Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

 

Ementa. Lei municipal que institui cargos públicos e determina o provimento em comissão. Fixação de reserva aos servidores de carreira em percentual mínimo de 5% dos cargos, implicando que os demais podem ser preenchidos por livre nomeação pelo Prefeito. Cargos ou funções que não se apresentam como aqueles de administração superior, ou mesmo de “direção, chefia e assessoramento”, que exijam relação de confiança ou especial fidelidade às diretrizes traçadas pela autoridade nomeante, mas sim de cargo comum, de natureza profissional, que deve ser assumido em caráter permanente por servidores aprovados em concurso, ainda que venham a exercer a função de confiança (art. 115, inc. V, da Constituição Estadual e art. 37, inc. V, da Constituição). Inconstitucionalidade da expressão “num percentual mínimo de cinco por cento” reconhecida.

 

                                                           O Procurador-Geral de Justiça, no exercício da atribuição prevista no art. 116, inciso VI, da Lei Complementar Estadual n.º 734, de 26 de novembro de 1993 (Lei Orgânica do Ministério Público de São Paulo), e em conformidade com o disposto nos arts. 125, § 2.º, e 129, inciso IV, da Lei Maior, e arts. 74, inciso VI, e 90, inciso III, da Constituição Estadual, com base nos elementos de convicção existentes no incluso protocolado (PGJ n.º 114.200/07), vem, perante esse Egrégio Tribunal de Justiça promover esta

 

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE

 

relativamente às expressões (negritadas) constantes do § 1º do artigo 48, da Lei 4.616, de 27 de junho de 2002, do Município de Jacareí:

num percentual mínimo de cinco por cento,

pelas razões e fundamentos a seguir expostos.

 

                                                         Segundo dispõe o artigo 48 da Lei 4.616/02 (fls. 148 do Protocolado anexado):

“Art. 48 – Ficam criados, no quadro de servidores do Poder Executivo Municipal, os cargos de provimento em comissão, de livre nomeação e exoneração, estruturados de acordo com a sua lotação, denominação, referência e quantidade, conforme o Anexo III da presente Lei.

§ 1º Os cargos de provimento em comissão serão preenchidos por servidores de carreira, num percentual mínimo de cinco por cento, respeitando-se as condições de provimento e de qualificação exigidas.

(...)”

                                                        

                                                         A Lei 4.616/02 foi posteriormente alterada pela Lei 4.861/2005 (fl. 395), entretanto as alterações não modificaram a essência da lei inquinada, pois se limitou a aumentar o número de cargos de provimento em comissão, de livre nomeação.

 

                                                         No que diz respeito à expressão inconstitucional, afirma-se que a par da criação dos cargos de provimento em comissão, de um lado fixa-os aos servidores de carreira, mas imediatamente após limita a um mínimo de 5% o número de cargos destinados aos tais servidores. Assim, embora possa parecer que a disposição está de acordo com a Constituição Estadual e a Constituição Federal, na verdade acaba por afrontá-las diretamente, na medida em que 95% dos mesmos cargos podem vir a ser providos por estranhos à carreira, devendo ser considerado que a natureza das funções não exige a imprescindível relação de confiança entre a autoridade nomeante e o nomeado. Com efeito, tais Procuradores ou Subprocuradores nada mais são que servidores subalternos que se limitam a exercer suas funções técnicas sobre número reduzido de comandados, estes também de inferior escalão, mas notadamente em processos – administrativos ou judiciais.

 

                                                         Além disso, chama a atenção o fato de que nenhuma diferença se nota em relação à atuação dos advogados – cargo efetivo – e os procuradores, subprocuradores, todos realizando as mesmas tarefas, conforme demonstram os Anexos I e suas Tabelas G4 a G14 (fls. 397/405).

 

                                                         Essas razões revelam que os cargos mencionados não possuem natureza de cargo de livre provimento, não bastando, como é sabido, a lei assim declarar, dado que a regra é o provimento por concurso público, sendo exceção o provimento em comissão.

 

                                                         A Lei 4.616/2002, no parágrafo 1º do art. 48, particularmente com as expressões “num percentual mínimo de cinco por cento”, por via transversa acaba por permitir que pelo 95% dos cargos ali criados sejam de livre provimento, sem correspondência com as suas efetivas naturezas.

 

                                                         Ocorre que as expressões “num percentual mínimo de cinco por cento” ao ser lida com a criação de cargos de livre provimento, como se afirmou, é verticalmente incompatível com a Constituição do Estado de São Paulo, em especial com as seguintes disposições:

“Art. 111 – A administração pública direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes do Estado, obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, razoabilidade, finalidade, motivação e interesse público.

Art. 115 - Para a organização da administração pública direta e indireta, inclusive as fundações instituídas ou mantidas por qualquer dos Poderes do Estado, é obrigatório o cumprimento das seguintes normas:

I - os cargos, empregos e funções públicas são acessíveis aos brasileiros que preencham os requisitos estabelecidos em lei;

II - a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia, em concurso público de provas ou de provas e títulos, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão, declarado em lei, de livre nomeação e exoneração;

(...)

