Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

                   O Procurador-Geral de Justiça de São Paulo, no exercício da atribuição prevista no art. 116, inciso VI, da Lei Complementar Estadual n. 734, de 26 de novembro de 1993 (Lei Orgânica do Ministério Público de São Paulo), e em conformidade com o disposto nos arts. 125, § 2º, e 129, inciso IV, da Lei Maior, e arts. 74, inciso VI, e 90, inciso III, da Constituição Estadual, com base nos elementos de convicção existentes no incluso protocolado (PGJ n. 110.362/07), vem perante esse Egrégio Tribunal de Justiça promover a presente

 

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE,

 

com pedido de liminar, da Lei n. 14.482, de 16 de julho de 2007, do município de São Paulo, que altera a Lei Municipal n. 12.352/97 e “Institui o Programa de Prevenção e Assistência Integral às pessoas portadoras do traço falciforme ou anemia falciforme no Município de São Paulo e dá outras providências”, pelas razões e fundamentos a seguir expostos:

 

 

                  A Lei Municipal n. 14.482, de 16.07.2007, decorre do Projeto de Lei n. 455/03, dos Vereadores Carlos Neder - PT, Claudete Alves - PT, Carlos Alberto Bezerra Jr. - PSDB, Natalini - PSDB, Paulo Frange - PTB e Rubens Calvo – PSB e tem a seguinte redação:

 

“GILBERTO KASSAB, Prefeito do Município de São Paulo, no uso das atribuições que lhe são conferidas por lei, faz saber que a Câmara Municipal, em sessão de 28 de junho de 2007, decretou e eu promulgo a seguinte lei:

 

Art. 1º A ementa da Lei n° 12.352, de 13 de junho de 1997, passa a vigorar com a seguinte redação:

 

“Institui o Programa de Prevenção e Assistência Integral às pessoas portadoras do traço falciforme ou anemia falciforme no Município de São Paulo e dá outras providências.”

 

Art. 2º O art. 1° da Lei nº 12.352, de 13 de junho de 1997, passa a vigorar com a seguinte redação:

 

“Art. 1º Fica criado no Município de São Paulo o Programa de Prevenção e Assistência Integral às pessoas portadoras do traço falciforme ou anemia falciforme.”

 

Art. 3º O art. 4° da Lei nº 12.352, de 13 de junho de 1997, passa a vigorar com a seguinte redação:

 

“Art. 4° A Prefeitura Municipal garantirá:

 

I – cobertura vacinal completa, definida por especialistas, a todas as pessoas com anemia falciforme, inclusive aquelas que não constem da programação oficial, visando à prevenção de agravos;

 

II – o fornecimento de toda medicação necessária ao tratamento, que não poderá sofrer interrupção.

 

Parágrafo único. No caso de falta de medicamento na rede municipal de saúde, fica o Poder Público obrigado ao ressarcimento, à pessoa portadora da anemia falciforme, dos gastos realizados com a medicação preconizada.”

 

Art. 4º O “caput” do art. 5º da Lei nº 12.352, de 13 de junho de 1997, passa a vigorar com a seguinte redação:

 

“Art. 5º Aos parceiros e parceiras com maior probabilidade de risco deverá ser assegurado aconselhamento genético com acesso a todas as informações técnicas e exames laboratoriais decorrentes.”

 

Art. 5º O parágrafo único do art. 7º da Lei n° 12.352, de 13 de junho de 1997, passa a vigorar com a seguinte redação:

 

“Art. 7º .............................................................

 

Parágrafo único. Fica assegurado o tratamento integral às gestantes que venham a sofrer aborto incompleto durante a gestação, em decorrência dessa doença.”

 

Art. 6º O art. 11 da Lei nº 12.352, de 13 de junho de 1997, passa a vigorar com a seguinte redação:

 

“Art. 11. Às pessoas com anemia falciforme, fica assegurada pela Prefeitura a assistência integral, que ocorrerá nas unidades de atendimento ambulatorial especializado, dotadas dos recursos físicos, tecnológicos e profissionais necessários para um atendimento de boa qualidade.”

