EXCELENTÍSSIMO SENHOR DESEMBARGADOR PRESIDENTE DO E. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

 

Protocolado nº 108.814/11

Assunto: Inconstitucionalidade da Lei nº 1.803, de 03 de fevereiro de 2010, do Município de Caraguatatuba.

 

 

Ementa: Ação direta de inconstitucionalidade da Lei nº 1.803, de 03 de fevereiro de 2010, do Município de Caraguatatuba. Ato normativo que declara de relevante interesse jurídico e social para o Município de Caraguatatuba os quiosques instalados na orla marítima, implantados há mais de 15 (quinze) anos, não obstante a permissão tenha sido outorgada através de Decreto declarado inconstitucional. Projeto de lei de Vereador. Ato de gestão administrativa incompatível com a vocação da Câmara Municipal. Usurpação de funções, com ofensa ao princípio da separação dos poderes. Violação dos arts. 5º, 47, II e XIV e 144, todos da Constituição Estadual.

 

O Procurador-Geral de Justiça do Estado de São Paulo, no exercício da atribuição prevista no art. 116, inciso VI da Lei Complementar Estadual nº 734, de 26 de novembro de 1993 (Lei Orgânica do Ministério Público de São Paulo), em conformidade com o disposto no art. 125, § 2º e no art. 129, inciso IV da Constituição Federal, e ainda no art. 74, inciso VI e no art. 90, inciso III da Constituição do Estado de São Paulo, com amparo nas informações colhidas no incluso protocolado, vem, respeitosamente, perante esse Egrégio Tribunal de Justiça, promover a presente AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE da Lei nº 1.803, de 03 de fevereiro de 2010, do Município de Caraguatatuba, que “declara de relevante interesse turístico e social para o Município de Caraguatatuba os quiosques instalados na orla marítima, implantados há mais de 15 (quinze) anos e dá outras providências”, pelos fundamentos a seguir expostos.

1. DO ATO NORMATIVO IMPUGNADO

A Lei nº 1.803, de 03 de fevereiro de 2010, do Município de Caraguatatuba, que “declara de relevante interesse turístico e social para o Município de Caraguatatuba os quiosques instalados na orla marítima, implantados há mais de 15 (quinze) anos e dá outras providências”, tem a seguinte redação:

 

“Art. 1º - São declarados de relevante turístico e social para o Município de Caraguatatuba os “Quiosques” instalados na orla marítima já implantados há mais de 15 (quinze) anos, construídos com recursos próprios dos permissionários.

Art. 2º - A declaração de interesse turístico e social a que se refere o caput do art. 1º desta Lei, somente será outorgada aos permissionários de quiosques que estiverem amparados pelos Decretos Municipais nº. 100, de 28 de dezembro de 1984, expedido pelo ex-prefeito Jair Nunes de Souza, n. 018, de 04 de março de 1991, expedido pelo ex-prefeito José Bourabeby e n. 181, de 30 de dezembro de 1992, expedido pelo ex-prefeito José Dias Paes Lima.

Art. 3º - Fica o Chefe do Executivo, bem como o Presidente da Câmara Municipal autorizado a efetuar entendimentos junto ao Serviço do Patrimônio da União, bem como junto a todos os demais órgãos ambientais e outros da União Federal responsáveis pelas praias marítimas, terrenos da marinha e seus acrescidos, objetivando a regularização e o ordenamento por uso do solo por esses “Quiosques”, desde que estejam sendo explorados por seus permissionários ou seus sucessores há mais de 15 (quinze) anos e que estejam em dia com as obrigações fiscais junto ao Município.

Art. 4º - As despesas decorrentes com a aplicação desta lei, onerarão verbas próprias do orçamento, suplementadas se necessário”.

 

2. FUNDAMENTAÇÃO

A Procuradoria-Geral de Justiça acolheu representação formulada pelo nobre advogado, Dr. PAULO ROBERTO CONCEIÇÃO, pela qual se apontou a inconstitucionalidade do ato normativo em análise.

Colhe-se dela que o ilustre Vereador OMAR KAZON, concebeu projeto de lei para declarar de relevante interesse turístico e social para o Município de Caraguatatuba os “Quiosques” instalados na orla marítima, já implantados há mais de 15 (quinze) anos, construídos com os recursos próprios dos permissionários.

Entretanto, a lei impugnada é verticalmente incompatível com a Constituição do Estado de São Paulo, especialmente com os seus arts. 5.º, 47, II e XIV, e 144, os quais dispõem o seguinte:

“Art. 5.º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

Art. 47 – Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas nesta Constituição:

II – exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior da administração estadual;

XIV – praticar os demais atos de administração, nos limites da competência do Executivo;

Art. 144 – Os Municípios, com autonomia, política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.”

