Excelentíssimo Senhor
Desembargador Presidente do Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo.
O Procurador-Geral de Justiça, no exercício da atribuição prevista
no artigo 116, inciso VI, da Lei Complementar Estadual n.º 734, de 26 de
novembro de 1993 (Lei Orgânica do Ministério Público de São Paulo), e em
conformidade com o disposto nos artigos 125, § 2.º, e 129, inciso IV, da
Constituição da República, e nos artigos 74, inciso VI, e 90, inciso III, da
Constituição do Estado de São Paulo -– com base nas informações constantes do
incluso protocolado (PGJ n.º 107.202/07) --, vem, respeitosamente, perante esse
Egrégio Tribunal de Justiça promover
a presente AÇÃO DIRETA DE
INCONSTITUCIONALIDADE da Lei Complementar n.º 1.275, de 26 de agosto de
1997, do Município de Cajuru, que ” dispõe sobre a Cota de participação
comunitária para o Custeio do serviço de Iluminação Pública e estabelece
providências quanto à locação de
recursos para a manutenção e expansão dos serviços de Iluminação Pública”, com PEDIDO LIMINAR pelas razões e fundamentos
a seguir expostos:
Pois bem, o ato normativo cuja validade
jurídico-constitucional ora se questiona reza o seguinte:
“Art. 1.º - Fica instituída a Cota de
participação Comunitária para o Custeio dos serviços de Iluminação Pública, no
município de Cajuru, estabelecida por consumidor, de acordo com as classes,
faixas de consumo de energia elétrica e valores a seguir especificados.
A- Consumo Residencial:
FAIXA RESIDENCIAL VALOR DA COTA EM R$
DE KWH
0 a
30 0,13
31 a 50 0,15
51 a
70 0,32
71 a 100 0,61
101 a 150 0.82
151 a 200 1,20
201 a 250 1,77
251 a 300 4,18
301 a 400 4,43
401 a 500 6,08
501 a
600 7,87
601 a 700 9,78
701 a 800 10,13
801 a
900
11,42
901 a 1000 11,59
1001 a 1500 11,80
1501 a
2000
13,26
> 2000 14,67
B- Consumo do Comércio,
de Prestadoras de Serviços e Congêneres:
FAIXA REFERENCIAL VALOR DA
COTA EM R$
DE KWH
601 a 700 12,48
701 a 900 12,56
901 a 1000 13,93
1001 a 1500 17,01
1501 a 2000 18,44
> 2000 18,75
C- Consumo Industrial :
FAIXA REFERENCIAL VALOR
DA COTA EM R$
DE KWH
601 a 700 12,48
701 a 900 15,01
901 a 1000 15,33
1001 a 1500 18,72
1501 a 2000 19,82
> 2000 20,00
Artigo 2º - Da Cota de
Participação Comunitária participam todos os consumidores que sejam
proprietários, possuidores ou detentores do domínio útil de imóveis beneficiados,
ou que vierem a ser beneficiados pela Iluminação Pública do Município.
§1º - Os consumidores
classificados como Rurais ou Serviços Públicos, pela respectiva concessionária
de energia elétrica, não participam da Cota de Participação Comunitária.
§2º - Os valores das
Cotas de Participação Comunitária fixadas nas alíneas “A”, “B”, “C”, do artigo
anterior serão atualizados ou majoradas, na mesma ocasião e percentuais em que
forem reajustadas ou aumentadas as tarifas de Iluminação Pública.
Artigo 3º - Os
consumidores que não desejarem participar da Cota, durante a vigência desta Lei
deverão se dirigirem a Lançadoria da Prefeitura Municipal de Cajuru, munidos da
última conta de energia elétrica, para preencherem formulários próprio para
esta finalidade, após o que a sua exclusão será providenciada de imediato.
Artigo 4º - Fica o
Chefe do Poder Executivo autorizado a firmar o Convênio com a respectiva
concessionária ou permissionária de serviços públicos de energia elétrica,
transferindo-lhe o encargo de proceder a arrecadação das Cotas de Participação
Comunitária, nas contas de fornecimento de energia elétrica.
§1º - Esta autorização
compreende também a de estabelecer que o
montante mensalmente arrecadado seja contabilizado em conta própria para a
quitação do Custo Mensal das despesas do Município com o custeio da Iluminação
Pública.
2º - Deverá, ainda, ser
mensalmente enviada pela concessionária ou permissionária de Serviços Públicos
de Energia Elétrica, à Prefeitura Municipal de Cajuru a demonstração dos
valores de receita e despesas respectivas para o controle e conferência.
