Excelentíssimo Senhor
Doutor Desembargador Presidente do Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo
O Procurador-Geral de Justiça, com
fundamento nos arts. 74, VI, e 90, III, da Constituição Estadual, no art. 116,
VI, da Lei Complementar Estadual n. 734/93, e nos arts. 125, § 2º, e 129, IV,
da Constituição Federal, e com base nos elementos de convicção constantes do
expediente anexo (Protocolado n. 110.280/07), vem, respeitosamente, promover a
presente AÇÃO DIRETA DE
INCONSTITUCIONALIDADE, com pedido de liminar, em face do art. 1º da Lei Complementar
n. 19, de 22 de agosto de 2007, do Município de Salto do Pirapora, pelos
motivos seguir expostos:
1. O Município
de Salto do Pirapora editou a Lei Complementar n. 19, de 22 de agosto de 2007,
cujo art. 1º está assim redigido:
Art. 1º. Ficam criados, no Quadro de Pessoal, os cargos em Comissão, de livre nomeação e exoneração, com as vagas, requisitos e referências abaixo especificadas:
Vagas |
Denominação do cargo |
Requisitos |
Referência |
01 |
Coordenador de Atividades Agronômicas |
Nível Universitário e Registro no CREA |
30 |
01 |
Coordenador de Atividades Ambientais |
Nível Universitário e Registro no CREA |
30 |
04 |
Assessor Técnico Rural |
Ensino Médio Completo |
21 |
2. O
dispositivo enfocado da lei local, acima reproduzido é verticalmente
incompatível com a Constituição do Estado de São Paulo, mais precisamente com
os seus arts. 111, 115, II, 144, que dispõem o seguinte:
“Art.
(...)
Art. 115. Para a organização da
administração pública direta e indireta, inclusive as fundações instituídas ou
mantidas por qualquer dos Poderes do Estado, é obrigatório o cumprimento das
seguintes normas:
(...)
II – a investidura em cargo ou
emprego público depende de aprovação prévia, em concurso público de provas ou
de provas e títulos, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão, declarado
em lei, de livre nomeação e exoneração;
(...)
Art. 144. Os Municípios, com
autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se
auto-organizarão por Lei Orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição
Federal e nesta Constituição”.
3. A ordem constitucional estadual, seguindo a
diretriz constitucional federal, prestigia a autonomia municipal da qual
decorre a capacidade de o ente local adotar normas próprias, respeitando as
constituições federal e estadual em seus preceitos nucleares de observância
compulsória, como expressão de sua autonomia legislativa e administrativa para
disciplina dos cargos, funções e empregos públicos e seu respectivo regime
jurídico, incluindo formas de provimento, requisitos, definição de atribuições,
direitos, deveres e responsabilidades etc.
4. As
previsões dos arts. 111 e 115, II, da Constituição do Estado de São Paulo, de
observância obrigatória pelos Municípios, nada mais fazem senão do que
reproduzirem o caput e o inciso II do
art. 37 da Constituição Federal.
5. É ponto
elementar no que se relaciona à criação de cargos ou empregos públicos a
imperiosa necessidade de a lei específica respectiva descrever as correlatas
atribuições.
6. Essa
necessidade foi evidenciada, por sinal, no processo legislativo da lei em foco,
como consta do parecer da Comissão de Finanças e Orçamento.
7. Não
obstante, a lei foi assim aprovada e sancionada.
8. Não há
dúvida que compete à lei - como expressão invulgar do princípio da legalidade
administrativa em sua acepção mais estrita de reserva de lei, lei em sentido
formal ou legalidade absoluta ou restrita, como ato normativo oriundo do Poder
Legislativo produzido mediante o competente e regular processo legislativo – ao
criar o cargo público fixar suas atribuições - pois, todo cargo pressupõe
função previamente definida em lei (Maria Sylvia Zanella Di Pietro. Direito Administrativo, São Paulo:
Atlas, 2006, p. 507; Odete Medauar. Direito
Administrativo Moderno, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 287), à
luz do art. 37, II, da Constituição Federal e do art. 115, II, da Constituição
Estadual.
