EXCELENTÍSSIMO SENHOR DESEMBARGADOR PRESIDENTE DO E. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

Protocolado nº 108.768/11

Assunto: Inconstitucionalidade da Lei nº 3.310, de 18 de maio de 2009, do Município de Cubatão.

 

Ementa: Lei n. 3310/2009, do Município de Cubatão, autorizando o Poder Executivo a celebrar convênio com entidades privadas para o atendimento gratuito da educação infantil (creche e pré-escola). Caso em que a lei não subordina o contrato à licitação. Inconstitucionalidade por ofensa aos princípios da legalidade, impessoalidade e moralidade (arts. 111, 117 e 144, CE). Lei “autorizativa”. Usurpação da Câmara na gestão administrativa violadora do princípio da separação dos Poderes (art. 5º, CE). Pedido para que se declare a inconstitucionalidade da lei e do decreto regulamentar (além do diploma por aquela revogado). Pedido subsidiário, pela adoção da técnica da interpretação conforme a Constituição, declarando-se que o convênio pressupõe o certame licitatório.

 

O Procurador-Geral de Justiça do Estado de São Paulo, no exercício da atribuição prevista no art. 116, inciso VI, da Lei Complementar Estadual nº 734, de 26 de novembro de 1993 (Lei Orgânica do Ministério Público de São Paulo), em conformidade com o disposto no art. 125, § 2º, e art. 129, inciso IV, da Constituição Federal, e ainda art. 74, inciso VI, e art. 90, inciso III, da Constituição do Estado de São Paulo, com amparo nas informações colhidas no incluso protocolado, vem, respeitosamente, perante esse Egrégio Tribunal de Justiça, promover a presente:

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE

da Lei nº 3.310, de 18 de maio de 2009, do Município de Cubatão, que “autoriza o Poder Executivo a celebrar convênio com as entidades sediadas no Município de Cubatão, para os fins que menciona, e dá outras providências, pelos fundamentos a seguir expostos.

1. DO ATO NORMATIVO

A lei impugnada tem o seguinte teor: 

LEI nº 3.310, de 18/05/2009

Autoriza o Poder Executivo a celebrar convênio com as entidades sediadas no Município de Cubatão, para os fins que menciona, e dá outras providências.

MARCIA ROSA DE MENDONÇA SILVA, Prefeita Municipal de Cubatão, faço saber, que a Câmara Municipal decretou e eu sanciono e promulgo a seguinte Lei:

Art. 1º Fica o Poder Executivo autorizado a celebrar Convênio, com Entidades sediadas no Município de Cubatão, visando formalizar condições para o estabelecimento de uma parceria entre o Município, por intermédio da Secretaria Municipal de Educação e as conveniadas para atendimento gratuito da Educação Infantil (Creche e Pré-Escola), através da concessão de "BOLSA EDUCAÇÃO INFANTIL", visando suprir as necessidades pessoais e pedagógicas das crianças.

Parágrafo único. As condições para o estabelecimento das parcerias com as referidas entidades, bem como as obrigações das convenentes, encontram-se devidamente estabelecidas nas Minutas de Termo de Convênio que fazem parte integrante desta Lei.

Art. 2º A Entidade interessada em firmar o Convênio deverá apresentar o seu requerimento à Prefeitura Municipal de Cubatão, instruído, no mínimo, com os seguintes documentos:

I - ato constitutivo e suas alterações devidamente formalizados;

II - instrumento de mandato, quando representado por procurador(es);

III - prova de inscrição no Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas (CNPJ);

IV - prova de inscrição no Cadastro de Contribuintes estadual ou municipal, se houver, relativo ao domicílio ou sede, pertinente ao seu ramo de atividade;

V - prova de regularidade para com a Fazenda Federal, Estadual e Municipal do seu domicílio ou sede;

VI - prova de regularidade relativa à Seguridade Social e ao Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), demonstrando situação regular no cumprimento dos encargos sociais instituídos por lei;

VII - balanço patrimonial e demonstrações contábeis do ultimo exercício social, já exigíveis e apresentados na forma da lei, que comprovem a boa situação financeira da Instituição, vedada a sua substituição por balancetes ou balanços provisórios;

VIII - certidão negativa de falência e recuperação judicial expedida pelo distribuidor da sue sede;

IX - prova do registro no Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente;

X - alvará de funcionamento;

XI - outras que vierem a ser solicitadas pela Administração.