 

Há quebra do princípio da separação de poderes nos casos, por exemplo, em que o Poder Legislativo edita um ato normativo que configura, na prática, ato de gestão executiva. Quando o legislador, a pretexto de legislar, administra, configura-se o desrespeito à independência e à harmonia entre os poderes, princípio estatuído no art. 5º da Constituição Estadual, que reproduz o contido no art. 2º da Constituição Federal. Há, também, uma não observância do disposto no art. 47, II e XIV, da Constituição Paulista.

 

Nestes termos, a disciplina legal findou, efetivamente, invadindo a esfera da gestão administrativa, que cabe ao Poder Executivo, envolvendo o planejamento, a direção, a organização e a execução de atos de governo. Isso equivale à prática de ato de administração, de sorte a malferir a separação dos Poderes.

 

Não é necessário que a lei diga o que o Poder Executivo pode, ou não, fazer dentro de sua típica atividade administrativa. Se o faz, torna-se patente que a atividade legislativa imiscuiu-se no âmbito de atuação do administrador, fazendo-o de modo inconstitucional.

 

Cumpre recordar, nesse passo, o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que:

 “A Prefeitura não pode legislar, como a Câmara não pode administrar. Cada um dos órgãos tem missão própria e privativa: a Câmara estabelece regras para a Administração; a Prefeitura as executa, convertendo o mandamento legal, genérico e abstrato, em atos administrativos, individuais e concretos. O Legislativo edita normas; o Executivo pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que reside a harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art. 2º) extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”.

Sintetiza, ademais, que:

“Todo ato do Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art. 2º c/c o art. 31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito Municipal brasileiro, 15ªed., atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p. 708 e 712).

 

Exatamente esta é a hipótese dos autos.

 

Na Lei Municipal impugnada, a pretexto de legislar, a Câmara Municipal editou verdadeiro ato de gestão administrativa, ao declarar de relevante interesse turístico e social os mencionados “Quiosques”.

 

Não só dispensável, como inviável se mostra a deliberação legislativa nessa matéria, mormente quando verificado que a iniciativa para a edição da lei partiu de parlamentares. Aquilo que a regra determina para a Administração Pública é algo que se encontra, precisamente, no âmbito da atividade executiva.

 

Dito ato normativo cria obrigações para a Administração Municipal, fixando-lhe condutas (art. 3º).

 

Neste sentido, considerada a iniciativa parlamentar que culminou na edição do ato normativo em análise, é visível que o Poder Legislativo municipal invadiu a esfera de atribuições do Chefe do Poder Executivo.

 

Ao Poder Legislativo cabe a função de editar atos normativos de caráter geral e abstrato. Ao Executivo cabe o exercício da função de gestão administrativa, que envolve atos de planejamento, direção, organização e execução.

     

  Atos que, na prática, representam invasão da esfera executiva pelo legislador, devem ser invalidados em sede de controle concentrado de normas, na medida em que representam quebra do equilíbrio assentado nos arts. 5º e  47, II e XIV, da Constituição do Estado de São Paulo, aplicáveis aos Municípios por força de seu art. 144.

 

 Deste modo, quando a pretexto de legislar, o Poder Legislativo administra, editando leis de efeitos concretos, ou que equivalem, na prática, a verdadeiros atos de administração, viola a harmonia e a independência que deve existir entre os Poderes.

 

 Neste sentido, já proclamou esse Egrégio Tribunal que:

“Ao Executivo haverá de caber sempre o exercício de atos que impliquem no gerir as atividades municipais. Terá, também, evidentemente, a iniciativa das leis que lhe propiciem a boa execução dos trabalhos que lhe são atribuídos. Quando a Câmara Municipal, o órgão meramente legislativo, pretende intervir na forma pela qual se dará esse gerenciamento, está a usurpar funções que são de incumbência do Prefeito” (ADI n. 53.583-0, Rel. Des. Fonseca Tavares).

 

   E, nesta linha, verificando a inconstitucionalidade por ruptura do princípio da separação de poderes, este Egrégio Tribunal de Justiça vem declarando a inconstitucionalidade de leis similares (ADI 117.556-0/5-00, Rel. Des. Canguçu de Almeida, v.u., 02-02-2006; ADI 124.857-0/5-00, Rel. Des. Reis Kuntz, v.u., 19-04-2006; ADI 126.596-0/8-00, Rel. Des. Jarbas Mazzoni, v.u., 12-12-2007; ADI 127.526-0/7-00, Rel. Des. Renato Nalini, v.u., 01-08-2007; ADI 132.624-0/6-00, Rel. Des. Mohamed Amaro, m.v., 24-10-2007; ADI 142.130-0/0-00, Rel. Des. Ivan Sartori, 07-05-2008).

