EXCELENTÍSSIMO SENHOR DESEMBARGADOR PRESIDENTE DO E. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

Protocolado nº 106.664/2010

Assunto: Inconstitucionalidade do Art. 6º-A da Lei Complementar nº 11, de 17 de dezembro de 1991, acrescentado pela Lei Complementar nº 597, de 25 de maio de 2010, do Município de Marília.

 

Ementa: Ação direta de inconstitucionalidade do art. 6º-A da Lei Complementar nº 11, de 17 de dezembro de 1991, acrescentado pela Lei Complementar nº 597, de 25 de maio de 2010, do Município de Marília, que eleva determinados cargos ao rol dos secretários de governo. Artifício que – dolosamente ou não – afastou a incidência da Súmula Vinculante nº 13 – STF nos cargos de provimento em comissão enumerados no dispositivo. Não cabimento da reclamação. Cargos em questão, de natureza administrativa, denotando o abuso do poder de legislar. Inconstitucionalidade reconhecida por ofensa aos princípios da moralidade e da impessoalidade, previstos no art. 111 da CE.

 

O Procurador-Geral de Justiça do Estado de São Paulo, no exercício da atribuição prevista no art. 116, inciso VI, da Lei Complementar Estadual nº 734, de 26 de novembro de 1993 (Lei Orgânica do Ministério Público de São Paulo), em conformidade com o disposto no art. 125, § 2º e art. 129, inciso IV, da Constituição Federal, e ainda art. 74, inciso VI e art. 90, inciso III, da Constituição do Estado de São Paulo, com amparo nas informações colhidas no incluso protocolado, vem, respeitosamente, perante esse Egrégio Tribunal de Justiça, promover a presente AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE do art. 6º-A da Lei Complementar nº 11, de 17 de dezembro de 1991, acrescentado pela Lei Complementar nº 597, de 25 de maio de 2010, do Município de Marília, pelos fundamentos a seguir expostos.

1. DO ATO NORMATIVO IMPUGNADO

A presente ação direta de inconstitucionalidade está sendo ajuizada em decorrência do acolhimento de representação formulada pelo 9º Promotor de Justiça de Marília e tem por objeto o art. 6º-A da Lei Complementar nº 11, de 17 de dezembro de 1991, acrescentado pela Lei Complementar nº 597, de 25 de maio de 2010, do Município de Marília, assim redigido:

Art. 6º-A – São Secretários de Governo os titulares das Secretarias Municipais, o Chefe de Gabinete, o Procurador-Geral do Município, o Diretor-Executivo do Departamento de Água e Esgoto de Marília – DAEM, o Presidente Executivo do Instituto de Previdência do Município de Marília – IPREMM, o Diretor Presidente da Companhia de Desenvolvimento Econômico de Marília – CODEMAR e o Diretor Presidente da Empresa de Desenvolvimento Urbano e Habitacional de Marília – EMDURB. 

De acordo com a representação, os cargos de Chefe de Gabinete, Procurador-Geral do Município, Diretor-Executivo do Departamento de Água e Esgoto de Marília – DAEM, Presidente Executivo do Instituto de Previdência do Município de Marília – IPREMM, Diretor Presidente da Companhia de Desenvolvimento Econômico de Marília – CODEMAR e Diretor Presidente da Empresa de Desenvolvimento Urbano e Habitacional de Marília – EMDURB possuem funções eminentemente administrativas. Assim, os ocupantes desses cargos não se enquadram na categoria dos agentes políticos, não sendo aceitável, portanto, que sejam incluídos no rol dos Secretários de Governo.

Para a ilustre subscritora, haveria nessa proposição normativa o intuito de burlar a Súmula Vinculante nº 13, do STF, dado que esta não se aplica aos Secretários Municipais. Citam-se na representação exemplos do descumprimento do comando sumulado.

Com a equiparação artificial a Secretários de Governo dos cargos de Chefe de Gabinete, Procurador-Geral do Município, Diretor-Executivo do Departamento de Água e Esgoto de Marília – DAEM, Presidente Executivo do Instituto de Previdência do Município de Marília – IPREMM, Diretor Presidente da Companhia de Desenvolvimento Econômico de Marília – CODEMAR e Diretor Presidente da Empresa de Desenvolvimento Urbano e Habitacional de Marília – EMDURB a lei tornou possível a indicação de parentes da autoridade nomeante para o preenchimento dessas vagas.

Dado que a lei permite, em tese, a prática do nepotismo, ela é, à evidência, contrária ao art. 37 da Constituição Federal, e, no plano estadual, aos arts. 111 e 115 da Constituição Paulista, impondo-se, portanto, a declaração de sua inconstitucionalidade por esse C. Sodalício.

Registre-se, por oportuno, que a opção pela propositura desta ADIN considera que o Supremo Tribunal Federal tem reiteradamente rechaçado reclamações insurgentes da transformação normativa de cargos de Diretores de Departamentos, Assessores, etc. em Secretários, forte no entendimento de que não cabe reclamação pelo descumprimento de súmula vinculante por lei (somente decisões judiciais ou atos administrativos ensejam a reclamação, a teor do art. 7º da Lei n. 11.417/06).

Essa restrição não impede – e a meu ver recomenda – o controle abstrato e concentrado de constitucionalidade de lei criada para transpor a restrição constante da Súmula Vinculante.

É o que se propõe a seguir.

2. FUNDAMENTAÇÃO

Deve-se dizer, de início, que não se põe em disputa a capacidade que tem o Município de organizar a sua estrutura administrativa com ampla liberdade. Essa faculdade decorre de sua autonomia, um verdadeiro atributo constitucional.

A autonomia municipal, porém, não é ilimitada. Em nome dela não é possível, por exemplo, a opção legislativa que, a pretexto de estabelecer uma nova organização administrativa, cria um artifício para burlar a Constituição, permitindo, v.g., a nomeação de parentes do chefe do Executivo para determinados cargos de provimento em comissão, alçados indevidamente ao status de secretários de governo.

A doutrina tradicional classifica os órgãos e cargos públicos, segundo o critério da posição estatal.

São considerados órgãos independentes:

“(...) os originários da Constituição e representativos dos Poderes de Estado – Legislativo, Executivo e Judiciário -, colocados no ápice da pirâmide governamental, sem qualquer subordinação hierárquica ou funcional, e só sujeitos aos controles constitucionais de um Poder pelo outro. Por isso, são também chamados órgãos primários do Estado. Esses órgãos detêm e exercem precipuamente as funções políticas, judiciais e quase-judiciais outorgadas diretamente pela Constituição, para serem desempenhadas pessoalmente por seus membros (agentes políticos, distintos de seus servidores, que são agentes administrativos), segundo normas especiais e regimentais” (Hely Lopes Meirelles. Direito Administrativo Brasileiro, São Paulo: Malheiros, 2003, 28ª ed., p. 69).

