EXCELENTÍSSIMO SENHOR
DESEMBARGADOR PRESIDENTE DO EGRÉGIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
O Procurador-Geral de Justiça, no
exercício da atribuição prevista no art. 116, inciso VI, da Lei Complementar
Estadual n.º 734, de 26 de novembro de 1.993, e em conformidade com o disposto
nos arts. 125, § 2.º, e 129, inciso IV, da Constituição Federal, e arts. 74,
inciso VI, e 90, inciso III, da Carta Estadual, com base nos elementos de
convicção contidos no incluso protocolado (PGJ n.º 106.798/07), vem propor
perante esse Colendo Tribunal de Justiça
a presente AÇÃO DIRETA DE
INCONSTITUCIONALIDADE dos incisos I, II e III do artigo 5º da Lei n.º 2.081,
de 01 de dezembro de 2005, do Município de Itirapina, bem assim de todos os
anteriores atos normativos que contenham previsão de isenção à tarifa do
pedágio (art. 5º, incisos I, II, III e IV, da Lei n.1.967, de 19 de novembro de
2002, do mesmo município), para se evitar o efeito repristinatório, da Câmara Municipal de Itirapina. pelas razões
expostas a seguir.
Os
incisos n. I, II e III, da Lei n. 2.081, de 01 de dezembro de 2005, do
Município de Itirapina que “revoga o
inciso II do art. 5º da Lei n. 1967, de 19 de novembro de 2002, e dá nova
redação ao referido artigo” tem a seguinte redação:
“Art 5º - Isentam-se ao pagamento da tarifa
de que trata esta lei:
I- os veículos
automotores, providos ou não de reboques, que dirijam-se ao Balneário Santo
Antônio e nele ingressem, mediante pagamento para tal, pela sua portaria
principal, mencionada no art. 1º , caput;
II-
os proprietários ou possuidores de imóveis localizados no Balneário Santo
Antônio, e os seus convidados portadores de convites fornecidos pela
Administração Pública Municipal, conforme normas próprias de sua Portaria
principal;
III-
os veículos oficiais do Município de Itirapina, Estado de São Paulo e União”
A
inconstitucionalidade dos dispositivos destacados encontra parâmetro nos
seguintes preceitos da Constituição do Estado de São Paulo:
“Art. 111 - A
administração pública direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes
do Estado, obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, razoabilidade, finalidade, motivação e interesse público.
Art. 144 - Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e
financeira se auto-organizarão por Lei Orgânica, atendidos os princípios
estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.
Art. 159 - A receita pública será constituída por tributos, preços e outros
ingressos.
Parágrafo único - Os preços públicos serão fixados pelo Executivo, observadas as normas
gerais de Direito Financeiro e as leis atinentes à espécie.
Art. 163 - Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado
ao Estado:
V - estabelecer limitações
ao tráfego de pessoas ou bens, por meio de tributo, ressalvada a cobrança de pedágio pela utilização de vias conservadas pelo Poder
Público Estadual;”
Pois
bem. Não obstante a limitação de tráfego
que acarreta,
a cobrança de pedágio em rodovias conservadas pelo Poder Público ou seus
concessionários está expressamente autorizada na Constituição Estadual. É o que se lê no artigo 163, V: “... é
vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: (...) V -
estabelecer limitações ao tráfego de pessoas ou bens, por meio de tributos
interestaduais ou intermunicipais, ressalvada a cobrança de pedágio pela utilização de vias conservadas pelo Poder
Público”. A regra da Constituição
estadual é a reprodução do a alínea V do artigo 150 da CF.
A doutrina e a
jurisprudência há anos se ocupam em estudar a natureza jurídica do pedágio e os
limites à sua implantação. E o debate, que já foi ardente, vem sendo aplacado
ao longo dos anos. Hoje, prevalece a tese defendida — dentre outros ilustres
publicistas[1]
— por Celso Antônio Bandeira de Mello, que a expõe nesses termos:
“Não há duvidar, pois, que o pedágio, modalidade
característica da remuneração do concessionário de obra viária, não é novidade
alguma para quem quer que seja. Daí não se segue, todavia, que a natureza
jurídica dele haja sido reconhecida de modo pacífico, entre nós. Sobretudo no
passado, discutiu-se muito se seria uma ‘taxa’, isto é, uma espécie de tributo,
ou se corresponderia a uma ‘tarifa’, entendida esta como cobrança despida de
caráter tributário e muitas vezes designada sob o rótulo, ao nosso ver infeliz,
de ‘preço público’.