 

 O vício de iniciativa conduz à declaração de inconstitucionalidade da lei, que não se convalida com a sanção ou a promulgação de quem deveria ter apresentado o projeto. É da jurisprudência que “o Executivo não pode renunciar prerrogativas institucionais inerentes às suas funções, como não pode delegá-las ou aquiescer em que o Legislativo as exerça” (ADIn 13.798-0, rel. Des. Garrigós Vinhares, j. 11.12.1991, v.u.).

        

 Assim, não poderia a Lei Municipal ordinária, sem a iniciativa do Prefeito, criar atribuições para os órgãos da Administração. Como administrador do Município, caberia somente ao Prefeito o exame da conveniência e da oportunidade para declarar algo de relevante interesse turístico e social. A indevida ingerência nas prerrogativas do Prefeito despreza o princípio da separação entre os Poderes e contraria o art. 5º da Constituição do Estado de São Paulo.

 

Cumpre observar, também, que a legislação permite que sejam declarados de relevante interesse turístico e social os “quiosques”, cuja permissão de uso foi outorgada através do Decreto Municipal n. 181/1992, do Município de Caraguatatuba, que foi julgado inconstitucional (ADI n. 176.612-0/3-00).

 

Assim sendo, por mais essa razão, padece de inconstitucionalidade a legislação em questão.

 

3. DO PEDIDO LIMINAR

Estão presentes, na hipótese examinada, os pressupostos do fumus bonis iuris e do periculum in mora, a justificar a suspensão liminar da vigência e eficácia da lei impugnada.

A razoável fundamentação jurídica decorre dos motivos expostos, que indicam, de forma clara, a inconstitucionalidade da norma.

O perigo da demora decorre especialmente da ideia de que sem a imediata suspensão da vigência e eficácia do preceito legal questionado, subsistirá a sua aplicação, com a possível realização de despesas que dificilmente poderão ser revertidas aos cofres públicos, na hipótese provável de procedência da ação direta.

De resto, ainda que não houvesse essa singular situação de risco, restaria, ao menos, a excepcional conveniência da medida.

Com efeito, no contexto das ações diretas e da outorga de provimentos cautelares para defesa da Constituição, o juízo de conveniência é um critério relevante, que vem condicionando os pronunciamentos do Supremo Tribunal Federal, preordenados à suspensão liminar de leis aparentemente inconstitucionais (cf. ADIN-MC 125, j. 15.2.90, DJU de 4.5.90, p. 3.693, rel. Min. Celso de Mello; ADIN-MC 568, RTJ 138/64; ADIN-MC 493, RTJ 142/52; ADIN-MC 540, DJU de 25.9.92, p. 16.182).

Diante do exposto, requer-se a concessão da liminar, para fins de suspensão imediata da eficácia da Lei Municipal nº 1.803, de 03 de fevereiro de 2010, de Caraguatatuba.

4. PEDIDO FINAL

Por todo o exposto, evidencia-se a necessidade de reconhecimento da inconstitucionalidade da lei aqui apontada.

Assim, aguarda-se o recebimento e processamento da presente Ação Declaratória, para que ao final seja julgada procedente, reconhecendo-se a inconstitucionalidade da Lei n° 1.803, de 03 de  fevereiro de 2010, do Município de Caraguatatuba, que “declara de relevante interesse turístico e social para o Município de Caraguatatuba os quiosques instalados na orla marítima, implantados há mais de 15 (quinze) anos e dá outras providências”.

 Requer-se, ainda, que sejam requisitadas informações à Câmara Municipal e ao Prefeito Municipal de Caraguatatuba, bem como citado o Procurador-Geral do Estado para se manifestar sobre a legislação impugnada.

Posteriormente, aguarda-se vista para fins de manifestação final.

 

                São Paulo, 23 de março de 2012.

 

Fernando Grella Vieira

Procurador-Geral de Justiça

 

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Protocolado nº 108.814/11

Assunto: Inconstitucionalidade da Lei nº 1.803, de 03 de fevereiro de 2010, do Município de Caraguatatuba.

 

 

 

 

1.     Distribua-se a petição inicial da ação direta de inconstitucionalidade, em face da Lei n° 1.803, de 03 de fevereiro de 2010, do Município de Caraguatatuba, que “declara de relevante interesse turístico e social para o Município de Caraguatatuba os quiosques instalados na orla marítima, implantados há mais de 15 (quinze) anos e dá outras providências”, junto ao Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

2.     Oficie-se ao interessado, informando-lhe a propositura da ação, com cópia da petição inicial.

                   São Paulo, 23 de março de 2012.

 

 

Fernando Grella Vieira

Procurador-Geral de Justiça

 

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