Nessa categoria são arroladas as corporações legislativas como o Congresso Nacional, o Senado Federal, a Câmara dos Deputados, as Assembléias Legislativas e as Câmaras de Vereadores e as chefias do Poder Executivo, como a Presidência da República, as Governadorias dos Estados e do Distrito Federal e as Prefeituras Municipais.

Prosseguindo a escala, Hely Lopes Meirelles localiza os órgãos autônomos e os órgãos superiores. Os primeiros estão na cúpula da Administração, imediatamente abaixo dos órgãos independentes e diretamente subordinados a seus chefes, com as seguintes características:

“Têm ampla autonomia administrativa, financeira e técnica, caracterizando-se como órgãos diretivos, com funções precípuas de planejamento, supervisão, coordenação e controle das atividades que constituem sua área de competência. Participam das decisões governamentais e executam com autonomia as suas funções específicas, mas segundo diretrizes dos órgãos independentes, que expressam as opções políticas do Governo.

São órgãos autônomos os Ministérios, as Secretarias de Estado e de Município, a Advocacia-Geral da União e todos os demais órgãos subordinados diretamente aos Chefes dos Poderes, aos quais prestam assistência e auxílio imediatos. Seus dirigentes, em regra, não são funcionários, mas sim agentes políticos nomeados em comissão” (op. cit., p. 70).

Diferente é a natureza dos órgãos superiores:

“(...) são os que detêm poder de direção, controle, decisão e comando dos assuntos de sua competência específica, mas sempre sujeitos à subordinação e ao controle hierárquico de uma chefia mais alta. Não gozam de autonomia administrativa nem financeira, que são atributos dos órgãos independentes e dos autônomos a que pertencem. Sua liberdade funcional restringe-se ao planejamento e soluções técnicas, dentro da sua área de competência, com responsabilidade pela execução, geralmente a cargo de seus órgãos subalternos.

Nessa categoria estão as primeiras repartições dos órgãos independentes e dos autônomos, com variadas denominações, tais como Gabinetes, Secretarias-Gerais, Inspetorias-Gerais, Procuradorias Administrativas e Judiciais, Coordenadorias, Departamentos e Divisões (...)” (op. cit., p. 70).

E se, consoante a mesma lição, os Chefes do Poder Executivo (Presidente da República, Governadores e Prefeitos) e seus auxiliares imediatos (Ministros e Secretários de Estado e de Município) são agentes políticos porque componentes do governo nos seus primeiros escalões mediante investidura em cargos, funções, mandatos ou comissões por nomeação, eleição, designação ou delegação para o exercício de atribuições constitucionais, atuando com plena liberdade funcional no desempenho de suas atribuições com prerrogativas e responsabilidades próprias e privativas (op. cit., pp. 75-77), na categoria de agentes políticos não são incluem os dirigentes de autarquias, departamentos, divisões, diretorias e chefias em virtude do diferenciado status jurídico na organização administrativa.

Os agentes políticos são, na verdade, “os detentores dos cargos da mais elevada hierarquia da organização da Administração Pública ou, em outras palavras, são os que ocupam cargos que compõem sua alta estrutura constitucional. Estão voltados, precipuamente, à formação da vontade superior da Administração Pública ou incumbidos de traçar e imprimir a orientação superior a ser observada pelos órgãos e agentes que lhes devem obediência” (Diogenes Gasparini, Direito administrativo, 13ª. ed., São Paulo, Saraiva, 2008, p. 156, g.n.).

A hipótese guarda semelhança com a de atos normativos que forneciam status de Ministro de Estado a Secretários da Administração Federal e que foi repudiada pela Suprema Corte. Confira-se:

“O parecer do Ministério Público Federal, em parecer da lavra do Il. Procurador-Geral Cláudio Fonteles, expôs o caso e opinou nestes termos (f. 21-4): ‘1. JOSÉ FRITSCH ajuíza a presente reclamação em face de ato praticado pelo Delegado de Polícia do 1º Distrito Policial da Comarca de Chapecó - SC - fls. 07/08 - que instaurou inquérito policial com fim de apurar infrações previstas nos artigos 324, 325, 326 e 327, do Código Eleitoral. 2. Segundo o reclamante, que se encontra no exercício do cargo de Secretário Nacional de Aquicultura e Pesca - fls. 13, a autoridade policial, ora reclamada, é absolutamente incompetente para instruir os autos do inquérito nº 001/03, haja vista o disposto no artigo 38, da MP nº 103/2003, que dispõe sobre a organização da Presidência da República e dos Ministérios: ‘A teor do § 1º do referido artigo, o cargo referido tem prerrogativa, garantias, vantagens e direitos equivalentes aos de Ministro de Estado’ (fls. 03, grifo nosso). 3. Finalmente, pede-se o trancamento do inquérito policial nº 001/03, haja vista a ofensa ao princípio constitucional do juiz natural (fls. 05). 4. Com efeito, a Medida Provisória nº 103, de 1º de janeiro de 2003, convertida na Lei nº 10.683, de 28 de maio de 2003, dispõe expressamente em artigo específico: ‘Art. 38. São criados os cargos de natureza especial de Secretário Especial do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, de Secretário Especial de Aquicultura e Pesca, de Secretário Especial dos Direitos Humanos e de Secretário Especial de Políticas para as Mulheres da Presidência da República. § 1o Os cargos referidos no caput terão prerrogativas, garantias, vantagens e direitos equivalentes aos de Ministro de Estado. § 2o A remuneração dos cargos referidos no caput é de R$ 8.280,00 (oito mil duzentos e oitenta reais)’ (grifo nosso). 5. Nesse ínterim, as prerrogativas concedidas pela lei aos cargos de natureza especial da Presidência da República são equivalentes às conferidas aos Ministro de Estado. Portanto, in casu, a equiparação do cargo de Secretário de Aquicultura e Pesca ao cargo de Ministro de Estado atrai o preceito insculpido no artigo 102, I, ‘c’, da Carta Magna, reconhecendo, dessa forma, a competência dessa Corte para supervisionar e apreciar ao final o inquérito em que figura como indiciado o reclamante. 6. Em caso similar aos presentes autos, diferenciado apenas o cargo, pois se tratava do Advogado-Geral da União, assim decidiu essa Colenda Corte: ‘Foro especial em razão da função (status de Ministro de Estado). Competência para processo e julgamento de Advogado-Geral da União, tendo em vista a edição da Medida Provisória 2.049-22, de 28-8-2000, que transforma o mencionado cargo de natureza especial em cargo de ministro de Estado, atraindo, portanto, a incidência do art. 102, I, c, da CF.’ (Notícia referente ao julgamento do Inq. 1660/DF - Questão de ordem - J. 06..09.2000 - Rel. Ministro SEPÚLVEDA PERTENCE - veiculada no Informativo STF n.º 201)’. 7. Cita-se, ainda, decisão da lavra do eminente relator desta Reclamação proferida no Inquérito nº 1916, cujo indiciado era o Secretário Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, que assessora direta e imediatamente o Presidente da República (art. 21, da Lei 10.683/03), Tarso Fernando Herz Genro. O parecer desta Procuradoria, que se deu no sentido da existência da prerrogativa de foro do Secretário Especial pelas razões acima aduzidas, foi acolhido em sua inteireza (Data da decisão: 07/04/2003, DJ 11/04/2003). 8. Diante do que foi exposto, o reclamante está com razão no tocante a sua prerrogativa, porém seu pedido de trancamento do inquérito policial não procede, porquanto a presente reclamação tem cabimento apenas para preservar a competência do Tribunal ou garantir a autoridade das suas decisões (art. 102, I, ‘l’, CF/88 e art. 156, RISTF). 9. Posto isso, o Ministério Público Federal opina pela competência originária dessa Corte para processar e julgar JOSÉ FRITSCH, em razão de seu cargo de Secretário de Aquicultura e Pesca, e, em consequência disso, requer a subida dos autos do Inquérito Policial nº 001/03, que investiga crimes eleitorais, estes considerados comuns para efeito de demarcação da competência originária desse Tribunal, e que tramita na Comarca de Chapecó-SC. 10. Pela procedência parcial da reclamação.’ Ocorre que em caso semelhante o Pleno do Supremo Tribunal Federal, ao julgar o Inq 2.044 - QO, de que fui relator - j. 17.12.04 -, firmou entendimento em sentido contrário ao pretendido pelo Reclamante. Colhe-se, com efeito, do voto-condutor que proferi na referida assentada: ‘Senhor Presidente, conforme ressaltou o Ministério Público Federal, os autos foram encaminhados a esta Corte, porque o querelado ‘passou a exercer o cargo de Secretário Especial de Aquicultura e Pesca da Presidência da República e, nos moldes do art. 38, § 1º, da Medida Provisória n. 103/2003, é detentor de prerrogativa, garantia, vantagens e direitos equivalentes aos de Ministro de Estado (fls. 896).’ O caso, contudo, não é da competência do Supremo Tribunal Federal. É que o Secretário Especial de Aquicultura e Pesca não é Ministro de Estado, conforme se lê do parágrafo único do art. 25, da L. 10.683/03 (com a redação dada pela L. 10.869/04): ‘(...) Parágrafo único. São Ministros de Estado os titulares dos Ministérios, o Chefe da Casa Civil, o Chefe do Gabinete da Segurança Institucional, o Chefe da Secretaria de Comunicação e Governo e Gestão Estratégica, o Chefe da Secretaria-Geral da Presidência da República, o Chefe da Secretaria de Coordenação Política e Assuntos Institucionais da Presidência da República, o Advogado-Geral da União e o Ministro de Estado do Controle e da Transparência.’ Se o fosse, ademais, não precisaria a lei estender-lhe as ‘prerrogativas, garantias, vantagens e direitos equivalentes aos Ministros de Estado’ (L. 10.683/03, art. 38, § 1º). O Tribunal enfrentou a questão - a propósito de notícia de crime de responsabilidade atribuída ao Secretário de Comunicação Social da Presidência da República - no AgRPet 1199, 05.05.99, quando, relator, acompanhado pela unanimidade do Plenário, proferi este voto - RTJ 169/885-7: ‘Dado que a Constituição deferiu à lei ordinária dispor sobre a 'criação, estruturação e atribuições dos Ministérios e órgãos da administração pública', é na lei que o faça - ainda que à luz do padrão do art. 87 da Carta Magna - que se hão de identificar quais são os Ministros de Estado para efeitos constitucionais. Fê-lo, ao meu ver com precisão, o Ministro Celso de Mello ao sustentar a decisão agravada, antes de ouvir a Procuradoria-Geral: ‘A União Federal, ao dispor sobre a organização administrativa do Poder Executivo, estabeleceu, em medida provisória editada pelo Presidente da República, que os Ministérios são, unicamente, aqueles relacionados no art. 13 da MP nº 1.498-22, de 2.10.96. Esse ato normativo, com força de lei, somente atribuiu a condição formal de Ministro de Estado (a) aos titulares dos Ministérios, expressamente designados em seu texto, (b) ao Chefe da Casa Civil da Presidência da República e (c) ao Chefe do Estado-Maior das Forças Armadas (MP nº 1.498-22, de 2.10.96, art. 13, parágrafo único). O preceito legal em questão é bastante enfático a esse respeito: ‘São Ministros de Estado os titulares dos Ministérios, da Casa Civil da Presidência da República e do Estado-Maior das Forças Armadas’ (grifei). A MP nº 1.498-22, de 2.10.96, no entanto, atribuiu aos titulares de determinados cargos públicos as ‘prerrogativas, garantias, vantagens e direitos equivalentes aos de Ministro de Estado’ (art. 23). A norma em questão, portanto, precisamente por reconhecer que os ocupantes dos cargos de natureza especial não são Ministros de Estado, estendeu-lhes regime jurídico equivalente ao que se aplica àqueles altos agentes políticos incumbidos, constitucionalmente, de auxiliarem o Presidente da República na condução dos negócios de Estado e da Administração Federal. Uma simples análise comparativa entre o preceito inscrito no art. 23 da MP nº 1.498-22/96 (que trata dos ocupantes de cargos de natureza especial) e a regra consubstanciada no art. 22 da mesma medida provisória claramente evidencia que os agentes administrativos que titularizam os cargos de natureza especial não ostentam a condição político-jurídica de Ministro de Estado. Esse cotejo permite constatar que o Presidente da República, ao editar a Medida Provisória em questão, após extinguir o cargo de Ministro de Estado Chefe da Casa Militar da Presidência da República (art. 22), criou o cargo de natureza especial de Chefe da Casa Militar da presidência da República, estendendo-lhe, na mesma norma aplicável ao Secretário de Comunicação Social da Presidência da República, as prerrogativas, garantias, vantagens e direitos equivalentes aos de Ministro de Estado (art. 23). Parece certo que essa extensão meramente legal de prerrogativas próprias de Ministro de Estado, beneficiando quem não ostenta essa elevada condição formal, deve ter repercussão na esfera administrativa, financeira e protocolar, não se projetando, contudo, na dimensão estritamente constitucional. É que a Constituição da República, ao dispor sobre o estatuto jurídico concernente ao Ministro de Estado, prescreveu regras e estabeleceu normas que só se aplicam àqueles que sejam qualificados como Ministro de Estado. Isso significa que somente quem é Ministro de Estado (MP nº 1.498/96, art. 13, parágrafo único) - e não quem a este foi meramente equiparado para efeitos administrativos, financeiros e protocolares - submete-se à disciplina constitucional própria desses qualificados agentes auxiliares do Chefe do Poder Executivo da União, notadamente no que se refere (a) à competência para referendar atos e decretos do Presidente da República (CF, art. 87, parágrafo único, I), (b) à definição do órgão judiciário competente para apreciar mandados de segurança e habeas corpus (CF, art. 105, I, b e c), (c) ao regramento pertinente à remuneração funcional (CF, art. 49, VIII) e (d) ao exercício do direito de comparecer, por sua iniciativa, perante as Casas do Congresso ou qualquer de suas Comissões (CF, art. 50, § 1º). Note-se, inclusive, que a Constituição, ao dispor sobre o poder de interpelação do Congresso Nacional, permite que este possa convocar, além do próprio Ministro de Estado, também, ‘quaisquer titulares de órgãos diretamente subordinados à Presidência da República para prestarem, pessoalmente, informações sobre assunto previamente determinado...’ (CF, art. 50, caput). O legislador constituinte, ao assim dispor, fez clara distinção entre o servidor que é Ministro de Estado e o agente público que, à semelhança do Secretário de Comunicação Social, meramente titulariza órgão diretamente subordinado à Presidência da República. Dentro desse contexto, somente o Ministro de Estado - vale dizer, os titulares de Ministério, o Chefe da Casa Civil da Presidência da República e o Chefe do EMFA (MP nº 1.498/96, art. 13, parágrafo único) - dispõe da prerrogativa de foro ratione muneris perante o STF, nas infrações penais comuns (CF, art. 102, I, c), ou perante o Senado Federal, na hipótese de crime de responsabilidade conexo com ilícito da mesma natureza praticado pelo Presidente da República (CF, art. 52, I)’. As premissas estabelecidas quiçá propiciem controvérsias, quando se cuide de decidir da validade da qualificação de Ministro de Estado emprestado ao órgão diretamente subordinado à Presidência da República - distinto dos Ministérios, como se verifica do art. 50 da Constituição, precisamente porque restritas as suas atribuições à assessoria do Chefe do Governo, sem funções executivas próprias: é o que sucede, por exemplo, com a chefia da Casa Civil. A dificuldade não se põe, entretanto, com a Secretaria de Comunicação Social da Presidência, a cujo titular a medida provisória vigente ao tempo do fato tanto não conferiu a qualificação de Ministro de Estado que a esse teve de equipará-lo em prerrogativas, garantias, vantagens e direitos. Poderia fazê-lo a lei, sem estender, contudo, a equiparação a prerrogativas e garantias que a Constituição reservou ao Ministro de Estado, não aos que, sem o ser, por força de norma ordinária, devessem receber tratamento equivalente.’ O raciocínio - como o fora, também, no Inq 1660, Pleno, Pertence, DJ 6.6.03 - é de aplicar-se, mutatis mutandis, ao caso." Este o quadro, nego seguimento ao pedido (RISTF, art. 21, §1º)” (STF, Rcl 2.356-SC, Rel. Min. Carlos Velloso, 02-02-2005, DJ 14-02-2005, p. 06).

