Excelentíssimo
Senhor Doutor Desembargador Presidente do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado
de São Paulo
Protocolado n. 107.709/11
Assunto: Inconstitucionalidade da Lei n. 3.522, de 31 de março de 2011, do Município de Olímpia, e, por arrastamento, do Decreto n. 5.008, de 03 de junho de 2011, do mesmo Município.
Ementa: 1) Ação Direta de Inconstitucionalidade em face da Lei n. 3.522, de 31 de março de 2011, do Município de Olímpia, que “institui o Programa Observadores da Cidade e dá outras providências”, e, por arrastamento, do Decreto n. 5.008, de 03 de junho de 2011, que regulamenta a Lei n. 3.522. Vício de iniciativa. As leis que dispõem sobre a criação de programa de governo e a definição de atribuições a órgãos ou agentes públicos são de iniciativa reservada ao Executivo. A regra da iniciativa reservada tem implicação direta no princípio da independência e harmonia entre os Poderes. Precedentes do TJSP e STF. Ademais, viola o princípio da impessoalidade e da razoabilidade, na medida em que concede privilégio para os “Observadores da Cidade”. Caracterizada, na espécie, a afronta aos arts. 5.º, 24, § 2.º, 1, 111, 144, da Constituição do Estado de São Paulo .
O Procurador-Geral de Justiça do Estado de São Paulo, no exercício da atribuição prevista no art. 116, VI, da Lei Complementar Estadual n. 734, de 26 de novembro de 1993 (Lei Orgânica do Ministério Público de São Paulo), em conformidade com o disposto no art. 125, § 2º, e no art. 129, IV, da Constituição Federal, e ainda no art. 74, VI, e no art. 90, III, da Constituição do Estado de São Paulo, com amparo nas informações colhidas no incluso protocolado, vem, respeitosamente, perante esse Egrégio Tribunal de Justiça, promover a presente AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE em face da Lei n. 3.522, de 31 de março de 2011, do Município de Olímpia, que “institui o Programa Observadores da Cidade e dá outras providências”, e, por arrastamento, do Decreto n. 5.008, de 03 de junho de 2011, que regulamenta a Lei n. 3.522 , pelos fundamentos a seguir expostos:
I – OS ATOS NORMATIVOS IMPUGNADOS
A Lei n. 3.522, de 31 de março de 2011, do Município de Olímpia, apresenta a seguinte redação:
“Art. 1º - Fica o Poder Executivo
autorizado a instituir o Programa Observador da Cidade, no Município de
Olímpia.
Art. 2º - O Programa de que trata o
artigo anterior tem como objetivo incentivar a participação da comunidade na
administração do município, cooperando para a eficiência do serviço público,
que será estabelecido na regulamentação desta Lei.
Art. 3º - Os munícipes que
pretenderem participar do programa, deverão se cadastrar junto ao órgão público,
que será estabelecido na regulamentação desta Lei.
Art. 4º - Os munícipes cadastrados
comunicarão ao órgão competente a ocorrência de falhas na iluminação pública,
má conservação da pavimentação asfáltica e passeios públicos, deterioramento de
praças e logradouros, ausência de sinalização de solo e vertical, serviço
público inadequado ou de má qualidade e quaisquer outras informações que visem
o aperfeiçoamento dos serviços públicos para prosperar a qualidade de vida da
população.
Art. 5º - Os Observadores da Cidade
prestarão serviços em caráter voluntário, cujo exercício não configurará nenhum
vínculo de trabalho junto à Prefeitura Municipal de Olímpia.
Art. 6º - Os Observadores da Cidade,
que efetivamente colaborem, na forma da regulamentação da presente lei, terão
benefícios no agendamento de suas consultas e exames médicos na Rede Municipal
de Saúde.
Art. 7º - A coordenação do Programa instituído
nesta lei caberá a Secretaria Municipal de Governo que atuará em conjunto com
os demais setores da Administração Municipal.
Art. 8º - As despesas decorrentes da
execução desta Lei ocorrerão por conta de dotações orçamentárias próprias,
suplementadas se necessário.
Art. 9º - Fica o Poder Executivo
autorizado a expedir as normas necessárias à execução da presente lei.
Art. 10 – Esta Lei entrará em vigor
na data de sua publicação, revogadas todas as disposições em contrário”.
O Decreto n. 5.008, de 03 de junho de 2011, que regulamenta a Lei n. 3.522, de 31 de março de 2011, assim estabelece:
“Art. 1º - O munícipe, cidadão na
forma da lei, quites com a Justiça Eleitoral e com os cofres públicos no âmbito
do Município de Olímpia, que pretender participar do Programa Observadores da
Cidade deverá se cadastrar junto à Secretaria Municipal de Governo,
Coordenadora do referido Programa.