Parágrafo único. No mês de dezembro do Exercício imediatamente anterior ao de vigência, as Entidades conveniadas de que trata este artigo deverão comprovar a manutenção do atendimento das condições delas exigidas e atualizar seus cadastros perante a Prefeitura Municipal de Cubatão, informando a disponibilidade de vagas e o período das mesmas.

Art. 3º Após a verificação da regularidade prevista no artigo anterior, a Prefeitura Municipal de Cubatão celebrará convênios com as entidades para a realização da finalidade referida nesta Lei.

Art. 4º  O valor que será repassado mensalmente à entidade pela prestação do serviço objeto do Convênio autorizado por esta Lei será fixado por Decreto do Poder Executivo.

Art. 5º As vagas objetos desta Lei serão distribuídas segundo a demanda de cada local e a sua disponibilidade nas escolas conveniadas, sendo que serão obedecidos os critérios já utilizados pela Secretaria Municipal de Educação quando da seleção para a rede pública, bem como o de encaminhamento da criança à entidade cadastrada mais próxima de sua residência.

Art. 6º As despesas decorrentes da presente Lei correrão por conta da dotação própria do Orçamento vigente, suplementadas se necessário.

Art. 7º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário, em especial a Lei Municipal nº 3.198, de 07 de novembro de 2007.

Contudo, é possível afirmar que a lei impugnada ofende frontalmente os seguintes dispositivos da Constituição do Estado de São Paulo: arts. 111, 117 e 144.

É o que será demonstrado a seguir.

 

2. DA FUNDAMENTAÇÃO

Está fora de disputa que a ordem jurídica impõe aos Municípios a obrigação de acolher crianças de zero a seis anos em sua rede pública de educação.

É o que se extrai dos seguintes comandos normativos:

Constituição Federal:

Art. 211. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios organizarão em regime de colaboração seus sistemas de ensino.

(...)

§ 2º Os Municípios atuarão prioritariamente no ensino fundamental e na educação infantil.

(...)

Art. 208 - O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de:

(...)

IV - atendimento em creche e pré-escola às crianças de zero a seis anos de idade;

Referidas garantias constitucionais foram previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente – Lei n. 8.06990 nos seguintes termos:

Art. 54 - É dever do Estado assegurar à criança e ao adolescente:

I - ensino fundamental, obrigatório e gratuito, inclusive para os que a ele não tiveram acesso na idade própria;

II - progressiva extensão da obrigatoriedade e gratuidade ao ensino médio;

III - atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência preferencialmente na rede regular de ensino;

IV - atendimento em creche e pré-escola às crianças de (zero) a 6 (seis) anos de idade; (sem destaque no original).

De outro giro, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei n. 9.39496, art. 4º, IV) também assegura o atendimento de crianças de zero a seis anos em creches e pré-escolas.

Portanto, não há outra interpretação possível desses dispositivos, a não ser a de que constitui um dever da Administração Pública propiciar às crianças nessa faixa etária acesso ao atendimento público educacional. Jungida ao princípio da legalidade, cabe ao Poder Público, sem margem à discricionariedade, assegurar que tais serviços sejam prestados, preferencialmente pela rede pública.

A lei em análise, embora editada para cumprir tal desiderato, mostra-se, pelos aspectos adiante destacados, verticalmente incompatível com as seguintes disposições da Constituição do Estado de São Paulo:

Art. 111 – A administração pública direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes do Estado, obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, razoabilidade, finalidade, motivação e interesse público.

Art. 117 – Ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações.

Art. 144 - Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por Lei Orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.

De fato, a Constituição em vigor consagrou o Município como entidade federativa indispensável ao nosso sistema federativo, integrando-o na organização político-administrativa e garantindo-lhe plena autonomia, como se nota da exegese dos arts. 1.º, 18, 29, 30 e 34, VI, “c” da Constituição Federal (Alexandre de Moraes, Direito Constitucional, 7.ª ed., São Paulo: Atlas, 2004, p. 261).