“STF - competência penal originária: Ministros de Estado. Para efeito de definição da competência penal originária do Supremo Tribunal Federal, não se consideram Ministros de Estado os titulares de cargos de natureza especial da estrutura orgânica da Presidência da República, malgrado lhes confira a lei prerrogativas, garantias, vantagens e direitos equivalentes aos dos titulares dos Ministérios: é o caso do Secretário Especial de Aquicultura e Pesca da Presidência da República. Precedentes” (STF, Inq-QO 2.044-SC, Tribunal Pleno, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, 17-12-2004, m.v., DJ 08-04-2005, p. 07, RT 837/503).

“STF: competência penal originária: Ministros de Estado. Para efeito de definição da competência penal originária do Supremo Tribunal Federal, não se consideram Ministros de Estado os titulares de cargos de natureza especial da estrutura orgânica da Presidência da República, malgrado lhes confira a lei prerrogativas, garantias, vantagens e direitos equivalentes aos dos titulares de ministérios: é o caso do Secretário de Comunicação Social da Presidência da República” (STF, AgRPet 1.199-SP, Tribunal Pleno, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, 05-05-1999, v.u., DJ 25-06-1999, p. 19).

Infere-se do exposto que a lei não pode conferir status de Secretário Municipal a cargo que, ontologicamente, na estrutura orgânica da Administração Pública local, não tem essa natureza, o que é diagnosticável por seu plexo de atribuições e seu regime jurídico a adorná-lo ou não como órgão autônomo.