Artigo 5º - Cinqüenta
por cento dos valores correspondentes as importâncias mensais que a Prefeitura
Municipal de Cajuru deixar de pagar para a concessionária ou permissionária de
Serviços Públicos de energia elétrica, em virtude da quitação do custo ou parte
do recolhimento das Cotas de Participação Comunitária, serão destinadas pela
Prefeitura para a expansão e ampliação da Iluminação Pública.
Artigo 6º - Esta Lei
entra em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em
contrário.”
O ato normativo em questão -- como será visto a
seguir -- é incompatível com a Constituição Paulista, mais precisamente com
os seus arts. 111, 144, 160, § 1.º e 163, II, que assim dispõem:
“Art.
111 – A administração pública direta, indireta ou fundacional, de
qualquer dos Poderes do Estado, obedecerá aos princípios de legalidade,
impessoalidade, moralidade, publicidade, razoabilidade,
finalidade, motivação e interesse público.
Art.
144 – Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e
financeira se auto-organizarão por Lei Orgânica, atendidos os princípios
estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.
(Art. 160)
§ 1.º - Sempre que possível,
os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade
econômica do contribuinte, facultado à administração tributária, especialmente
para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos
individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades
econômicas do contribuinte.
Art.
163 – Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é
vedado ao Estado:
I
- ......
II
– instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em
situação equivalente, proibida qualquer distinção em razão de ocupação
profissional ou função por eles exercida, independentemente da denominação
jurídica dos rendimentos, títulos ou direitos;”
Na
ordem constitucional em vigor, os Municípios integram a federação e são dotados
de autonomia, atendidos os
princípios estabelecidos na Carta Magna e na Constituição do respectivo Estado
(CF., art. 29, “caput”). Basicamente, essa autonomia se manifesta pelas seguintes competências: legislar sobre
assuntos de interesse local; suplementar a legislação federal e a estadual no
que couber; “instituir e arrecadar os
tributos que lhes são próprios”
(CF., art. 30, incisos I a III).
Com relação à competência tributária atribuída aos
Municípios, e que é consubstanciada na capacidade de instituir e arrecadar
tributos, é bem de ver que ela encontra limites nas normas da Constituição
Federal ([1])
atinentes ao Sistema Tributário Nacional (CF., art. 145 e segs.), que envolvem
princípios incontornáveis, dentre os quais as
regras matrizes dos tributos.
De fato, mesmo reconhecendo que a Constituição em
vigor não criou tributos, é certo que, além de discriminar competências, ela
fixou a “norma padrão de incidência” de cada um dos tributos que podem
ser instituídos pelos entes estatais. Assim, ao outorgar competência às pessoas
políticas para a instituição de “impostos, taxas e contribuições”, o seu
art. 145 classifica juridicamente os tributos, definindo o padrão de cada um
deles, ao qual o legislador ordinário está vinculado.
Para ROQUE
ANTONIO CARRAZZA,
“A
Constituição, ao discriminar as competências tributárias, estabeleceu - ainda
que, por vezes, de modo implícito e com uma certa margem de liberdade para o
legislador - a norma padrão de incidência (o arquétipo genérico, a regra
matriz) de cada exação. Noutros termos, ela apontou a hipótese de incidência
possível, o sujeito ativo possível, o sujeito passivo possível, a base de
cálculo possível e a alíquota possível, das várias espécies e subespécies de
tributos. Em síntese, o legislador, ao exercitar a competência
tributária, deverá ser fiel à norma padrão de incidência do tributo,
pré-traçada na Constituição. O legislador (federal, estadual, municipal
ou distrital) enquanto cria o tributo,
não pode fugir deste arquétipo constitucional.” (Cf. “Curso de Direito
Constitucional Tributário”,Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 4.ª edição, pág. 257)
Bem por isso, o Supremo Tribunal Federal já
assentou que: “O fundamento do poder de tributar (...) reside no dever
jurídico de essencial e estrita fidelidade dos entes tributantes ao que
imperativamente dispõe a Constituição da República” (v. Despacho do
Ministro-Presidente CELSO DE MELLO, Informativo n.º 125), sendo,
portanto, inconstitucional qualquer tributo criado fora desses limites.
No expediente em anexo, apurou-se que a
Câmara Municipal de Cajuru editou a Lei Complementar n.º 1.275/97, instituindo
a cobrança de contribuição para o custeio do serviço de iluminação pública ,
que, nos termos do seu art. 2.º, “incide sobre a propriedade, o domínio útil
ou a posse, a qualquer título, de imóveis beneficiados pela Iluminação Pública
do Município”.