9. A exigência
desse conteúdo em lei não é burocrática nem formalista, é substancial ao Estado
de Direito, pois, “todo cargo público só pode ser criado e modificado por norma
legal aprovada pelo Legislativo” (Hely Lopes Meirelles. Direito Administrativo Brasileiro, São Paulo: Malheiros, 2003, pp.
395-396). A criação e a modificação concernem não apenas à sua nomenclatura,
senão também ao plexo de suas atribuições, valendo observar sua importância na
medida em que “se a transformação ‘implicar em alteração do título e das
atribuições do cargo, configura novo provimento’, que exige o concurso público”
(Hely Lopes Meirelles. Direito
Administrativo Brasileiro, São Paulo: Malheiros, 2003, p. 399), como
julgado no Supremo Tribunal Federal (RTJ 150/26).
10. Com efeito,
“somente a lei pode criar esse conjunto inter-relacionado de competências,
direitos e deveres que é o cargo público. Essa é a regra geral consagrada no
art. 48, X, da Constituição, que comporta uma ressalva à hipótese do art. 84,
VI, b. Esse dispositivo permite ao
Chefe do Executivo promover a extinção de cargo público, por meio de ato
administrativo. A criação e a disciplina do cargo público faz-se
necessariamente por lei no sentido de que a lei deverá contemplar a disciplina
essencial e indispensável. Isso significa estabelecer o núcleo das
competências, dos poderes, dos deveres, dos direitos, do modo da investidura e
das condições do exercício das atividades. Portanto, não basta uma lei
estabelecer, de modo simplista, que ‘fica criado o cargo de servidor público’.
Exige-se que a lei promova a discriminação das competências e a inserção dessa
posição jurídica no âmbito da organização administrativa, determinando as
regras que dão identidade e diferenciam a referida posição jurídica” (Marçal
Justen Filho. Curso de Direito
Administrativo, São Paulo: Saraiva, 2005, p. 581).
11. Nem se
argumente com o art. 84, VI, a, da Constituição
Federal. A possibilidade de regulamento autônomo para disciplina da organização
administrativa não significa a outorga de competência para o Chefe do Poder
Executivo fixar atribuições de cargo público e dispor sobre seus requisitos de
habilitação e forma de provimento. Não bastasse, a alegação cede à vista do
art. 61, § 1°, II, a, da Constituição
Federal, e do art. 24, § 2º, 1, que, em coro, exigem lei em sentido formal.
12. O
regulamento administrativo ou de organização é o que contém normas sobre a
organização administrativa, isto é, a disciplina do modo de prestação do
serviço e das relações intercorrentes entre órgãos, entidades e agentes, e de
seu funcionamento, sendo-lhe vedado criar cargos públicos, somente extingui-los
desde que vagos (arts. 48, X, 61, § 1°, II, a,
84, VI, b, Constituição Federal; art.
47, XIX, a, Constituição Estadual) ou
para os fins de contenção de despesas (art. 169, § 4°, Constituição). E bem se
explica que o regulamento previsto no art. 84, VI, a, da Constituição, é “mera competência para um arranjo intestino
dos órgãos e competências já criadas por lei”, como a transferência de
departamentos e divisões, por exemplo (Celso Antonio Bandeira de Mello. Curso de Direito Administrativo, São
Paulo: Malheiros, 2006, 21ª ed., pp. 324-325).
13. No caso, a
lei local impugnada, em seu art. 1º, prevê a criação de novos cargos no quadro
de pessoal da Prefeitura Municipal, mas, não descreve suas atribuições, o que é
vedado.
14. E essa
vedação também tem fundamento nos princípios de moralidade, impessoalidade,
razoabilidade e interesse público para além do princípio da legalidade.