No caso dos autos, a lei incluiu no rol dos secretários de governo cargos que não são qualificáveis como de agentes políticos. Fê-lo, portanto, artificialmente, do que decorre a invocação de auspicioso precedente do Supremo Tribunal Federal que analisou a natureza, e não a simples denominação, do cargo de provimento em comissão à vista de suas atribuições para qualificar, se for o caso, o seu ocupante como agente político:

“Trata-se de reclamação, com pedido de medida liminar, proposta por Adilson de Castro Reis, contra decisão proferida pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo que, nos autos do Agravo de Instrumento 830.058.5/5, teria afrontado a 13ª Súmula Vinculante desta Corte.  Alega o reclamante ser servidor da Câmara Municipal de Suzano/SP e que o Ministério Público do Estado propôs ação civil pública com objetivo de afastá-lo de suas funções por prática de nepotismo. Informa que o Juízo reclamado deu efeito ativo ao Agravo citado e o afastou de suas funções (fls. 67-68). Ressalta que o entendimento do Tribunal a quo teria sido incorreto, pois o cargo por ele ocupado na Câmara Municipal era o de Secretário Diretor-Geral, o que configuraria uma função política. Dessa forma, sua situação enquadrar-se-ia em uma das duas hipóteses de exceção à aplicação da referida Súmula, conforme decidido por este Tribunal. Alega que estão presentes os requisitos ensejadores da concessão da medida liminar. A fumaça do bom direito evidenciar-se-ia pelo fato de o seu cargo ser político e que isso o afasta das hipóteses de nepotismo previstas na Súmula Vinculante 13. Já o perigo da demora estaria presente em virtude da necessidade de subsistência do reclamado e de sua família. Pugna pela concessão da liminar para ‘determinar a suspensão do agravo de instrumento nº 839.058.5/5, em trâmite perante o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, ao menos em relação ao ora reclamante’. No mérito, requer a procedência do pedido a fim de declarar nula a decisão ora reclamada. Indeferi o pedido de medida liminar às fls. 108-111. O Tribunal a quo prestou informações às fls. 121-122. A Procuradoria-Geral da República opinou pela improcedência da presente reclamação em parecer que recebeu a seguinte emenda: ‘RECLAMAÇÃO. CF. ART. 103-A, APLICAÇÃO INDEVIDA DA SÚMULA VINCULANTE Nº 13 DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL: NEPOTISMO. ALCANÇE DO ENUNCIADO NORMATIVO. INAPLICAÇÃO AOS CARGOS POLÍTICOS. CARGO DE SECRETÁRIO DIRETOR-GERAL DE CÂMARA MUNICIPAL. CARGO ESTRITAMENTE ADMINISTRATIVO’ (grifos no original).   É o relatório.   Passo a decidir.   Bem analisados os autos, entendo que a decisão liminar deva ser mantida na íntegra. Com efeito, o Plenário desta Corte, na Sessão de 20/8/2008, no julgamento do RE 579.951/RN, do qual fui Relator, declarou a ilegalidade da prática do nepotismo no âmbito dos Três Poderes da República.   É que a vedação do nepotismo não exige a edição de lei formal que coíba a prática, uma vez que decorre diretamente dos princípios contidos no art. 37, caput, da Constituição Federal.   Tal orientação jurisprudencial encontra-se consubstanciada na Súmula Vinculante 13, que recebeu a seguinte redação:  ‘A NOMEAÇÃO DE CÔNJUGE, COMPANHEIRO OU PARENTE EM LINHA RETA, COLATERAL OU POR AFINIDADE, ATÉ O TERCEIRO GRAU, INCLUSIVE, DA AUTORIDADE NOMEANTE OU DE SERVIDOR DA MESMA PESSOA JURÍDICA INVESTIDO EM CARGO DE DIREÇÃO, CHEFIA OU ASSESSORAMENTO, PARA O EXERCÍCIO DE CARGO EM COMISSÃO OU DE CONFIANÇA OU, AINDA, DE FUNÇÃO GRATIFICADA NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DIRETA E INDIRETA EM QUALQUER DOS PODERES DA UNIÃO, DOS ESTADOS, DO DISTRITO FEDERAL E DOS MUNICÍPIOS, COMPREENDIDO O AJUSTE MEDIANTE DESIGNAÇÕES RECÍPROCAS, VIOLA A CONSTITUIÇÃO FEDERAL’.   No julgamento do RE 579.951/RN, o Plenário enfrentou situação semelhante à deste caso, pois, fazendo distinção entre cargo estritamente administrativo e cargo político, declarou-se nulo o ato de nomeação do motorista, e considerou-se hígida, entretanto, a nomeação do agente político ocupante do cargo de Secretário Municipal de Saúde, em especial por não ter ficado evidenciada a prática do nepotismo cruzado. Nesse aspecto, acompanhei o entendimento da douta maioria.   À ocasião, ressaltei o seguinte no meu voto condutor: ‘A Constituição de 1988, em seu art. 37, caput, preceitua que a Administração Pública rege-se por princípios destinados a resguardar o interesse público na tutela dos bens da coletividade.   Esses princípios, dentre os quais destaco o da moralidade e o da impessoalidade, exigem que o agente público paute a sua conduta por padrões éticos que têm como fim último lograr a consecução do bem comum, seja qual for a esfera de poder ou o nível político-administrativo da Federação em que atue.   Nesse contexto, verifica-se que o legislador constituinte originário, bem assim o derivado, especialmente a partir do advento da Emenda Constitucional 19/1998, que levou a cabo a chamada ‘Reforma Administrativa’, instituiu balizas de natureza cogente para coibir quaisquer práticas, por parte dos administradores públicos que, de alguma forma, pudessem buscar finalidade diversa do interesse público. Uma dessas práticas, não é demais repisar, consiste na nomeação de parentes para cargos em comissão ou de confiança, segundo uma interpretação equivocada ou, até mesmo, abusiva dos incisos II e V, do art. 37 da Constituição’.   Ademais, conforme bem ressaltou a Procuradoria Geral da República, ‘A Lei Municipal nº 3.954, de 14.02.2005, que criou o cargo ocupado pelo reclamante e consolidou o quadro funcional dos servidores administrativos e legislativos da Câmara Municipal, integra (SIC) o cargo de Secretário, Padrão R, à secretaria administrativa, provido em comissão, com desempenho de funções sem qualquer conotação governamental da propositura, estruturação e decisão de diretrizes políticas dos entes públicos’ (fl. 135).   Isso posto, julgo improcedente esta reclamação” (STF, Rcl 6.915-SP, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, 19-05-2009, DJe 22-05-2009).

É nítido, pois, o desvio de poder radicado nesse ato legislativo que o contamina de maneira a expô-lo ao controle abstrato, concentrado, direto e objetivo de constitucionalidade por vício material de inconstitucionalidade na medida em que ele encerra, de per si e atento às circunstâncias, ofensa aos princípios de moralidade e impessoalidade porque a competência para legislar em matéria de organização administrativa foi utilizada para fim distanciado de sua finalidade, podendo ensejar favorecimentos indevidos.

Não é novidade alguma o controle concentrado de constitucionalidade de lei ou ato normativo por desvio de poder. A esse respeito, concessa venia, reporta-se a elucidativo escólio da lavra de Caio Tácito:

“No exercício de suas atribuições e nas matérias a eles afetas, os órgãos legislativos, em princípio, gozam de discricionariedade peculiar à função política que desempenham.