§1º - Para o cadastramento são
necessários:
I-Título de Eleitor;
II- RG;
III-CPF;
IV- Fotografia 3x4
V- Comprovante de Residência.
§ 2º - O cadastramento será realizado
nos horários de expediente da Prefeitura Municipal de Olímpia.
§ 3º - A pedido do interessado, a
Administração Pública poderá expedir carteira de identificação e registro no
Programa Observadores da Cidade.
Art. 2º - O Observador da Cidade, devidamente cadastrado, comunicará à
Secretaria Municipal de Governo a ocorrência de:
I – falhas na iluminação pública;
II- conservação da pavimentação
asfáltica e passeios públicos;
III- deterioramento de praças e
logradouros;
IV- ausência de sinalização de solo e
vertical;
V- serviço público inadequado ou de
má qualidade;
VI- demais informações com objetivo
de aperfeiçoar os serviços públicos e melhoria da qualidade de vida da
população;
§ 1º - Para o registro via Internet
das observações constantes neste artigo, será criado pelo órgão competente da
administração pública, endereço postal eletrônico, para cada Observador
cadastrado.
§ 2º - Poderá o Observador optar por
registrar as reclamações em livro
oficial de registro, destinado exclusivamente para este fim, tornando-se
documento público, rubricado pela Secretaria Municipal do Governo.
Art. 3º - A Secretaria Municipal de
Governo encaminhará, imediatamente, a reclamação registrada pelo Observador,
nos termos deste Decreto, ao órgão público responsável que deverá agendar e
executar o devido reparo.
Parágrafo único. A tomada de
providência para o efetivo reparo do serviço reclamado deverá ser comunicado ao
Observador reclamante.
Art. 4º - O Observador firmará
declaração que é parceiro voluntário da Administração pública, ciente de que
sua atuação é relevante para o aperfeiçoamento dos serviços públicos para
prosperar a qualidade de vida da população, de forma que, em nenhuma hipótese,
ocorrerá vínculo de emprego junto à Prefeitura do Município de Olímpia.
Parágrafo único. O Observador que,
efetivamente, colaborar com o disposto no art. 2º do presente decreto fará jus
a benefícios nos agendamentos de suas consultas médicas e/ou odontológica,
assim como aos exames médicos na Rede Municipal de Saúde.”
Como se demonstrará a seguir, os referidos dispositivos legais são verticalmente incompatíveis com a Constituição do Estado de São Paulo.
II- DA VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES
Com efeito, o
planejamento, a direção, o controle e a execução de programa de governo de
interesse municipal, como é o caso do “Programa Observadores da Cidade” –
insere-se na órbita de atribuições do Prefeito, que, no exercício desse mister,
não pode sofrer ingerência da Câmara.
A Câmara não administra
o Município. A sua função primordial é a normativa, isto é, a edição de normas
gerais, abstratas e obrigatórias de conduta. O Poder constitucionalmente
encarregado de administrar é o Executivo, que deve ater-se, porém, no
desempenho dessa grave missão, aos parâmetros legalmente previstos, por força
do princípio da legalidade, que rege toda atividade administrativa, consoante o
art. 111 da Carta Política Estadual.
Em regra, a Câmara pode
legislar sobre todos os assuntos de interesse local (CF, art. 30, I), inclusive
suplementar a legislação federal e estadual no que couber (CF, art. 30, II),
mas há certos temas cuja disciplina normativa foi confiada ao Executivo, no que
tange à prerrogativa de iniciar o processo legislativo, entre os quais a
criação de atribuições a órgãos e agentes públicos, e, acerca desses temas, a
Câmara não poderá dispor sem a provocação do Prefeito.
A regra da reserva de
iniciativa deriva do processo legislativo federal e, devido à estreita
vinculação com o princípio da independência e harmonia entre os Poderes, sua
observância é obrigatória pelos Estados e Municípios, nos termos da
jurisprudência assente no STF, “verbis”:
“Processo
legislativo dos Estados-membros: absorção compulsória das linhas básicas do
modelo constitucional federal entre elas, as decorrentes das normas de reserva
de iniciativa das leis, dada a implicação com o princípio fundamental da
separação e independência dos Poderes: jurisprudência consolidada do Supremo
Tribunal.” (ADI 637, Rel. Min. SEPULVEDA PERTENCE, julgamento em 25-8-04, DJ de
1.º-10-04.)