15. Com efeito,
somente a partir da descrição precisa das atribuições do cargo público será
possível, a bem do funcionamento administrativo e dos direitos dos
administrativos, averiguar-se a completa licitude do exercício de suas funções
pelo agente público. Vale dizer, quando se exige a descrição das atribuições a
preocupação manifestada é relativa à competência do agente público para a prática
de atos em nome da Administração Pública e, em especial, aqueles que tangenciam
os direitos dos administrados.
16. De outra
parte, a exigência igualmente se prende à aferição da legitimidade da forma de
investidura no cargo público que deve ser guiada pela moralidade, pela
impessoalidade e pela razoabilidade.
17. Como a regra
na investidura em cargo ou emprego público é a prévia aprovação em concurso
público, a exceção consistente na liberdade de provimento e exoneração impõe a
observância de limites. Tais limites têm o escopo de impedir a transformação da
exceção em regra e vice-versa e evitar a criação artificial, abusiva e
indiscriminada de cargos de provimento em comissão de maneira a ruir o sistema
do mérito – cujos baldrames são a igualdade e a moralidade de modo a viabilizar
a escolha isenta e objetiva sem protecionismos, favorecimentos ou perseguições.
18. Ofende tais
princípios, assim como o de razoabilidade, a lei criar cargos de provimento em
comissão à míngua do delineamento de suas atribuições. Com efeito, os cargos de
provimento em comissão não são instituídos com ampla liberdade pelo legislador
na medida em que são restritos àqueles cujas funções consistam nas atribuições
de assessoramento, chefia e direção.
19. Ora, no caso
sob exame, embora os cargos criados tenham denominação de coordenação e de
assessoria, não há dado algum evidenciando que desempenharão funções de
natureza política no seio administrativo em que o requisito da confiança
justifique a liberdade de provimento. Ou melhor, como carecem da definição de
suas atribuições a revelar alguma dessas hipóteses, não se revela razoável sua
instituição pela impossibilidade de aferição do exercício de funções políticas
ou de funções técnicas, burocráticas, permanentes, profissionais (estas,
reservadas ontologicamente a cargos de provimento efetivo).
20. Nem se argumente que esta exegese é restrita a
funções de confiança. Em ambas situações (cargos de provimento em comissão e
funções de confiança) há várias semelhanças: o requisito da confiança elementar
(desenvolvimento das opções e diretrizes políticas governamentais), a limitação
objetiva e formal (se destinam às funções lato
sensu de direção, chefia e assessoramento, previstas em lei) e a
instabilidade ou precariedade do vínculo (liberdade de provimento e
exoneração). A distinção reside na limitação subjetiva do universo de seus
ocupantes, afetando negativamente a discricionariedade administrativa.
21. Isso se
infere da leitura dos incisos II e V do art. 37 da Constituição Federal e dos
incisos II e V do art. 115 da Constituição Estadual, de maneira que a função de
confiança (função pública stricto sensu)
é reservada exclusivamente aos servidores públicos ocupantes de cargo efetivo -
com o intuito de valorização profissional do servidor público (e de
profissionalização do serviço público) e de restrição objetiva dos cargos de
provimento em comissão aos níveis superiores de direção, chefia e
assessoramento – enquanto os cargos de provimento em comissão podem ser
exercidos por servidor público ou não.
22. Considerando
a intenção da norma em foco, resulta absolutamente correta a premissa de que a
lei deve descrever as funções (competência) do cargo público para permitir a
legalidade (lato sensu) da
investidura, bem como seu controle e fiscalização, pela avaliação da subsunção
da norma local às balizas da norma constitucional e, principalmente, para
garantia da redução do nível de discricionariedade, sem embargo da precisão
completa de sua competência.
23. Soa
absolutamente impossível a criação artificial e desarrazoada de cargos de
provimento em comissão para o desempenho de funções (competências) de natureza
técnica, profissional, burocrática, definitivas – reservadas aos cargos de
provimento efetivo – em que não é imprescindível o vínculo de confiança, sob
pena de ofensa aos princípios de legalidade, moralidade, impessoalidade,
segurança jurídica e razoabilidade.