 Na definição de José Afonso da Silva, autonomia é a capacidade ou poder de gerir os próprios negócios, dentro de um círculo prefixado por entidade superior, que no caso é a Constituição (José Afonso da Silva, Curso de Direito Constitucional Positivo, 8ª. ed., São Paulo: Malheiros, 1992, p. 545). Verifica-se, pois, que essa autonomia consagrada ao Município não tem caráter absoluto e soberano; ao contrário, encontra limites nos princípios emanados dos poderes públicos e dos pactos fundamentais, que instituíram a soberania de um povo (De Plácido e Silva, Vocabulário Jurídico, Rio de Janeiro: Forense, Vol. I, 1984, p. 251).

A autonomia municipal assenta-se em quatro capacidades básicas: (a) auto-organização, mediante a elaboração de lei orgânica própria, (b) autogoverno, pela eletividade do Prefeito e dos Vereadores as respectivas Câmaras Municipais, (c) autolegislação, mediante competência de elaboração de leis municipais sobre áreas que são reservadas à sua competência exclusiva e suplementar, (d) autoadministração ou administração própria, para manter e prestar os serviços de interesse local (José Afonso da Silva, ob. cit., p. 546).

Nessas quatro capacidades, encontram-se caracterizadas a autonomia política (capacidades de auto-organização e autogoverno), a autonomia normativa (capacidade de fazer leis próprias sobre matéria de sua competência), a autonomia administrativa (administração própria e organização dos serviços locais) e a autonomia financeira (capacidade de decretação de seus tributos e aplicação de suas rendas, que é uma característica da autoadministração), conforme o mesmo autor.

Por força da autonomia administrativa de que foram dotadas, as entidades municipais são livres para administrar seus próprios interesses, segundo suas conveniências locais. Mas a liberdade conferida aos Municípios para organizar os seus próprios serviços não é ampla e ilimitada; ela se subordina às seguintes regras fundamentais e impostergáveis: (a) a que exige que essa organização se faça por lei; (b) a que prevê a competência exclusiva da entidade ou Poder interessado; e (c) a que impõe a observância das normas constitucionais federais e estaduais pertinentes (José Afonso da Silva, op. cit., p. 545).

No caso dos autos, pelo ato normativo inquinado, a Câmara Municipal “autorizou” o chefe do Poder Executivo a firmar convênios – dispensando-se a licitação – com pessoas jurídicas de direito privado com fins lucrativos, para atender à demanda pelo ensino infantil no Município.

Cada vaga criada pelos conveniados é remunerada de acordo com tabela definida unilateralmente pelo Prefeito, editada por Decreto regulamentar (cf. fls. 49), o que desatende aos princípios insculpidos no art. 111 da Carta Paulista, em especial os da legalidade, impessoalidade, moralidade e motivação.

Nem mesmo os elevados propósitos que, supostamente, inspiraram a iniciativa – o acolhimento em creches a todas as crianças residentes no Município (fls 60/68) – justificam a concretização de “parcerias” (a expressão consta da lei) com entidades escolhidas ao acaso, dentre aquelas que se limitam a exibir os documentos exigidos pela Prefeitura (art. 2º).

De se ver, aliás, que a lei concede ao Administrador a possibilidade de estabelecer “outras exigências” às entidades interessadas em celebrar ditos convênios (art. 2º, inc. XI), o que, à evidência, dá azo à escolha de apadrinhados ou à recusa de personas non gratas.

É por isso que, diante da opção política do Alcaide acerca da forma de prestação do serviço de educação infantil, impunha-se subordiná-lo ao procedimento licitatório, o que não ocorreu ao legislador cubatense.

Maria Sylvia Zanella Di Pietro, lembrando o conceito de José Roberto Dromi define a licitação “como o procedimento administrativo pelo qual um ente público, no exercício da função administrativa, abre a todos os interessados, que se sujeitem às condições fixadas no instrumento convocatório, a possibilidade de formularem propostas dentre as quais selecionará e aceitará a mais conveniente para a celebração de contrato” (Direito Administrativo, 13ª ed., São Paulo: Atlas, 2001, p. 291). É comum na Administração Pública a contratação com terceiros. Consoante leciona Marçal Justen Filho, citando Cirne Lima, “o fim, - e não a vontade -, domina todas as formas de administração” (Marçal Justen Filho, Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos, 5ª. ed., São Paulo: Dialética, 1998, p. 11).