Consoante nos parece, (...), o pedágio, dependendo
da hipótese, ora será uma ‘tarifa’, instrumento despido de caráter
tributário, ora será uma ‘taxa’.
A nosso ver, será ‘tarifa’ quando se constitui na
remuneração de concessionário. Inversamente, será taxa quando constituir
em pagamento devido ao Poder Público”[2].
Ressalvada a polêmica,
o fato é que, quer seja classificado como taxa, quer como tarifa,
o regime jurídico do pedágio, cuja finalidade é custear os serviços de
conservação das estradas, deve alcançar os usuários de maneira uniforme.
Carmem
Lúcia Antunes Rocha, em obra dedicada ao estudo dos serviços públicos
concedidos, refere-se ao princípio da igualdade na prestação do serviço,
“significando aqui que todos os usuários
devem receber o mesmo tratamento em determinado serviço público, guardadas as diferenças de suas condições, que conduzam a eventuais
distinções também de cuidados”[3].
Decorrência do que acaba de ser exposto é que o pedágio — que é a
remuneração pelo serviço de conservação das estradas — pode ser instituído, mas
deve atingir a todos os usuários da via pública de maneira equivalente. Mas não
é isso que fez o legislador de Itirapina ao isentar do pagamento do tributo os veículos
automotores, providos ou não de reboques, que dirijam-se ao Balneário Santo
Antônio e nele ingressem, mediante pagamento para tal, pela sua portaria principal,
mencionada no art. 1º , caput, os proprietários ou possuidores de imóveis
localizados no Balneário Santo Antônio, e os seus convidados portadores de
convites fornecidos pela Administração Pública Municipal, conforme normas
próprias de sua Portaria principal e os veículos oficiais do Município de
Itirapina, Estado de São Paulo e União.
A afronta ao princípio da igualdade é
flagrante. Com peculiar clareza, o professor Celso Antônio Bandeira de Mello
nos ensina: “o princípio da isonomia preceitua que sejam tratadas igualmente as
situações iguais e desigualmente as desiguais”. Donde não há como desequiparar
pessoas e situações quando nelas não se encontram fatores desiguais. Cumpre
ademais que a diferenciação do regime legal esteja correlacionada com a
diferença que se tomou em conta.[4]
“Data venia”, as hipóteses de isenção
contempladas pelo legislador, além de sobremaneira ofensiva à isonomia, por
imporem tratamento desigual aos que juridicamente estão num mesmo plano de
igualdade — os usuários da estrada municipal —, é também incompatível com o
princípio da razoabilidade.
Esse
preceito constitucional “serve de baliza
à discricionariedade do legislador que, no exercício da função legislativa, não
pode prever situações irrazoáveis”, sob pena de incidir em
inconstitucionalidade. (Cf. Maria Sylvia Zanella Di Pietro, Princípio da
Razoabilidade, em “Temas Polêmicos sobre Licitações e Contratos”, Malheiros
Editores, São Paulo, 1995, 2.ª edição, pp. 24/25)
A
importância da razoabilidade, como limitação ao exercício da atividade
legislativa, foi evidenciada por Carlos Roberto de Siqueira, “in verbis”:
“A
moderna teoria constitucional tende a exigir que as diferenciações normativas
sejam razoáveis e racionais. Isto quer dizer que a norma classificatória
não deve ser arbitrária, implausível ou
caprichosa, devendo, ao revés, operar como meio idôneo, hábil e necessário ao
atingimento de finalidades constitucionalmente válidas. Para tanto, há de
existir uma indispensável relação de congruência entre a classificação em si e
o fim a que ela se destina. Se tal relação de identidade entre meio e fim - ‘means-end
relationship’, segundo a nomenclatura norte-americana - da norma
classificatória não se fizer presente, de modo que a distinção jurídica resulte
leviana e injustificada, padecerá ela do vício da arbitrariedade, consistente
na falta de ‘razoabilidade’ e de ‘racionalidade’, vez que nem mesmo ao
legislador legítimo, como mandatário da soberania popular, é dado discriminar
injustificadamente entre pessoas, bens e interesses na sociedade política.” (Cf.