24. Neste
sentido, a Suprema Corte enuncia enfaticamente a proibição de criação abusiva
de cargos de provimento em comissão:
"Lei
estadual que cria cargos
“Pelo princípio da proporcionalidade, há que ser
guardada correlação entre o número de cargos efetivos e em comissão, de maneira
que exista estrutura para atuação do Poder Legislativo local” (STF, RE-AgR 365.368-SC, 1ª Turma, Rel. Min.
Ricardo Lewandowski, 22-05-2007, v.u., DJ 29-06-2007, p. 49)
“Ofende o disposto no art. 37, II, da Constituição
Federal norma que cria cargos em comissão cujas atribuições não se harmonizam
com o princípio da livre nomeação e exoneração, que informa a investidura
“Os dispositivos em questão, ao criarem cargos em
comissão para oficial de justiça e possibilitarem a substituição provisória de
um oficial de justiça por outro servidor escolhido pelo diretor do foro ou um
particular credenciado pelo Presidente do Tribunal, afrontaram diretamente o
art. 37, II da Constituição, na medida em que se buscava contornar a exigência
de concurso público para a investidura em cargo ou emprego público, princípio
previsto expressamente nesta norma constitucional” (STF,
ADI 1.141-GO, Tribunal Pleno, Rel. Min. Ellen Gracie, 29-08-2002, v.u., DJ
29-08-2003, p. 16).
25. Demonstrada quantum satis a inconstitucionalidade do
art. 1º da Lei n. 19/07, do Município de Salto do Pirapora, por ofensa aos
arts. 111, 115, II e 144, da Constituição, é promovida a presente ação,
requerendo a concessão de medida liminar. Em se tratando do controle normativo
abstrato, uma vez verificada a cumulativa satisfação dos requisitos legais
concernentes ao fumus boni juris e ao
periculum in mora, o poder geral de
cautela autoriza a suspensão da eficácia da norma impugnada, até o final
julgamento da respectiva ação direta de inconstitucionalidade, diante da plausibilidade
jurídica da tese exposta na inicial e do delineamento da situação do risco
consistente no provimento ilícito de cargo público com reflexos
orçamentário-financeiros.
26. Face ao
exposto, requer:
a) a concessão de liminar suspendendo a eficácia da lei
impugnada até final julgamento da lide e o processamento do feito observando as
prescrições legais e regulamentares;
b) a colheita das informações necessárias dos Excelentíssimos
Senhores Prefeito e Presidente da Câmara Municipal de Salto do Pirapora, sobre
as quais protesta por manifestação oportuna;
c) a oitiva do douto Procurador-Geral do Estado, nos termos
do art. 90, § 2º, da Constituição Estadual;
d) ao final, seja julgada procedente a presente ação,
declarando-se a inconstitucionalidade do art. 1º da Lei n. 9, de 22 de agosto
de 2007, do Município de Salto do Pirapora, promovendo-se a comunicação prevista no art. 90, §
3º, da Constituição Estadual.
Termos em que, pede deferimento.
São Paulo, de junho de 2008.
Fernando Grella Vieira
Procurador-Geral de
Justiça
Protocolado n. 110.280/07:
1. Promovo ação direta de inconstitucionalidade impugnando o
art. 1º da Lei n. 19/07 do Município de Salto do Pirapora, instruída com o
protocolado em epígrafe.
2. Os demais aspectos traçados na representação não animam
providências nesta via. A reclassificação do padrão de referência de um cargo
público alheio ao reajuste geral do funcionalismo (art. 2º, Lei n. 19/07) não é
vedada pelo art. 37, X, da Constituição Federal, reproduzido no art. 115, XI,
da Constituição Estadual. E a questão de seus efeitos financeiros na Lei n.
889/94 em descompasso com a Lei de Responsabilidade Fiscal, é crise de
legalidade que deve ser resolvida pelos meios próprios.
3. Cientifiquem-se os representantes.
São
Paulo, de junho de 2008.
Fernando Grella Vieira
Procurador-Geral de
Justiça