 

Art. 7º O art. 5º da Lei nº 14.132, de janeiro de 2006, que dispõe sobre a qualificação de entidades sem fins lucrativos como organizações sociais, passa a vigorar com a seguinte alteração:

 

“Art. 5º Para os efeitos desta lei, entende-se por contrato de gestão o instrumento firmado entre o Poder Público e a entidade qualificada como organização social, com vistas à formação de parceria entre as partes para fomento e execução de atividades relativas às mencionadas em seu art. 1º.

 

................................................................................

 

§ 3º A celebração de cada contrato de gestão poderá ser precedida de processo seletivo quando mais de uma entidade qualificada como organização social manifestar expressamente interesse em prestar o serviço objeto da parceria, na mesma unidade administrativa, nos termos regulamentados pelo Poder Executivo.

 

§ 4º O contrato de gestão poderá ser firmado com a entidade qualificada como organização social associada a instituições sem fins lucrativos, com as quais mantenha termo de parceria, na forma e condições que dispuser decreto do Executivo.” (NR)

 

Art. 8º As despesas decorrentes da execução desta lei correrão por conta de dotações orçamentárias próprias, suplementadas se necessário.

 

Art. 9º O Poder Executivo regulamentará a presente lei no prazo de 60 (sessenta) dias, contados da data de sua publicação.

 

Art. 10. Esta lei entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário.

 

PREFEITURA DO MUNICÍPIO DE SÃO PAULO, aos 16 de julho de 2007, 454º da fundação de São Paulo.

 

GILBERTO KASSAB, PREFEITO

 

Publicada na Secretaria do Governo Municipal, em 16 de julho de 2007.

 

CLOVIS DE BARROS CARVALHO, Secretário do Governo Municipal”.

 

 

                                A Lei n. 14.482/2007, do município de São Paulo, apesar de sua nobreza, é verticalmente incompatível com a Constituição do Estado de São Paulo, em especial com as arts. 5º, 24, § 2º, “1”, 25, 47, II e 144, a seguir reproduzidos:

 

Art. 5º. São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

 

Artigo 24 - A iniciativa das leis complementares e ordinárias cabe a qualquer membro ou Comissão da Assembléia Legislativa, ao Governador do Estado, ao Tribunal de Justiça, ao Procurador-Geral de Justiça e aos cidadãos, na forma e nos casos previstos nesta Constituição.

§ 2º - Compete, exclusivamente, ao Governador do Estado a iniciativa das leis que disponham sobre:

1 - criação e extinção de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica, bem como a fixação da respectiva remuneração;

 

Artigo 25 - Nenhum projeto de lei que implique a criação ou o aumento de despesa pública será sancionado sem que dele conste a indicação dos recursos disponíveis, próprios para atender aos novos encargos.

 

Art. 47. Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas nesta Constituição:

II - exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior da administração estadual;

 

Art. 144 - Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por Lei Orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.”

 

 

                   A lei municipal, de iniciativa parlamentar, interfere, flagrantemente, na administração pública municipal, principalmente ao:

 

a) instituir o Programa de Prevenção e Assistência Integral às pessoas portadoras do traço falciforme ou anemia falciforme no Município de São Paulo;

 

b) determinar que a Prefeitura Municipal garantirá cobertura vacinal completa;

 

c) dispor que o administração pública fornecerá toda medicação necessária ao tratamento;

 

d) estabelecer que o Poder Público ficará obrigado ao ressarcimento dos gastos realizados com a medicação;

 

e) enunciar que o município assegurará o aconselhamento genético,

 

f) assegurar o tratamento integral às gestantes que venham a sofrer aborto incompleto durante a gestação, em decorrência da doença;

 

g) determinar assistência integral às pessoas com anemia falciforme nas unidades de atendimento ambulatorial especializado;

 

h) exigir que as unidades de atendimento ambulatorial sejam dotadas dos recursos físicos, tecnológicos e profissionais necessários para um atendimento de boa qualidade;

 

i) ao determinar que o Poder Executivo regulamentará a lei no prazo de 60 (sessenta) dias, contados da data de sua publicação.