O Devido processo legal e a razoabilidade das leis na nova constituição do
Brasil, Forense, 1989, p. 157).
Nesse
contexto, não se afigura racional ou lógico isentar do pagamento do pedágio os
proprietários de veículos emplacados nas cidades de Nova Odessa e região e
impor a cobrança aos demais veículos que circulem pelas mesmas vias. Todos os
que utilizam as vias públicas são responsáveis por seu desgaste, em maior ou
menor grau de intensidade, e devem colaborar com sua manutenção, não havendo justificativa
lógica para impor regime jurídico diverso aos usuários somente em razão da
origem da placa do veículo.
Isentar da
cobrança de pedágio todos os veículos automotores, providos ou não de reboques,
que dirijam-se ao Balneário Santo Antônio e nele ingressem, mediante pagamento
para tal, pela sua portaria principal, mencionada no art. 1º , caput, os
proprietários ou possuidores de imóveis localizados no Balneário Santo Antônio,
e os seus convidados portadores de convites fornecidos pela Administração
Pública Municipal, conforme normas próprias de sua Portaria principal e os
veículos oficiais do Município de Itirapina, Estado de São Paulo e União,
enquanto dos demais usuários das mesmas vias exige-se o pagamento da taxa,
revela o verdadeiro propósito da isenção, que não está fundada em situação de
desigualdade que justifique razoavelmente o tratamento diferenciado. Como ensina Celso Antônio Bandeira de Mello,
“não é qualquer fundamento lógico que autoriza desequiparar, mas tão-só
aquele que se orienta na linha de interesses prestigiados na ordenação jurídica
máxima. Fora daí ocorrerá incompatibilidade com o preceito igualitário”[5].
O princípio da igualdade,
contemplado na ordem constitucional vigente, é incompatível com o tratamento
diferenciado ora tratado. Até porque, por determinação constitucional expressa
(artigo 19 da CF e art. 144 da CE) os Municípios não podem "criar
distinção entre brasileiros ou preferências entre si".
Esse o sentido que o
Supremo Tribunal Federal há muito tempo atribui ao princípio da igualdade, e
que foi explicitado em Acórdão relatado pelo Excelentíssimo Ministro Décio
Miranda. Na ocasião, decidiu-se pela inconstitucionalidade de uma lei do Estado
de Pernambuco por afrontar regra constitucional que veda à União, aos Estados e
aos Municípios criar distinções entre brasileiros ou preferências em favor de
uma dessas pessoas de direito público interno contra outra (Cf. RP nº
1.85-2/PE).
Mais
recentemente, o eminente Ministro Marco Aurélio teve oportunidade de afirmar
que “não podem a lei, o decreto, os atos regimentais ou instruções normativas,
e muito menos acordo firmado entre partes, superpor-se a preceito
constitucional, instituindo privilégios para uns em detrimento de outros, posto
que além de odiosos e iníquos, atentam contra os princípios éticos e morais que
precipuamente devem reger os atos relacionados com a Administração
Pública. (...) (CF, artigo 5 , caput)”.[6]
A
isenção prevista na legislação municipal traduz dupla ofensa à ordem
constitucional
. Em
primorosa monografia sobre o tema, Suzana de Toledo Barros anota que, “não
raro, a violação ao princípio da proporcionalidade (ou razoabilidade) vem
acompanhada de atentado a outros princípios ou regras constitucionais, mas os
fundamentos de cada qual são perfeitamente distinguíveis. É o caso, v.g., de
uma restrição desigualitária, em que o legislador, além de impor uma
restrição em si mesma desarrazoada, o faz em relação a apenas um grupo de
pessoas” (Cf. “O Princípio da Proporcionalidade e o Controle de
Constitucionalidade das Leis Restritivas de Direitos fundamentais”, Editora
Brasília Jurídica, 1996, p. 73).