Temos, contudo, sustentando a necessidade de temperamento da latitude discricionária de ato do Poder Legislativo, ainda que fundado em competência constitucional e formalmente válido.

O princípio geral de Direito de que toda e qualquer competência discricionária tem como limite a observância da finalidade que lhe é própria, embora historicamente vinculado à atividade administrativa, também se compadece, a nosso ver, com a legitimidade da ação do legislador.

Tivemos, oportunidade de sustentar, perante o STF, em duas oportunidades, a nulidade de leis estaduais em que, no término de governos vencidos nas urnas, eram criados cargos públicos em número excessivo, não reclamados pela necessidade pública, e comprometendo gravemente as finanças do Estado, tão-somente para o aproveitamento de correligionários ou de seus familiares.

Para o desfazimento dessas leis, que caracterizavam os chamados ‘testamentos políticos’, o STF consagrou a tese da validade de novas leis que, anulando leis inconstitucionais, reconheciam o abuso pelos Poderes Legislativos estaduais da competência, em princípio discricionária, da criação de cargos públicos.

O primeiro acórdão, proferido no MS 7.243, em sessão de 20.1.69, manteve a anulação de leis do Estado do Ceará com as quais, no apagar das luzes de uma situação política derrotada, em apenas 56 dias, mediante 25 atos legislativos foram instituídos, sob a forma de criação ou transformação, 3.784 novos cargos públicos, o que equivalia a um-terço do total do funcionalismo estadual então existente, estimado em 12.000 servidores, elevando o custo mensal do pessoal a 94,24% das rendas do Estado.

Por essa forma, violava-se norma expressa da Constituição estadual, que fixava o teto de 50% para a vinculação da receita ao custeio do funcionalismo público, e se objetivava impedir o funcionamento regular do Poder Executivo, no período do novo mandato que se ia inaugurar.

Em comentário a essa decisão, que firmou precedente memorável, destacávamos a importância da tese por ela abonada:

‘A competência legislativa para criar cargos públicos visa ao interesse coletivo de eficiência e continuidade da administração. Sendo, em sua essência, uma faculdade discricionária, está, no entanto, vinculada à finalidade, que lhe é própria, não podendo ser exercida contra a conveniência geral da coletividade, com o propósito manifesto de favorecer determinado grupo político, ou tornar ingovernável o Estado, cuja administração passa, pelo voto popular, às mãos adversárias.

‘Tal abandono ostensivo do fim a que se destina a atribuição constitucional configura autêntico desvio de poder (détournement de pouvoir), colocando-se a competência legislativa a serviço de interesses partidários, em detrimento do legítimo interesse público’ (RDA 59/347 e 348).

A mesma situação se renovou, no Estado do Rio Grande do Norte, perante outro testamento político de um governo vencido no pleito eleitoral sucessório, em que se comprometia desmedidamente o erário, elevando a mais de 80% a despesa com o funcionalismo público.

Em decisão proferida na Repr. 512, julgada, por unanimidade, pelo Tribunal Pleno, em sessão de 7.12.62, o STF reputou legítima a anulação, pela Assembléia Legislativa, de leis inconstitucionais que compunham o testamento político em causa.

Em memorial oferecido como advogado do novo governo estadual, ponderávamos que ‘o desvio de poder legislativo, caracterizado no inventário político, ofende o princípio da independência e harmonia dos Poderes, além de violar a Constituição estadual’.

Em acórdãos posteriores os RE 48.655 e 50.219 (RDA 78/269 e 281), aplicando a orientação firmada, a Corte Suprema reafirmou a tese da anulação, pelo Poder Legislativo, de seus próprios atos inconstitucionais.

A acolhida do cabimento do desvio de finalidade como vício de inconstitucionalidade fora anteriormente abonada em outro julgado do STF em voto do Min. Orozimbo Nonato, relator do RE 18.331, que, nos termos da respectiva ementa, após recordar o conhecido axioma de que o poder de taxar não se pode extremar como poder destruir, destaca: ‘É um poder cujo exercício não deve ir até o abuso, o excesso, o desvio, sendo aplicável, ainda que, a doutrina fecunda do détournement de pouvoir’ (RF 145/146).

O excesso do poder de taxar foi igualmente repelido com respeito à lei do Estado do Rio de Janeiro que exigia taxa judiciária em termos excessivos, sem correspondência com o serviço prestado (Repr. 1.077, RTJ 11/55).

Comentando o sentido inovador da jurisprudência do Pretório Excelso, registra Seabra Fagundes, entre as fecundas criações pretorianas, ‘a extensão da teoria do desvio de poder originária e essencialmente dirigida aos procedimentos dos órgãos executivos, aos atos do poder legiferante, de maior importância num sistema de Constituição rígida, em que se comete ao Congresso a complementação do pensamento constitucional nos mais variados setores da vida social, econômica e financeira’ (RF 151/549).

Em decisão de 31.8.67, no RMS 16.912, o tema do desvio de poder como vício especial do ato legislativo foi expressamente invocado.

Apreciando lei de organização judiciária na qual se inseria emenda em benefício de determinado serventuário, advertiu o Min. Prado Kelly: ‘tratava-se de reforma judiciária e a emenda representou um desvio de poder na própria legislatura’. Sendo o mesmo Ministro as seguintes expressões: ‘Tenho por demonstrado que a emenda não obedeceu ao presumido escopo de interesse público e sim a uma inspiração que nem por ser equânime ou reparadora (como pareceu ao interveniente) deixa de ser particularista ou de favorecimento pessoal’.

Nessa decisão plenária, o Min. Victor Nunes Leal, após aderir à posição ‘de que podemos exercer controle sobre os desvios de poder da própria legislatura’, convocado por interpelação do Min. Aliomar Baleeiro a declarar ‘se admitia um desvio de poder do Poder Legislativo fora do caso de inconstitucionalidade’, não vacilou em afirmar categoricamente: ‘Admito’ (acórdão no RMS 16.912, RTJ 45/530-545, especialmente pp. 536 e 537).

Em questão relativa à permissão para explorar linhas de ônibus, o STF apreciou a incidência do desvio de poder legislativo, admitindo, em tese, a aplicação do princípio (RTJ 47/650 e 48/165).

Em três situações o STF repeliu, por inconstitucionalidade, a aplicação de sanções administrativas com a finalidade real de constranger o contribuinte à regularidade fiscal.