Pois
bem, anteriormente à edição da EC n.º 39/02 – que tornou possível a cobrança
dessa espécie tributária --, inúmeros Municípios implantaram a taxa de
iluminação pública, que, entretanto, foi declarada inconstitucional pelo
Supremo Tribunal Federal (RREE 231.764-RJ e 233.332-RJ, Rel. Min. ILMAR GALVÃO, j. em 10/03/1999), por se
referir a serviço público não-específico e indivisível.
Ocorre,
porém, que, nada obstante a promulgação da EC n.º 39/02, a Lei Complementar n.º 1.275/97, do Município
de Cajuru, contrariou frontalmente a Constituição, fugindo do modelo por ela
traçado, ao instituir a cobrança de contribuição progressiva, nos termos do seu
art. 1.º.
Com efeito, o art. 1.º da referida Lei
Complementar dispõe que “a cota de
participação comunitária será variável de acordo com (a)
a categoria de consumidor (Industrial,
Comercial e Residencial) e (b) a quantidade de consumo”. Ou seja, o
valor da contribuição ora impugnada é definido, basicamente, pela faixa de
consumo em que se situar o contribuinte na sua respectiva categoria: INDUSTRIAL – R$ 12,78 até R$ 20,00;
COMERCIAL – R$ 12,48 até R$ 18,75;
RESIDENCIAL – R$ 0,13 até R$ 14,67.
Entretanto, por sua natureza peculiar, a contribuição para o custeio da iluminação
pública não condiz com o regime de “progressividade”, tal como previsto na
legislação municipal ora combatida, máxime diante da ausência de autorização
constitucional expressa.
Na
verdade, essa modalidade de tributo não pode variar na razão da presumível
capacidade contributiva do sujeito passivo da obrigação tributária. Aliás,
mesmo se fosse juridicamente possível a adoção da progressividade na definição
da contribuição para o custeio do serviço de iluminação pública, o que se
admite somente para argumentar, não haveria como se proceder à aferição da
capacidade contributiva simplesmente pelo padrão de consumo de energia elétrica
medido em Kw/h, de acordo com a respectiva categoria de consumidores
(Industrial, Comercial e Residencial), porquanto esse critério legal não se presta à efetiva realização da justiça
tributária.
Com efeito, o critério legalmente eleito - a
quantidade de consumo medida em Kw/h - não permite aferir a real capacidade
econômica do contribuinte. Para que seja possível alcançar a isonomia
tributária, por meio de avaliação da capacidade econômica do contribuinte,
afigura-se indispensável a consideração de outros dados, como por exemplo os
rendimentos e as atividades econômicas desenvolvidas pelo contribuinte,
conforme expressamente estabelecido na regra constitucional.
Apenas
para ilustrar essa situação, tome-se como exemplo o imóvel de alto padrão que
seja habitado por apenas um morador, o qual passa a maior parte do tempo fora.
Certamente, o consumo de energia elétrica nesse imóvel será muito inferior ao
de uma moradia coletiva (v.g. um cortiço), que, em regra, é ocupada por pessoas
mais humildes. Por conta do critério legalmente fixado, estas últimas serão
obrigadas ao pagamento de contribuição de iluminação pública em montante
superior ao do primeiro, o que, além de desarrazoado, atenta contra o postulado
da isonomia.
Bem por isso, aliás, ao examinar iniciativa
semelhante, o Des. PAULO SHINTATE advertiu que: “... essa
progressividade (...) estabelecida de forma desvinculada da objetiva e adequada
avaliação da capacidade contributiva do sujeito passivo conduz, ao contrário do
pretendido pela norma constitucional, à injustiça e à quebra do princípio da
isonomia tributária.” (ADIn 059.340.0/8, j. em 26/04/2000).
Ademais, em precedente integralmente
aplicável à espécie, o Excelso Pretório firmou o entendimento no sentido de que
o legislador ordinário não pode se valer da progressividade na definição de
alíquotas pertinentes à contribuição previdenciária, visto que -- cuidando-se
de matéria sujeita a estrita previsão constitucional -- “... inexiste espaço
de liberdade decisória para o Congresso Nacional, em tema de progressividade
tributária, instituir alíquotas progressivas em situações não autorizadas pelo
texto da Constituição” (ADIn 2062/DF, Rel. Min.
CELSO DE MELLO).
CONCLUSÕES: o ato normativo em
epígrafe é materialmente inconstitucional porque: (a) a Constituição não autoriza a adoção do critério da
progressividade na cobrança da contribuição de iluminação pública; (b) a quantidade de consumo (KWH) não
permite aferir a capacidade contributiva;
Remanesce, no caso, a necessidade da concessão de “MEDIDA LIMINAR”. Quando se trata
do controle normativo abstrato, e diante da cumulativa satisfação dos
requisitos legais concernentes ao “fumus
boni júris” e ao “periculum in mora”,
o poder geral de cautela autoriza a suspensão da eficácia do ato normativo
impugnado, até o final julgamento da presente ação direta.