Reconhece-se
que, por força do art. 150, “caput”, e inciso V, da Carta Magna, os Municípios
estão autorizados a instituir a cobrança de pedágio. No entanto, uma vez
instituído o pedágio — que só pode ter por finalidade a conservação das vias
nas quais está instalado — deve ser cobrado de todos que se utilizem de vias
conservadas pelo Poder Público. Não se admite a imposição de regras que
desvirtuem a natureza do pedágio, como ocorre com a “isenção” concedida.
Com isso, fica
claro que o legislador local não pretendeu atingir com a isenção uma finalidade
que possa ser considerada constitucionalmente válida, restando patente, no
caso, a violação da razoabilidade.
Nesse passo,
releva notar que a conclusão de inconstitucionalidade, pela ótica da
razoabilidade, não resulta só da
análise
da exposição de motivos, mesmo porque, consoante lição básica de hermenêutica,
“a constitucionalidade não pode decorrer só dos motivos da lei” (Cf. Carlos
Maximiliano, Hermenêutica e Aplicação do Direito, Forense, Rio de Janeiro, 16.ª
edição, p. 309). Mas o vício de inconstitucionalidade é revelado a partir da
interpretação direta do texto legal impugnado, onde está clara a ausência
“in abstrato” de uma “relação lógica entre o fator diferencial — ser o
veículo dotado de placas dos Municípios de Nova Odessa, Americana, Monte Mor,
Hortolândia, Sumaré e Santa Bárbara d’Oeste — e a distinção de regime
jurídico em função dele estabelecida pela norma contempladora da isenção da
tarifa. E a ausência de correspondência lógica entre os fatos eleitos como
fatores diferenciais e o regime jurídico deles decorrentes significa, como
ensina Celso Antônio Bandeira de Mello, afronta ao princípio da isonomia[7].
. Assim,
a conclusão de inconstitucionalidade, pela ótica da igualdade e da
razoabilidade, é resultante da seguinte premissa que todos devem colaborar à
manutenção das vias e estradas locais.
Em
conclusão,
as isenções contempladas nos incisos I, II e III do art. 5º da Lei n.
2.081, de 01 de dezembro de 2005, do Município de Itirapina é materialmente
inconstitucional porque ofende o princípio da razoabilidade e da isonomia,
sem que haja razão lógica e juridicamente válida para o tratamento
diferenciado.
Por
todo o exposto, requeiro seja determinado o processamento da presente ação,
colhendo-se as informações pertinentes da Câmara de Vereadores e do Prefeito de
Itirapina, sobre as quais me pronunciarei oportunamente, vindo, afinal, a ser
proclamada a inconstitucionalidade dos incisos I, II e III, da Lei n. 2.081,
de 01 de dezembro de 2005, do Município de Itirapina, bem assim de todos os anteriores atos
normativos que contenham previsão de isenção à tarifa do pedágio (art. 5º,
incisos I, II, III e IV, da Lei n.1.67, de 19 de novembro de 2002, do mesmo
município), para se evitar o efeito repristinatório, da Câmara Municipal de Itirapina
São Paulo, 30 de maio de 2008.
FERNANDO GRELLA
VIEIRA
Procurador-Geral
de Justiça
[1] Cf. Maria Sylvia Zanella Di Pietro, in Parcerias na administração pública. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 319. Marçal Justen Filho, in Concessões de serviços públicos, São Paulo: Dialética, 1999, p. 142/144; Carmem Lúcia Antunes Rocha, in Estudo sobre concessão e permissão de serviço público no direito brasileiro. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 76 (nota 40); Dinorá Adelaide Musetti Grotti, in O serviço público e a constituição brasileira de 1988, São Paulo: Malheiros, 2003, p. 242.;
[2] in Decisões e pareceres jurídicos sobre pedágios. São Paulo: ABCR, 2002, p. 14.
[3] In Estudo sobre concessão e permissão de serviço público no direito brasileiro. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 95.
[4] In “O Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade”, 3ª ed., São Paulo: Malheiros, 1999, p. 35.
[5] In “O Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade”, 3ª ed., São Paulo: Malheiros, 1999, p. 43.
[6] MS
22493/RJ, Relator Min. Marco Aurélio, DJ DATA-11-12-96 PP-49765 EMENT
VOL-01854-02 PP-00357; julgamento 26/09/1996 - Tribunal Pleno
[7] Ob. cit. p. 41.