Decidiu a Corte Suprema que ‘é inadmissível a interdição de estabelecimento ou apreensão de mercadorias como meio coercitivo para a cobrança de tributo’ (Súmulas 70 e 323).

E, dilatando o princípio à inconstitucionalidade dos Decs.- leis 5 e 42, de 1937 – que restringiam indiretamente a atividade comercial de empresas em débito, impedindo-as de comprar selos ou despachar mercadoria – implicitamente configurou o abuso de poder legislativo (Súmula 547 e acórdão no RE 63.026, RDA 10/209).

O excesso legislativo foi invocado em acórdão do STF no RE 62.731, do qual foi Relator o Min. Aliomar Baleeiro. Afirmou-se a inconstitucionalidade de decreto-lei que vedava a purgação de mora em locações. Destacou a ementa da decisão a impertinência do fundamento por se tratar de ‘assunto miúdo de Direito Privado’ que não se incluía no conceito de segurança nacional, necessário àquela forma de processo legislativo (RDA 94/169).

O poder de polícia nas profissões somente pode ser exercido com observância do princípio da razoabilidade, afirmou o acórdão na Repr. 930 (apud Gilmar Ferreira Mendes, ob. cit., p. 451).

E porque o impedimento do exercício profissional da advocacia há juizes aposentados até dois anos após a inatividade ofendia o princípio da razoabilidade, foi declarada a inconstitucionalidade da lei que estabelecia tal interdição temporária, por violação àquele princípio (Repr. 1.054, RTJ 112/7).

Em parecer no qual analisamos a inconstitucionalidade de deliberação do Banco Central do Brasil determinante da indisponibilidade de contas bancárias do Estado – membro a suas empresas, enfatizávamos que ‘importa desvio do Poder Legislativo decreto lei que se utilize do bloqueio de contas bancárias como meio de cobrança regressiva de aval a empréstimos externos’ (RDA 172/239).

Em outro parecer relativo à validade da lei municipal que subordinava a permissão de funcionamento de estabelecimentos comerciais aos sábados e domingos à prévia aprovação pelos órgãos sindicais, entendíamos ocorrer violação da competência legal, a ser exercida pelo Município, como emanação do poder de polícia.

Ressaltamos que, obrigando à intervenção dos sindicatos para a obtenção de licença especial de funcionamento, o legislador teve em mira o fortalecimento do sistema sindical, invadindo órbita de competência privativa da União.

Concluímos, assim, que, ‘a toda evidencia, a lei municipal, visando, a beneficiar o movimento sindical está maculada pelo vício de abuso do poder normativo, caracterizado como desvio de finalidade’ (RDA 164/460).

O tema do desvio de poder legislativo foi amplamente estudado, no Direito italiano, por Lívio Paladin, em ensaio sob o título ‘Osservazioni sulla discrezionalità e sull’eccesso di potere del legislatore ordinario’ (Rivista Trimestrale di Diritto Pubblico, ano VI, 4/993-1.046, outubro – dezembro/56).

Pondera o autor que: ‘L’illegitimità di ogni fine, diverso da quello costituzionalmente previsto, consente logicametne di configurare, sul piano legisltaivo, qual vizio della causa degli atti amministrativi, ch è l’ecesso di potere’ (‘A ilegitimidade de todo fim, diverso daquele constitucionalmente previsto, conduz logicamente afigurar-se, no plano legislativo, aquele vício de causa dos atos administrativos, que é o excesso de poder’) (Rivista cit. p. 1.031).

A figura do desvio de poder legislativo foi, pioneiramente, sustentada por Santi Romano, que, reconhecendo o poder discricionário do legislador, destaca, porém, o limite que se impõe em face da finalidade da competência legislativa: ‘ma la figura dele potere discrezionale richiede per l’appunto che di esse si faccia uso conforme alle finalità da cui il potere medismo deriva; si há altrimenti uno sviamento di potere, che costituisse uma violazione di direitto, nel senso più próprio della parola. Son concetti questi di commune applicazione riguado alle compentenza degli oragnia amministrativi e non si saprebbe indicarei l pechè non possono riferirsi, nella loro generalità, al Parlamento. In certi campoi della sua funzione legislativa, questo non há poteri sconfinati, ma poteri discricionali, il che vuol dire litate, e non altro, dall’obbligo di fare uso per dati motivi’ (‘mas a figura do poder discricionário reclama precisamente que dele se faça uso conforme à finalidade, da qual o próprio poder deriva: há de outra forma um desvio de poder que constitui uma violação de direito no sentido próprio da palavra. São conceitos estes de aplicação comum no que se refere à competência dos órgãos administrativos, e não se saberá indicar por que não parecem se referir em sua generalidade, ao Parlamento. Em certos campos de sua competência legislativa, este não possui poderes sem fronteiras, mas poderes discricionários, importa dizer, limitados pelo menos da obrigação de fazer uso por motivos determinados’) (‘Osservazioni preliminari per uma teoria sui limite della funzione legislativa nel Diritto Pubblico’, 1902, e incluído na coletânea Scriti Minori – Diritto Costituzionale, v. I/199, 1950).

Não é outro o pensamento de Costantino Mortati quando adverte que ‘a lei poderá estar viciada de inconstitucionalidade não somente quando o interesse perseguido contrasta com aquele imposto pela Constituição, mas também nos casos em que o próprio teor da lei está em absoluta incongruência com a norma editada e o fim do interesse público a ser perseguido e o próprio legislador afirma pretender perseguir. Verifica-se, nessa ultima hipótese, uma modalidade de vício de legitimidade assimilável ao excesso de poder administrativo’ (‘la legge può risultare viziata per incostituzionalità non solo quando l’interesse perseguito contrasta com quelllo imposto dalla Costituzione, ma anche nei casi in cui dallo stesso tenore della legge risulti un’assouta incongruenza fra la norma dettata ed il fine di pubblico interesse che si doveva perseguire e che lo stesso legislatore assume di volere perseguire. Si verificherebbe in quest’ultima ipotese un’ipotesi di vizio della legittimità assimilabile a quello dell’eccesso di potere amministrativo’) (verbete ‘Discricionalità’, Novissimo Digesto Italiano, v. V/1.09).

Entendemos, em suma, que a validade da norma de lei, ato emanado do Legislativo, igualmente se vincula à observância da finalidade contida na norma constitucional que fundamenta o poder de legislar.