 

                   De fato, as obrigações impostas pelo Poder Legislativo ao Poder Executivo interferem na administração do município.

 

                   Ao Prefeito, por exercer funções de governo, compete o planejamento, a organização, a direção, o comando, a coordenação e o controle dos serviços públicos (cf. José Afonso da Silva, “O Prefeito e o Município”, 1977, págs. 134/143), de tal forma que a lei municipal, de iniciativa parlamentar, não pode determinar como vai se dar referida administração.

 

                   Há flagrante violação, portanto, ao princípio da separação de poderes, mesmo porque, na sempre atual lição de Hely Lopes Meirelles, “a atribuição típica e predominante da Câmara é a normativa, isto é, a de regular a administração do Município e a conduta dos munícipes no que afeta aos interesses locais. A Câmara não administra o Município; estabelece, apenas, normas de administração. Não executa obras e serviços públicos; dispõe, unicamente, sobre sua execução. Não compõe nem dirige o funcionalismo da Prefeitura; edita, tão-somente, preceitos para sua organização e direção. Não arrecada nem aplica as rendas locais; apenas institui ou altera tributos e autoriza sua arrecadação e aplicação. Não governa o Município; mas regula e controla a atuação governamental do Executivo, personalizado no prefeito. Eis aí a distinção marcante entre a missão normativa da Câmara e a função executiva do prefeito; o Legislativo delibera e atua com caráter regulatório genérico e abstrato; o Executivo consubstancia os mandamentos da norma legislativa em atos específicos e concretos de administração (...) A interferência de um Poder no outro é ilegítima, por atentatória da separação institucional de suas funções”.

 

                   Mas não é só. Há que se pensar na questão dos recursos a serem destinados ao Programa de Prevenção e Assistência Integral criado pela lei municipal, o que certamente depende de orçamento em cuja elaboração deverá ser objeto de dotação específica.

 

                   A Lei Municipal, portanto, deveria indicar os recursos disponíveis para o cumprimento dessa obrigação. Por não tê-lo feito, representa clara ingerência do Legislativo nas prerrogativas do Poder Executivo.

 

                   Registre-se que o Legislativo não deliberou sobre um programa geral, pois criou, concretamente, atribuições ao Poder Executivo e determinou o modo de execução.

 

                   Sendo assim, também violou o art. 25 da Lei Maior paulista, que veda qualquer projeto de lei que implique a criação ou o aumento de despesa pública sem que dele conste a indicação dos recursos disponíveis, próprios para atender aos novos encargos.

 

                   A Lei Municipal sindicada, ainda, ao criar funções na administração pública municipal, violou a reserva de iniciativa prevista no art. 24, § 2º, n. “1”, da Constituição Bandeirante, aplicável aos Municípios por força do art. 144 da referida Carta Estadual.

 

                  Não bastasse isso, a lei cria diversas obrigações para a administração municipal, relacionadas à efetiva instituição do Programa de Prevenção e Assistência Integral. É possível imaginar quantos agentes públicos devem ser mobilizados para garantir cobertura vacinal completa, fornecer toda medicação, fornecer o aconselhamento genético, assegurar tratamento integral às gestantes, além de outras atribuições.

 

                   A lei, ainda, dispõe sobre os órgãos públicos municipais, mesmo porque determina que se dê assistência integral às pessoas com anemia falciforme nas unidades de atendimento ambulatorial especializado do município e exige que referidas unidades sejam dotadas de diversos recursos.

 

                  Anote-se que esse E. Tribunal de Justiça de São Paulo vem, reiteradamente, reconhecendo a inconstitucionalidade de leis de iniciativa parlamentar que criam órgãos, alteram a estrutura, ou conferem novas atribuições à administração, como se infere da ementa a seguir transcrita:

 

 

               AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE – Lei n° 10.802/06 do Município de Ribeirão Preto, de iniciativa parlamentar, que dispõe sobre a "Criação de Fundos e Ações de Combate a Enchentes", determinando a constituição de "associação" para gerir os fundos de investimentos e implementar as ações inerentes aos objetivos da Lei – afronta ao princípio de independência e harmonia dos poderes - processo de criação, estruturação e definição das atribuições dos órgãos e entidades integrantes da Administração Pública estadual matéria que se insere, por efeito de sua natureza mesma, na esfera de exclusiva iniciativa do Chefe do Poder Executivo local, em face da cláusula de reserva inscrita no artigo 61, § Io, II "e", da CF – ação procedente. (TJSP, Órgão Especial, ADI 145.244-0/1, j. 05.09.2007, rel. des. Ruy Camilo).