Vistos esses aspectos de
ordem geral, tem-se no caso sob exame que a Câmara de Vereadores de Olímpia
aprovou projeto de lei de iniciativa parlamentar que institui programa de
governo e estabelece atribuições a órgãos e agentes públicos municipais, sem,
no entanto, atentar para a reserva de iniciativa existente sobre essa matéria
em favor do Executivo.
No âmbito desse Egrégio Tribunal de Justiça, a questão objeto da controvérsia já foi enfrentada em várias oportunidades, conforme se pode observar dos precedentes abaixo reproduzidos:
“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. §§ 1º E 2º DO ARTIGO 3º E DO
ARTIGO 12 E SEUS PARÁGRAFOS DA LEI Nº 6.628, DE 17DE MARÇO DE 2010, DO
MUNICÍPIO DE GUARULHOS QUE DISPÕE SOBRE O PROGRAMA DE FOMENTO AO TEATRO E À
DANÇA. MATÉRIA QUE CUIDA DE GERENCIAMENTO ADMINISTRATIVO. VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO
DA INDEPENDÊNCIA ENTRE OS PODERES. INCONSTITUCIONALIDADE DECLARADA PEDIDO
JULGADO PROCEDENTE. À evidência que a lei municipal questionada, embora contenha proposta louvável, invade
competência privativa do chefe do Poder Executivo Municipal. Dispor sobre a
instituição de programa municipal, atribuindo obrigações ao Chefe do Poder
Executivo e aos órgãos municipais, é matéria referente à administração
municipal.” (ADI 990.10.218985-6,
Rel. Des. ARMANDO TOLEDO, v.u., julgamento em 17/11/2010)
“Ementa:
Constitucional - Ação direta de inconstitucionalidade - Lei n° 1.873, de 09 de
fevereiro de 2010, do Município de Cabreúva, que "autoriza o Poder
Executivo a criar programa de agendamento com o objetivo de garantir o
transporte para tratamento de doentes naquela urbe - Iniciativa e promulgação
parlamentar - Ingerência na Administração local - Vicio de iniciativa -
Maltrato ao principio da independência dos Poderes - Ausência de indicação dos
recursos disponíveis, ademais - Ofensa aos arts. 5º ‘caput’; 25 ‘caput’; 37;
47, II, XI e XIV; 111; 144; e 176, I, da Constituição do Estado -
Inconstitucionalidade declarada, prejudicado o pedido de suspensão da cautela
deferida.” (ADI 990.10.174222-5,
Rel.
Des. IVAN SARTORI, v.u., julgamento em 3/11/2010)
“EMENTA: AÇÃO
DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE - LEI N° 10.480, DO MUNICÍPIO DE SÃO JOSÉ DO
RIO PRETO, QUE INSTITUI PROGRAMA DE PREVENÇÃO DE SAÚDE DENOMINADO SEMANA
MUNICIPAL DA INSUFICIÊNCIA RENAL - INCONSTITUCIONALIDADE FORMAL - VÍCIO DE
INICIATIVA E VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES - INVASÃO DE
COMPETÊNCIA DO PODER EXECUTIVO - VIOLAÇÃO DOS ARTS. 5o, 25, 47, II, XIV E XIX,
a, DA CONSTITUIÇÃO DO ESTADO DE SÃO PAULO-AÇÃO PROCEDENTE. "A Lei
Municipal instituiu a 'Semana Municipal da Insuficiência Renal', verdadeiro
programa de prevenção de saúde cujas disposições consubstanciam atos típicos de
gestão administrativa, distanciando-se dos caracteres de generalidade e
abstração de que se devem revestir aqueles editados pelo poder Legislativo. A
norma acoima-se de vício de iniciativa e inconstitucionalidade material, na
medida em que invade a esfera da gestão administrativa, que cabe ao Poder
Executivo, e envolve o planejamento, a direção, a organização e a execução de
atos de governo. Suas disposições equivalem à prática de ato de administração,
de sorte a malferir a separação de poderes. A inconstitucionalidade se verifica
também em face da violação do art. 25 da Constituição do Estado de São Paulo,
porquanto a lei cria novas despesas sem indicação específica da fonte de
custeio".
Conclui-se, assim, que a
Câmara de Vereadores de Olímpia usurpou prerrogativa que é própria da função
executiva, no campo da iniciativa reservada de lei, ao dispor sobre matéria
que, consoante o disposto na vigente Constituição (arts. 24, § 2.º, 1, e 174,
inciso I), só poderia advir de projeto de lei de iniciativa exclusiva do chefe
do Poder Executivo, qual seja a instituição de programa de governo e a
definição de atribuições a órgãos e agentes públicos municipais, o que gerou repercussão na independência e harmonia entre
os Poderes.