V – as funções de confiança, exercidas exclusivamente por servidores ocupantes de cargo efetivo, e os cargos em comissão, a serem preenchidos por servidores de carreira nos casos, condições e percentuais mínimos previstos em lei, destinam-se apenas às atribuições de direção, chefia e assessoramento.

 

Art. 144 - Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por Lei Orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.”

 

                                                         A Constituição em vigor consagrou o Município como entidade federativa indispensável ao nosso sistema federativo, integrando-o na organização político-administrativa e garantindo-lhe plena autonomia, como se observa da análise dos arts. 1.º, 18, 29, 30 e 34, VI, “c” da CF.

 

                                                         A autonomia municipal se assenta em quatro capacidades básicas: (a) auto-organização, mediante a elaboração de lei orgânica própria, (b) autogoverno, pela eletividade do Prefeito e dos Vereadores às respectivas Câmaras Municipais, (c) autolegislação, mediante competência de elaboração de leis municipais sobre áreas que são reservadas à sua competência exclusiva e suplementar, (d) auto-administração ou administração própria, para manter e prestar os serviços de interesse local (Cf. José Afonso da Silva, ob. cit., p. 546).

 

                                                         Nessas quatro capacidades, encontram-se caracterizadas a autonomia política (capacidades de auto-organização e autogoverno), a autonomia normativa (capacidade de fazer leis próprias sobre matéria de sua competência), a autonomia administrativa (administração própria e organização dos serviços locais) e a autonomia financeira (capacidade de decretação de seus tributos e aplicação de suas rendas, que é uma característica da auto-administração) (ob. e loc. cits).

 

                                                         Assim, por força da autonomia administrativa de que foram dotadas, as entidades municipais são livres para organizar os seus próprios serviços, segundo suas conveniências locais. E, na organização desses serviços públicos, a Administração cria cargos e funções, institui classes e carreiras, faz provimentos e lotações, estabelece vencimentos e vantagens e delimita os deveres e direitos de seus servidores (Cf. Hely Lopes Meirelles, in “Direito Municipal Brasileiro”, Malheiros Editores, São Paulo, 1996, 8.ª edição, p. 420).

 

                                                         Contudo, a liberdade conferida aos Municípios para organizar os seus próprios serviços não é ampla e ilimitada; ela se subordina às seguintes regras fundamentais e impostergáveis: (a) a que exige que essa organização se faça por lei; (b) a que prevê a competência exclusiva da entidade ou Poder interessado; e (c) a que impõe a observância das normas constitucionais federais (ou estaduais como é o caso) pertinentes ao servidor público (ob. e loc. cits.).

 

                                                         Feitas essas observações iniciais, verifica-se neste caso que a Câmara Municipal de Jacareí, com a sanção do Prefeito Municipal, criou cargos de provimento em comissão, para o exercício de funções estritamente técnicas ou profissionais, próprias de funcionários públicos ocupantes de cargos de provimento efetivo, ou quando muito de funções de confiança, reservadas aos mesmos servidores ocupantes de cargos ou empregos de provimento efetivo. São funções que denotam a natureza profissional do vínculo entre seus agentes e a Administração Pública e que, por essa razão, só poderiam ser preenchidas por servidores ocupantes de cargos ou empregos submetidos a prévio concurso público.

 

                                                         Segundo RUY CIRNE LIMA (“Princípios de Direito Administrativo, RT, 6.ª ed., p. 162), o funcionário público profissional se peculiariza por quatro característicos básicos, a saber: (a) natureza técnica ou prática do serviço prestado; (b) retribuição de cunho profissional; (c) vinculação jurídica à Administração Direta; (d) caráter permanente dessa vinculação.

 

                                                         Desse modo, nitidamente diferenciado dos cargos que reclamam provimento em comissão, as funções profissionais devem ser exercidas em caráter permanente, ou seja, pelo quadro estável de servidores públicos municipais, os quais, em conformidade com o disposto no art. 115, incisos II e V, da Constituição do Estado de São Paulo, só podem ser arregimentados por concurso público de provas ou de provas e títulos. Note-se que esse raciocínio não destoa da possibilidade de servidores de carreira ocuparem funções de confiança, nos termos do inciso V do artigo 37, da Constituição Federal.

 

                                                         Na verdade, o cargo em comissão destina-se apenas às atribuições de “direção, chefia e assessoramento” (CF., art. 37, inciso V, com a redação dada pela EC n.º 19/98 e art. 115, inciso V, da Constituição estadual, com a redação dada pela Emenda 21, de 14/02/06) e tem por finalidade propiciar ao governante o controle das diretrizes políticas traçadas. Exige, portanto, das pessoas indicadas a titularizá-los, absoluta fidelidade à orientação fixada pela autoridade nomeante. Em outras palavras, o cargo de provimento em comissão está diretamente ligado ao dever de lealdade à linha fixada pelo agente político superior, não observável no caso examinado.

 

                                                         Daí por que a exceção contida na parte final do inciso II, do artigo 115, da Constituição do Estado de São Paulo - “ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração” -, que, no ponto, reproduz a dicção do artigo 37, inciso II, da Constituição da República, tem alcance limitado a situações excepcionais, relativas aos cargos cuja natureza especial justifique a dispensa de concurso público.