Sobre a necessidade da licitação para a prestação desse serviço através da rede particular orienta-nos o STJ:

“DIREITO CONSTITUCIONAL À CRECHE EXTENSIVO AOS MENORES DE ZERO A SEIS ANOS. NORMA CONSTITUCIONAL REPRODUZIDA NO ART. 54 DO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. NORMA DEFINIDORA DE DIREITOS NÃO PROGRAMÁTICA. EXIGIBILIDADE EM JUÍZO. INTERESSE TRANSINDIVIDUAL ATINENTE ÀS CRIANÇAS SITUADAS NESSA FAIXA ETÁRIA. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. CABIMENTO E PROCEDÊNCIA.

1- O direito constitucional à creche extensivo aos menores de zero a seis anos é consagrado em  norma constitucional reproduzida no art. 54 do Estatuto da Criança e do Adolescente. Violação de Lei Federal.

"É dever do Estado assegurar à criança e ao adolescente: I - ensino fundamental, obrigatório e gratuito, inclusive para os que a ele não tiveram acesso na idade própria; II - progressiva extensão da obrigatoriedade e gratuidade ao ensino médio; III - atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência preferencialmente na rede regular de ensino; IV - atendimento em creche e pré-escola às crianças de (zero) a 6 (seis) anos de idade."

2- Releva notar que uma Constituição Federal é fruto da vontade política nacional, erigida mediante consulta das expectativas e das possibilidades do que se vai consagrar, por isso que cogentes e eficazes suas promessas, sob pena de restarem  vãs e frias enquanto letras mortas no papel. Ressoa inconcebível que direitos consagrados em normas menores como Circulares, Portarias, Medidas Provisórias, Leis Ordinárias tenham eficácia imediata e os direitos consagrados constitucionalmente, inspirados nos mais altos valores éticos e morais da nação sejam relegados a segundo plano. Prometendo o Estado o direito à creche, cumpre adimpli-lo, porquanto a vontade política e constitucional, para utilizarmos a expressão de Konrad Hesse, foi no sentido da erradicação da miséria intelectual que assola o país. O direito à creche é consagrado em regra com normatividade mais do que suficiente, porquanto se define pelo dever, indicando o sujeito passivo, in casu, o Estado.

3- Consagrado por um lado o dever do Estado, revela-se,  pelo outro ângulo, o direito subjetivo da criança. Consectariamente, em função do princípio da inafastabilidade da jurisdição consagrado constitucionalmente, a todo direito corresponde uma ação que o assegura, sendo certo que todas as crianças nas condições estipuladas pela lei encartam-se na esfera desse direito e podem exigi-lo em juízo. A  homogeneidade e transindividualidade do direito em foco enseja a propositura da ação civil pública.

4- A determinação judicial desse dever pelo Estado, não encerra suposta ingerência do judiciário na esfera da administração. Deveras, não há discricionariedade do administrador frente aos direitos consagrados, quiçá constitucionalmente. Nesse campo a atividade é vinculada sem admissão de qualquer exegese que vise afastar a garantia pétrea.

5- Um país cujo preâmbulo constitucional promete a disseminação das desigualdades e a proteção à dignidade humana, alçadas ao mesmo patamar da defesa da Federação e da República, não pode relegar o direito à educação das crianças a um plano diverso daquele que o coloca, como uma das mais belas e justas garantias constitucionais.

6- Afastada a tese descabida da discricionariedade, a única dúvida que se poderia suscitar resvalaria na natureza da norma ora sob enfoque, se programática ou definidora de direitos. Muito embora a matéria seja, somente nesse particular, constitucional, porém sem importância revela-se essa categorização, tendo em  vista a explicitude do ECA, inequívoca se revela a normatividade suficiente à promessa constitucional, a ensejar a acionabilidade do direito consagrado no preceito educacional.

7- As meras diretrizes traçadas pelas políticas públicas não são ainda direitos senão promessas de lege ferenda, encartando-se na esfera insindicável pelo Poder Judiciário, qual a da oportunidade de sua implementação.

8- Diversa é a hipótese segundo a qual a Constituição Federal consagra um direito e a norma infraconstitucional o explicita, impondo-se ao judiciário torná-lo realidade, ainda que para isso, resulte obrigação de fazer, com repercussão na esfera orçamentária.