 

 

                  Aliás, esse E. Tribunal tem sucessivamente reconhecido a inconstitucionalidade de leis municipais que violam a reserva de iniciativa do Chefe do Executivo, como se verifica nos seguintes julgados: ADI 134.410-0/4, j. 05.03.2008, rel. des. Viana Santos; ADI 153.152-0/5-00, j. 05.03.2008, rel. des. Aloísio de Toledo César; ADI 150.974-0/4, j. 20.02.2008, rel. des. Viana Santos.

 

                  Válida a esse propósito a advertência feita por Hely Lopes Meirelles, para quem “todo ato do Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art.2º c/c o art.31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15ªed., atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p.708 e 712).

 

 

DA LIMINAR

 

                  Estão presentes, na hipótese examinada, os pressupostos do fumus bonis iuris e do periculum in mora, a justificar a suspensão liminar da vigência e eficácia do ato normativo impugnado.

 

                  A razoável fundamentação jurídica decorre dos motivos expostos anteriormente, que indicam, de forma clara, que a Lei impugnada na presente ação padece integralmente de inconstitucionalidade.

 

                  O perigo da demora decorre especialmente da idéia de que sem a imediata suspensão da vigência e eficácia do ato normativo questionado, subsistirá a sua aplicação, com realização de despesas e imposição de obrigações à Municipalidade, que dificilmente poderão ser revertidas aos cofres públicos, na hipótese provável de procedência da ação direta.

 

                  É nítida a ocorrência do risco do fato consumado, e da dificílima – para não dizer improvável - reparação dos danos que serão causados ao erário.

 

                  A idéia do fato consumado, com repercussão concreta, guarda relevância para a apreciação da necessidade da concessão da liminar na ação direta de inconstitucionalidade. Note-se que, com a procedência da ação, pelas razões declinadas, não será possível restabelecer o status quo ante.

 

                  Assim, a imediata suspensão da eficácia do ato normativo questionado, cuja inconstitucionalidade é palpável, evitará a ocorrência de maiores prejuízos, além dos que já se verificaram.

 

                  De resto, ainda que não houvesse essa singular situação de risco, restaria, ao menos, a excepcional conveniência da medida. Com efeito, no contexto das ações diretas e da outorga de provimentos cautelares para defesa da Constituição, o juízo de conveniência é um critério relevante, que vem condicionando os pronunciamentos mais recentes do Supremo Tribunal Federal, preordenados à suspensão liminar de leis aparentemente inconstitucionais (cf. ADIN-MC 125, j. 15.2.90, DJU de 4.5.90, p. 3.693, rel. Min. Celso de Mello; ADIN-MC 568, RTJ 138/64; ADIN-MC 493, RTJ 142/52; ADIN-MC 540, DJU de 25.9.92, p. 16.182).

 

                  Diante do exposto, requer-se a concessão da liminar, para fins de suspensão imediata da eficácia da Lei Municipal n. 14.482, de 16 de julho de 2007.

 

         À vista do exposto, e após a concessão da medida liminar, aguardo seja determinado o processamento da presente ação, colhendo-se informações do Prefeito e da Câmara Municipal de São Paulo, as quais examinarei oportunamente, vindo, no final, a ser declarada a inconstitucionalidade da Lei Municipal n. 14.482, de 16 de julho de 2007, após, ser oficiado aos membros daquela Comuna solicitando a adoção das providências necessárias à suspensão definitiva dos efeitos de sua execução.

 

São Paulo, 26 de junho de 2008.

 

 

 

 

FERNANDO GRELLA VIEIRA

Procurador-Geral de Justiça