III - VIOLAÇÃO DE PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DA
ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
Os atos normativos em questão acabaram por criar privilégio para os “Observadores da Cidade”, na medida em que a eles garantem benefícios no agendamento de suas consultas e exames médicos na Rede Municipal de Saúde (art. 6º da Lei n. 3.522/11 e parágrafo único do art. 4º do Decreto n. 5.008/11).
Verifica-se, portanto, que os dispositivos legais mencionados têm por escopo melhorar a situação pessoal daqueles munícipes que se cadastrarem como “Observadores da Cidade”, pois apenas estes serão contemplados pelos benefícios acima referidos, sem que haja, em contrapartida, fundamento razoável desse lastro ao tratamento diferenciado.
Assim, restaram contrariados, igualmente, os princípios da impessoalidade e da razoabilidade, previstos no art. 111 da Constituição Paulista, aplicável aos Municípios por força do art. 144 da mesma Carta.
A respeito da violação da impessoalidade
e da finalidade, é oportuno recordar que
estes princípios incorporam, em última análise, o próprio princípio da
isonomia. E sobre este, anota
“O princípio da isonomia preceitua que sejam tratadas igualmente as situações iguais e desigualmente as desiguais. Donde não há como desequiparar pessoas e situações quando nelas não se encontram fatores desiguais. E, por fim, consoante averbado insistentemente, cumpre ademais que a diferença do regime legal esteja correlacionada com a diferença que se tomou em conta” (Conteúdo jurídico do princípio da igualdade, 3ªed., 12ª tir., São Paulo, Malheiros, 2004, p.35).
De outro lado, em oportuna síntese, sustenta Maria Sylvia Zanella Di Pietro que “sempre que em matéria administrativa se verificar que o comportamento da Administração ou do administrado que com ela se relaciona juridicamente, embora em consonância com a lei, ofende a moral, os bons costumes, as regras de boa administração, os princípios de justiça e de equidade, a idéia comum de honestidade, estará havendo ofensa ao princípio da moralidade administrativa” (Direito Administrativo, 19ª ed., São Paulo, Atlas, 2006, p. 94).
Ora, dar tratamento diferenciado a determinada categoria de munícipes, tão somente pelo fato deles serem cadastrados como “Observadores da Cidade”, sem que haja um consistente fator de discrimen, significa privilegiar o interesse privado em detrimento do interesse público. Isso contraria a moralidade administrativa, fere a impessoalidade e é sinônimo de desvio de finalidade.
Diante do conjunto de parâmetros desrespeitados pelos dispositivos legais impugnados, é imperativo o reconhecimento da respectiva inconstitucionalidade, por violar o art. 111 da CE, aplicável por força do art. 144 da Constituição Paulista.
IV - Pedido
Face ao exposto, requer o recebimento
e o processamento da presente ação, que deverá ser julgada procedente para
declaração da inconstitucionalidade da Lei n. 3.522, de 31 de março de 2011,
que “institui o Programa Observadores da Cidade e dá outras providências”, do
Município de Olímpia, e, por arrastamento, do Decreto n. 5.008, de 03 de junho
de 2011, que regulamenta a Lei nº 3.522.
Requer-se,
ainda, sejam requisitadas informações à Câmara Municipal e ao Prefeito
Municipal de Olímpia, bem como posteriormente citado o Procurador-Geral do
Estado para se manifestar sobre os atos normativos impugnados, protestando por
nova vista para manifestação final.
São Paulo, 10 de fevereiro de 2012.
Walter Paulo Sabella
Procurador-Geral de Justiça
em exercício
vlcb
Protocolado n. 107.709/11
Assunto: Inconstitucionalidade da Lei n. 3.522, de 31 de março de 2011, do Município de Olímpia e, por arrastamento, do Decreto n. 5.008, de 03 de junho de 2011, do mesmo Município.
1. Distribua-se a petição inicial da ação direta de inconstitucionalidade, em face da Lei n. 3.522, de 31 de março de 2011, que “institui o Programa Observadores da Cidade e dá outras providências”, do Município de Olímpia e, por arrastamento, do Decreto n. 5.008, de 03 de junho de 2011, que regulamenta a Lei n. 3.522, junto ao Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.
2. Oficie-se ao interessado, informando-lhe a propositura da ação, com cópia da petição inicial.
São Paulo, 10 de fevereiro de 2012.
Walter Paulo Sabella
Procurador-Geral de Justiça
em exercício
vlcb