e dos respectivos limites, dos Estados, Distrito Federal e Municípios, em relação à União.

Anota a propósito Fernanda Dias Menezes de Almeida que “avulta, portanto, sob esse ângulo, a importância da repartição de competências, já que a decisão tomada a respeito é que condiciona a feição do Estado Federal, determinando maior ou menor grau de descentralização.” Daí a afirmação de doutrinadores no sentido de que a repartição de competências é “’a chave da estrutura do poder federal’, ‘o elemento essencial da construção federal’, ‘a grande questão do federalismo’, ‘o problema típico do Estado Federal’” (Competências na Constituição Federal de 1988, 4ªed., São Paulo, Atlas, 2007, p. 19/20).

Não pairaria qualquer dúvida a respeito da inconstitucionalidade de proposta de emenda constitucional ou de lei que sugerisse, por exemplo, a extinção da própria Federação: a Constituição veda, como visto, proposta de emenda “tendente a abolir”, entre outros, “a forma federativa de Estado” (art. 60, § 4º, inciso I da CR/88).

A preservação do princípio federativo tem contado com a anuência do E. STF, pois como destacado em julgado relatado pelo Min. Celso de Mello:

"(...) a idéia de Federação — que tem, na autonomia dos Estados-membros, um de seus cornerstones — revela-se elemento cujo sentido de fundamentalidade a torna imune, em sede de revisão constitucional, à própria ação reformadora do Congresso Nacional, por representar categoria política inalcançável, até mesmo, pelo exercício do poder constituinte derivado (CF, art. 60, § 4º, I)." (HC 80.511, voto do Min. Celso de Mello, julgamento em 21-8-01, DJ de 14-9-01).

 

 

 

 

A legislação impugnada,  viola o artigo 144 da Constituição de São Paulo, que remete ao artigo 30 da Constituição Federal. Segundo este, os Municípios só poderão legislar sobre assuntos de interesse local (inciso I).

Não é o que se vê na Lei nº. 2.067, de 06 de agosto de 2010, que avançou em matéria estranha à sua competência.  Isto porque, disciplinou  matéria específica do Código de Trânsito Brasileiro. É que a Constituição Federal, no artigo 22, inc. XI, restringe à União a competência para legislar sobre “trânsito e transporte”.

Vê-se que a lei municipal não se restringe a suplementar a legislação federal.

Pelo contrário, a contraria.

Para Pinto Ferreira, a expressão “interesse local” se refere a “matérias específicas dos Municípios” (Comentários à Constituição Brasileira, São Paulo, Saraiva, 1990, p. 2/277). Comenta Manoel Gonçalves Ferreira Filho que “o texto em estudo refere-se a 'interesse local' e não mais a 'peculiar interesse'. Forçoso é concluir, pois, que a constituição restringiu a autonomia municipal e retirou de sua competência as questões que, embora de seu interesse também, são do interesse de outros entes” (Comentários à Constituição Brasileira de 1988, São Paulo, Saraiva, 1990, p. 1/218).

Especificamente sobre legislação em matéria de trânsito, observa Hely Lopes Meirelles:

“De um modo geral, pode-se dizer que cabe à União legislar sobre os assuntos nacionais de trânsito e transporte, ao Estado-membro compete regular e prover os aspectos regionais e a circulação intermunicipal em seu território, e ao Município cabe a ordenação do trânsito urbano, que é de seu interesse local (CF, art. 30, I e V). (...) Na competência do Município insere-se, portanto, a fixação de mão e contramão nas vias urbanas, limites de velocidade e veículos admitidos em determinadas áreas e horários, locais de estacionamento, estações rodoviárias, e tudo o mais que afetar a vida da cidade” (Direito municipal brasileiro, São Paulo, Malheiros, 2000, pp. 417 e 419).

Diógenes Gasparini também comenta:

 “No que respeita à competência legislativa do Município, em matéria de trânsito, podemos afirmar, seguramente, não se tratar de matéria de interesse local, haja vista ter sido reservada expressamente e de forma privativa, à União, consoante dispõe o art. 22, inc. XI, da Constituição da República. (...) Com efeito, nas responsabilidades legislativas privativas da União, só se admite, excepcionalmente, a atuação dos Estados e Municípios, mediante lei complementar e, mesmo assim, sobre questões específicas, conforme faculta o parágrafo único, do art. 22, do Estatuto Supremo” (Revista de Direito Administrativo, nº. 212, abril/junho, 1998, pp. 175-194).

Por essa linha de raciocínio, pode-se afirmar que a Lei Municipal ao regular matéria cuja competência é do legislador federal, desrespeitou a repartição constitucional de competências, violando o princípio federativo.

3. VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA SEPARAÇÃO DE PODERES.

A Lei n. 2.067/2.010 é fruto de iniciativa parlamentar, sendo por mais essa razão verticalmente incompatível com o nosso sistema constitucional, na medida em que viola o princípio da separação de poderes.

É ponto pacífico na doutrina bem como na jurisprudência que ao Poder Executivo cabe primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de planejamento, organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder Público. De outra banda, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e abstração.

Em que pese a relevante intenção do parlamentar, o fato é que a lei impugnada interfere no âmbito da gestão administrativa, e como tal, é inconstitucional.

Referido diploma, na prática, invadiu a esfera da gestão administrativa, que cabe ao Poder Executivo, e envolve o planejamento, a direção, a organização e a execução de atos de governo. Isso equivale à prática de ato de administração, de sorte a malferir a separação dos poderes.

Cumpre recordar aqui o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que “a Prefeitura não pode legislar, como a Câmara não pode administrar. Cada um dos órgãos tem missão própria e privativa: a Câmara estabelece regra para a Administração; a Prefeitura a executa, convertendo o mandamento legal, genérico e abstrato, em atos administrativos, individuais e concretos. O Legislativo edita normas; o Executivo pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art.2º) extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”. Sintetiza, ademais, que “todo ato do Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art. 2º c/c o art. 31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15ªed., atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p. 708 e 712).

Deste modo, quando a pretexto de legislar, o Poder Legislativo administra, editando leis que equivalem na prática a verdadeiros atos de administração, viola a harmonia e independência que deve existir entre os poderes estatais.

Esse E. Tribunal de Justiça tem declarado a inconstitucionalidade de leis municipais de iniciativa parlamentar que interferem na gestão administrativa, com amparo na violação da regra da separação de poderes, conforme ementas de julgados recentes, transcritas a seguir:

“Ação direta de inconstitucionalidade. Lei 9882, de 20 de abril de 2007, do Município de São José do Rio Preto. Obrigatoriedade de ascensoristas nos elevadores dos edifícios comerciais. Violação ao princípio constitucional da independência entre os poderes. Inconstitucionalidade declarada. Pedido julgado procedente.” (TJSP, ADI 149.044-0/8-00, rel. des. Armando Toledo, j. 20.02.2008, v.u.).

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. Lei Municipal de Itapetininga n° 4.979, de 28 de setembro de 2.005, do Município de Itapetininga, que "dispõe sobre a obrigatoriedade de confecção distribuição de material explicativo dos efeitos das radiações remitidas pelos aparelhos celulares e sobre sua correta utilização, e dá outras providências Decorrente de projeto de iniciativa parlamentar, promulgada pela Câmara Municipal depois de rejeitado o veto do Prefeito - Realmente, há que se reconhecer que a Câmara Municipal exorbitou no exercício da função legislativa, interferindo em atividade concreta do Poder Executivo - Afronta aos artigos 5°, 25, e 144 e da Constituição Estadual. JULGARAM PROCEDENTE A AÇÃO.” (TJSP, ADI 134.410-0/4, rel. des. Viana Santos, j. 05.03.2008).

 

4. CONCLUSÃO E PEDIDO.

Por todo o exposto, evidencia-se a necessidade de reconhecimento da inconstitucionalidade da norma aqui apontada.

Assim, aguarda-se o recebimento e processamento da presente Ação Declaratória, para que ao final seja julgada procedente, reconhecendo-se a inconstitucionalidade da Lei nº 2.067, de 06 de agosto de 2010, do Município de Gália, que “dispõe sobre a aplicação de penalidades administrativas de trânsito no Município de Gália, quanto às infrações de sua competência definidas no Código de Trânsito Brasileiro”.

Requer-se ainda sejam requisitadas informações à Câmara Municipal e ao Prefeito Municipal, bem como posteriormente citado o Procurador-Geral do Estado para se manifestar sobre o ato normativo impugnado.

Posteriormente, aguarda-se vista para fins de manifestação final.

 

São Paulo, 31 de agosto de 2010.

                        

 

Fernando Grella Vieira

                         Procurador-Geral de Justiça

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Protocolado nº 105.636/2010

Interessado: Promotoria de Justiça de Gália

Assunto: Inconstitucionalidade da Lei n. 2.067, de 06 de agosto de 2010, do Município de Gália.

 

 

 

 

 

1.    Distribua-se a petição inicial da ação direta de inconstitucionalidade, da lei n. 2.067, de 06 de agosto de 2.010, do Município de Gália, junto ao Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

2.    Oficie-se ao interessado, informando-lhe a propositura da ação, com cópia da petição inicial.

 

                    São Paulo, 31 de agosto de 2010.

 

 

 

 

Fernando Grella Vieira

Procurador-Geral de Justiça

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