A plausibilidade jurídica da tese exposta na inicial é
evidente, encontrando respaldo inclusive na jurisprudência dominante nesse
Egrégio Tribunal de Justiça (ADIn n.º 111.320.0/5, Rel. Des. NIGRO CONCEIÇÃO,
ADIn n.º 116.949.0/1, Rel. Des. DENSER DE SÁ; ADIn n.º 117.103.0/9, Rel.
Des. RUY CAMILO), que tem considerado desarrazoada, arbitrária e
ofensiva à isonomia a utilização da progressividade como critério de cobrança
da contribuição para o custeio do serviço de iluminação pública, tal como
estabelecido pela Lei Complementar Municipal n.º 1.275/97, de Cajuru.
E, por outro lado, também está delineada a situação de risco, caracterizadora do ‘periculum in mora’, tanto mais porque “em matéria tributária há um permanente
estado de ameaça gerada pela potencialidade de ato administrativo fiscal
dirigido ao contribuinte” (STJ - 1ª Turma, j. 21.8.97, rel. Min. MILTON LUIZ PEREIRA, DJU de 10.11.97,
p. 57.703). Assim, o contribuinte estará sendo compelido a pagar uma exação
cuja constitucionalidade é contestada aqui
-- e certamente o fará por temor às conseqüências que a lei empresta ao
inadimplemento tributário --, salvo, é claro, se estiver amparado por uma
liminar.
Como a Cota de Participação Comunitária para o
Custeio do Serviço de Iluminação Pública atinge milhares de pessoas, a
repetição do indébito exigirá a multiplicação de longas e dispendiosas
demandas. Ou seja, estar-se-á sujeitando o contribuinte a uma situação
semelhante à anacrônica regra do solve et
repete. Em suma: há justo receio de
lesão ao direito que tem o contribuinte de não pagar uma dívida tributária cuja
fonte normativa foi moldada em total afronta às normas constitucionais. De
resto, ainda que não houvesse essa singular situação de risco, restaria, ao
menos, a excepcional conveniência da medida. Com efeito, no contexto das ações
diretas e da outorga de provimentos cautelares para defesa da Constituição, o juízo de conveniência é um critério
relevante, que vem condicionando os pronunciamentos mais recentes do Excelso
Pretório, preordenados à suspensão liminar de leis aparentemente
inconstitucionais (cf. ADIN-MC 125, j. 15.2.90, rel. Min.
CELSO DE MELLO; ADIN-MC 568, RTJ
138/64; ADIN-MC 493, RTJ 142/52).
Tais afirmações se ajustam com precisão aos casos
como o presente, cuja matéria em discussão é de natureza tributária. Com efeito, as limitações constitucionais ao poder
estatal de tributar têm manifesta relevância e é inegável que convém ao bem
comum assegurar o efetivo império de seus princípios. Como se sabe, “o
exercício do poder tributário, pelo Estado, submete-se, por inteiro, aos
modelos jurídicos positivados no texto constitucional, que, de modo explícito
ou implícito, institui em favor dos contribuintes decisivas limitações à
competência estatal para impor e exigir, coativamente, as diversas espécies
tributárias existentes”. Bem por isso, aliás, é que “os
princípios constitucionais tributários (...), sobre representarem importante
conquista político-jurídica dos contribuintes, constituem expressão fundamental
dos direitos individuais outorgados aos particulares pelo ordenamento estatal”
(ADIn-MC n.º 712-DF, rel. Min. CELSO DE
MELLO, j. em 7.10.92).
Em face do exposto, e após a concessão da liminar, requeiro seja
autorizado o processamento da presente ação, colhendo-se informações da Câmara
de Vereadores de Cajuru no prazo regimental, sobre as quais me manifestarei
oportunamente, vindo, afinal, a ser declarada a inconstitucionalidade material
da Lei Complementar n.º 1.275, de 26 de agosto de 1997, ante sua
incompatibilidade com os arts. 111, 144, 160, § 1.º, e 163, incisos II, da
Constituição do Estado de São Paulo.
São Paulo, 08 de agosto de 2008.
FERNANDO GRELLA VIEIRA
[1] As normas constitucionais federais
que estabelecem limitações ao poder de tributar (CF., art. 150 e segs.) são de
observância obrigatória pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios e
foram reproduzidas na Constituição do Estado de São Paulo, mais precisamente no seu art. 159 e segs..