O abuso de poder legislativo, quando excepcionalmente caracterizado, pelo exame dos motivos, é vício especial de inconstitucionalidade da lei, pelo divórcio entre o endereço real da norma atributiva da competência e o uso ilícito que a coloca a serviço de interesse incompatível com a sua legitima destinação.

Gilmar Ferreira Mendes dedicou capítulo especial de sua monografia sobre controle de constitucionalidade à avaliação do excesso de poder legislativo como vício substancial de inconstitucionalidade. Com apoio na doutrina alemã e na lição de Canotilho, evidencia a prevalência da vinculação do ato legislativo a uma finalidade e à aplicação do princípio da proporcionalidade como elemento da legitimidade constitucional das leis. Oferece, como exemplos, precedentes colhidos na jurisprudência do STF (Controle de Constitucionalidade, Saraiva, 1990, p. 38-54).

Canotilho adverte que a lei é vinculada ao fim constitucionalmente fixado e ao princípio de razoabilidade a fundamentar ‘a transferência para os domínios da atividade legislativa da figura do desvio de poder dos atos administrativos’ (Direito Constitucional, 4ª ed., 1986, p. 739).

E, mais amplamente, o mesmo autor estuda o desvio de poder legislativo diante do princípio de que ‘as leis estão todas positivamente vinculadas quanto a fim pela Constituição’ (Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador, Coimbra, 1982, p. 259)’. (Caio Tácito. Desvio de Poder no Controle dos Atos Administrativos, Legislativos e Jurisdicionais, in Revista Trimestral de Direito Público, n. 04, São Paulo: Malheiros, 1993, pp. 33-37).

Se assim é, a redação do art. 6º-A da Lei Complementar nº 11, de 17 de dezembro de 1991, acrescentado pela Lei Complementar nº 597, de 25 de maio de 2010, do Município de Marília, caracteriza nítida incompatibilidade vertical com os princípios de moralidade, impessoalidade, razoabilidade e interesse público, constantes do art. 111 da Constituição Estadual, aplicável aos Municípios por força de seu art. 144, do que decorre a necessidade de que seja declarado inconstitucional.

3. PEDIDO DE LIMINAR.

Estão presentes, na hipótese examinada, os pressupostos do fumus bonis iuris e do periculum in mora, a justificar a suspensão liminar da vigência e eficácia do artigo de lei em estudo.

A razoável fundamentação jurídica decorre dos motivos expostos anteriormente, que indicam, de forma clara, que a lei padece de vício de inconstitucionalidade.

O perigo da demora decorre especialmente da idéia de que, sem a imediata suspensão da vigência e eficácia do ato normativo impugnado, é possível que se instale a situação consumada, decorrente da burla à Súmula Vinculante nº 13, do STF.

A idéia do fato consumado, com repercussão concreta, guarda relevância para a apreciação da necessidade da concessão da liminar na Ação Direta de Inconstitucionalidade. Válida tal afirmação, na medida em que providências administrativas que ulteriormente serão necessárias para o restabelecimento do statu quo ante, com a esperada procedência da ação, trarão ônus e custos para a Administração Pública.

Assim, a imediata suspensão da eficácia do ato normativo, cuja inconstitucionalidade é palpável, evita qualquer desdobramento no plano dos fatos que possa significar, na prática, prejuízo concreto para o Poder Público Municipal no aspecto administrativo.

Note-se, em acréscimo, que o dispositivo impugnado não cria cargos, nem define suas atribuições, daí que, se o Alcaide não nomeou seus parentes para os cargos relacionados no dispositivo impugnado, a suspensão de eficácia do ato questionado sequer implicaria na substituição de seus titulares, consistindo, isto sim, num provimento de cunho didático, como tantos já adotados por esse E. Tribunal de Justiça em homenagem ao princípio da moralidade pública.

Com efeito, no contexto das ações diretas e da outorga de provimentos cautelares para defesa da Constituição, o juízo de conveniência é um critério relevante, que vem condicionando os pronunciamentos mais recentes do Supremo Tribunal Federal, preordenados à suspensão liminar de leis aparentemente inconstitucionais (cf. ADIN-MC 125, j. 15.2.90, DJU de 4.5.90, p. 3.693, rel. Min. Celso de Mello; ADIN-MC 568, RTJ 138/64; ADIN-MC 493, RTJ 142/52; ADIN-MC 540, DJU de 25.9.92, p. 16.182).

Diante do exposto, requer-se a concessão da liminar, para fins de suspensão imediata da eficácia do ato normativo impugnado, ou seja, do art. 6º-A da Lei Complementar nº 11, de 17 de dezembro de 1991, acrescentado pela Lei Complementar nº 597, de 25 de maio de 2010, do Município de Marília, durante o trâmite da presente Ação Direta de Inconstitucionalidade.

4. CONCLUSÃO E PEDIDO.

Por todo o exposto, evidencia-se a necessidade de reconhecimento da inconstitucionalidade da norma aqui apontada.

Assim, aguarda-se o recebimento e processamento da presente Ação Declaratória, para que ao final seja julgada procedente, reconhecendo-se a inconstitucionalidade do art. 6º-A da Lei Complementar nº 11, de 17 de dezembro de 1991, acrescentado pela Lei Complementar nº 597, de 25 de maio de 2010, do Município de Marília.

Requer-se ainda sejam requisitadas informações à Câmara Municipal e ao Prefeito Municipal, bem como posteriormente citado o Procurador-Geral do Estado para se manifestar sobre o ato normativo impugnado.

Posteriormente, aguarda-se vista para fins de manifestação final.

 

                 São Paulo, 21 de outubro de 2010.

 

                         Fernando Grella Vieira

                         Procurador-Geral de Justiça

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Protocolado nº 106.664/2010

Interessado:  Promotoria de Justiça de Marília

Assunto: Inconstitucionalidade do Art. 6º-A da Lei Complementar nº 11, de 17 de dezembro de 1991, acrescentado pela Lei Complementar nº 597, de 25 de maio de 2010, do Município de Marília.

 

 

 

 

1.    Distribua-se a petição inicial da ação direta de inconstitucionalidade, em face do Art. 6º-A da Lei Complementar nº 11, de 17 de dezembro de 1991, acrescentado pela Lei Complementar nº 597, de 25 de maio de 2010, do Município de Marília, junto ao Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

2.    Oficie-se ao interessado, informando-lhe a propositura da ação, com cópia da petição inicial.

 

                    São Paulo, 21 de outubro de 2010.

 

 

 

 

Fernando Grella Vieira

Procurador-Geral de Justiça

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