9- Ressoa evidente que toda imposição jurisdicional à Fazenda Pública implica em dispêndio e atuar,  sem que isso infrinja  a harmonia dos poderes, porquanto no regime democrático e no estado de direito o Estado soberano submete-se à própria justiça que instituiu. Afastada, assim, a ingerência entre os poderes, o judiciário, alegado o malferimento da lei, nada mais fez do que cumpri-la ao determinar a realização prática da promessa constitucional.

10- O direito do menor à  frequência em creche, insta o Estado a  desincumbir-se do mesmo  através da sua rede própria. Deveras, colocar um menor na fila de espera e atender a outros, é o mesmo que tentar legalizar a mais violenta afronta ao princípio da isonomia, pilar não só da sociedade democrática anunciada pela Carta Magna, mercê de ferir de morte a cláusula de defesa da  dignidade humana.

11- O  Estado não tem o dever de inserir a criança numa escola particular, porquanto as relações privadas subsumem-se a burocracias sequer previstas na Constituição. O que o Estado soberano promete por si ou por seus delegatários é cumprir o dever de educação mediante o oferecimento de creche para crianças de zero a seis anos. Visando ao cumprimento de seus desígnios, o Estado tem domínio iminente sobre bens, podendo valer-se da propriedade privada, etc. O que não ressoa lícito é repassar o seu encargo para o particular, quer incluindo o menor numa 'fila de espera', quer sugerindo uma medida que tangencia a legalidade, porquanto a inserção numa creche particular somente poderia ser realizada sob o pálio  da licitação ou delegação legalizada, acaso a entidade fosse uma longa manu  do Estado ou anuísse, voluntariamente, fazer-lhe as vezes.” (REsp n. 575.280-SP, relator para acórdão Ministro Luiz Fux, DJ de 25.10.2004, grifamos).”

Nem mesmo a ideia de que a lei se traduz em mera “autorização” para a celebração de convênios afasta a inconstitucionalidade detectada. A bem da verdade, dita característica a ressalta, quando se atenta para o fato de que o Executivo não necessita de autorização da Câmara Municipal para administrar ou celebrar convênios. Analisando a fundo esse mecanismo, ver-se-á que o Legislativo está se imiscuindo na gestão administrativa, com ofensa à regra constitucional da separação dos Poderes (art. 5º, da Constituição do Estado).

Talvez por isso esse C. Órgão Especial venha afirmando a inconstitucionalidade das leis autorizativas, forte no entendimento de que as tais “autorizações” são eufemismo de “determinações”, e, por isso, usurpam a competência material do Poder Executivo:

“LEIS AUTORIZATIVAS – INCONSTITUCIONALIDADE - Se uma lei fixa o que é próprio da Constituição fixar, pretendendo determinar ou autorizar um Poder constituído no âmbito de sua competência constitucional, essa lei e inconstitucional. — não só inócua ou rebarbativa, — porque estatui o que só o Constituinte pode estatuir O poder de autorizar implica o de não autorizar, sendo, ambos, frente e verso da mesma competência - As leis autorizativas são inconstitucionais por vicio formal de iniciativa, por usurparem a competência material do Poder Executivo e por ferirem o principio constitucional da separação de poderes.

VÍCIO DE INICIATIVA QUE NÃO MAIS PODE SER CONSIDERADO SANADO PELA SANÇÃO DO PREFEITO - Cancelamento da Súmula 5, do Colendo Supremo Tribunal Federal.

LEI MUNICIPAL QUE, DEMAIS IMPÕE INDEVIDO AUMENTO DE DESPESA PÚBLICA SEM A INDICAÇÃO DOS RECURSOS DISPONÍVEIS, PRÓPRIOS PARA ATENDER AOS NOVOS ENCARGOS (CE, ART 25). COMPROMETENDO A ATUAÇÃO DO EXECUTIVO NA EXECUÇÃO DO ORÇAMENTO - ARTIGO 176, INCISO I, DA REFERIDA CONSTITUIÇÃO, QUE VEDA O INÍCIO DE PROGRAMAS. PROJETOS E ATIVIDADES NÃO INCLUÍDOS NA LEI ORÇAMENTÁRIA ANUAL” (ADIN 142.519-0/5-00, rel. Des. Mohamed Amaro, 15.8.2007).

Independentemente da nomenclatura que se queira atribuir ao ajuste celebrado entre a administração municipal e o particular no caso em exame, não há dúvidas de que incidem as regras do direito público nessa relação jurídica.

A falta de licitação é mesmo imperdoável: “Deve tomar-se em vista, como ponto de partida, a previsão constitucional de que todas as contratações administrativas serão precedidas de licitação, ressalvadas as exceções indicadas em lei. Portanto, a regra geral será a da licitação prévia” (ob. cit., p. 33).

Em consequência do desprezo à licitação e das regras dos arts. 1º e 2º do ato normativo, não só a impessoalidade foi quebrada, mas também a isonomia, pois o favorecimento de alguns em detrimento de outros importa no descumprimento dos mais comezinhos princípios constitucionais, que é o de tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, lembrando-se, com José Afonso da Silva, que “há duas formas de cometer essa inconstitucionalidade. Uma consiste em outorgar benefício legítimo a pessoas ou grupos, discriminando-os favoravelmente em detrimento de outras pessoas ou grupos em igual situação. Neste caso, não se estendeu às pessoas ou grupos discriminados o mesmo tratamento dado aos outros. O ato é inconstitucional, sem dúvida, porque feriu o princípio da isonomia” (op. cit., p. 228).

O desprezo à ordem jurídica institucional gera violação ao princípio da moralidade, pois não se pode permitir que a administração pública aja sem isenção e ao arrepio da ordem constitucional.

Portanto, o agente público, incluído aquele que detém mandato eletivo, está preso à observação das normas e princípios constitucionais, como previsto no art. 111, da Carta Estadual.

E, no caso em exame isso não ocorreu. Quando a lei permite que o chefe do Poder Executivo celebre convênios com entidades particulares para “suprir as necessidades pessoais e pedagógicas das crianças”, remunerando livremente (art. 4º) os conveniados, restam afrontados os mais comezinhos princípios administrativos, quais sejam, o da impessoalidade, da igualdade, da moralidade e o da licitação.

Assim, afigura-se irrecusável que a legislação em exame é verticalmente incompatível com os arts. 111 e 117 da Constituição do Estado de São Paulo, preceitos esses que são de observância obrigatória pelos Municípios, por força do disposto no art. 144 dessa mesma Carta, impondo-se, por conseguinte, a sua exclusão do ordenamento constitucional em vigor.

3. CONCLUSÃO E PEDIDO.

Por todo o exposto, evidencia-se a necessidade de reconhecimento da inconstitucionalidade da norma aqui apontada.

Assim, aguarda-se o recebimento e processamento da presente Ação Declaratória, para que ao final seja julgada procedente, reconhecendo-se a inconstitucionalidade da Lei nº 3.310, de 18 de maio de 2009, do Município de Cubatão, que “autoriza o Poder Executivo a celebrar convênio com as entidades sediadas no Município de Cubatão, para os fins que menciona, e dá outras providências.

Requer-se, ainda, igual declaração da inconstitucionalidade da lei expressamente revogada pelo art. 7º do diploma impugnado (Lei nº 3.198/2007), para evitar o efeito repristinatório, e, por arrastamento, o Decreto regulamentar (Dec. nº 9.542/2010).

Como pedido subsidiário, fica expressamente requerida a interpretação conforme a Constituição Paulista, para que se declare que os convênios “autorizados” pela lei sejam estabelecidos mediante licitação.

Aguarda-se sejam requisitadas informações à Câmara Municipal e ao Prefeito Municipal, bem como posteriormente citado o Procurador-Geral do Estado para que, querendo, se manifeste sobre o processo objetivo.

Posteriormente, aguarda-se vista para fins de manifestação final.

 

São Paulo, 6 de outubro de 2011.

 

                        Fernando Grella Vieira

                        Procurador-Geral de Justiça

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Protocolado nº 108.768/11

Interessado: Promotoria de Justiça de Cubatão

Assunto: Inconstitucionalidade da Lei nº 3.310, de 18 de maio de 2009, do Município de Cubatão.

 

 

 

 

 

1.     Distribua-se a petição inicial da ação direta de inconstitucionalidade, em face da Lei nº 3.310, de 18 de maio de 2009, do Município de Cubatão, junto ao Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

2.     Oficie-se ao interessado, informando-lhe a propositura da ação, com cópia da petição inicial.

                   São Paulo, 6 de outubro de 2011.

 

Fernando Grella Vieira

Procurador-Geral de Justiça

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