 

                                                         Demais disso, as Constituições Federal e Estadual impõe as condições em que as funções de confiança devem ter o provimento, não sendo o caso dos autos.

 

                                                         Torna-se evidente, portanto, que a limitação apontada (num percentual mínimo de cinco por cento) não tem caráter puramente formal, de simples e criteriosa indicação legal no mínimo exigido pelo inc. V do art. 115 da Constituição Estadual, ou o inc. V, do art. 37, da Constituição Federal, para provimento em comissão, que pudesse afastar o princípio constitucional da igual acessibilidade aos cargos públicos. Na realidade, ao fixar o mínimo em 5%, acaba a lei municipal por permitir que os restantes 95% sejam providos por qualquer pessoa, afastando a regra do concurso público, afrontando a CE e a CF.

 

                                                         Bem a propósito, ao estudar com profundidade esse assunto, o jurista MARCIO CAMMAROSANO deixou anotado que o princípio democrático implica no princípio da igualdade “e este no princípio da igual acessibilidade dos cargos públicos, com o que se resguarda também o princípio da probidade administrativa” (Cf. “Provimento de Cargos Públicos no Direito Brasileiro”, Revista dos Tribunais, São Paulo, 1.ª ed., p. 45).

 

                                                         Assim, para que a lei criadora de um cargo em comissão não venha a se constituir em burla ao princípio constitucional arrolado, enunciado expressamente pelo artigo 37, incisos I, II e V, da Constituição da República, bem como incisos I, II e V do artigo 115 da Constituição Estadual, deverá observar criteriosamente a natureza das funções a serem desempenhadas, pois, no dizer de CELSO ANTONIO BANDEIRA DE MELLO (O Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade, Editora Revista dos Tribunais, 1.ª edição, pág. 49), “impende que exista uma adequação racional entre o tratamento diferençado construído e a razão diferencial que lhe serviu de supedâneo”.

 

                                                         Afinado a esse mesmo entendimento, HELY LOPES MEIRELLES (“Direito Administrativo Brasileiro”, Malheiros, 18.ª ed., p. 378) adverte sobre pronunciamento do Supremo Tribunal Federal no sentido de que “a criação de cargo em comissão em moldes artificiais e não condizentes com as praxes de nosso ordenamento jurídico e administrativo, só pode ser encarada como inaceitável esvaziamento da exigência constitucional de concurso”.

 

                                                         E, da mesma forma, já decidiu o Pretório Excelso que “a exigência constitucional do concurso público não pode ser contornada pela criação arbitrária de cargos em comissão para o exercício de funções que não pressuponham o vínculo de confiança que explica o regime de livre nomeação e exoneração que os caracteriza.” (STF, RTJ 156/793)

 

                                                         Nesse contexto, onde está a necessidade do estabelecimento de vínculo de confiança para o exercício dos cargos mencionados na Prefeitura, criados pela lei municipal em exame? Evidentemente que estamos considerando a expressão inquinada.

 

                                                         Na esteira desse raciocínio, é inescusável que a parte final do inciso II do art. 115 da Constituição do Estado de São Paulo, tem alcance circunscrito a situações em que o requisito da confiança seja predicado indispensável ao exercício do cargo. De fato, como se trata de uma exceção à regra do concurso público, a criação de cargos em comissão pressupõe o atendimento do interesse público e só se justifica para o exercício de funções de “direção, chefia e assessoramento”, em que seja necessário o estabelecimento de vínculo de confiança entre a autoridade nomeante e o servidor nomeado. Fora desses parâmetros, é inconstitucional qualquer tentativa de criação de cargos dessa natureza.

 

                                                         Os cargos, cuja validade jurídico-constitucional ora se examina não se apresenta como cargos ou funções de administração superior, ou mesmo de “direção, chefia e assessoramento”, que exija relação de confiança ou especial fidelidade às diretrizes traçadas pela autoridade nomeante, mas sim de cargo comum, de natureza profissional, que deve ser assumido em caráter permanente por servidores aprovados em concurso, ainda que em função de confiança.

 

                                                         Aliás, este Egrégio Tribunal já teve oportunidade de manifestar seu entendimento pela inconstitucionalidade do proceder legislativo municipal, ao examinar a Apelação Cível 577.852-5/0-00, da Comarca de Jacareí, ao qual deram provimento para conceder o mandado de segurança impetrado (fls. 545/555), permitindo que Rogério Azeredo Reno tomasse posse em cargo, para o qual fora aprovado em concurso público.

 

                                                         Conclui-se, portanto, que os cargos de Procurador, Subprocurador e Assessor Técnico, criados pela legislação em exame, não depende para o seu exercício do estabelecimento de qualquer vínculo de confiança com a autoridade nomeante; é verticalmente incompatível com os arts. 111; 115, incisos I, II e V; e 144, da Constituição do Estado de São Paulo, impondo-se, por conseguinte, a exclusão da ordem constitucional em vigor das expressões “num percentual mínimo de cinco por cento”.

 

                                                         Cumpre ressaltar que a o pedido se resumirá ao reconhecimento da inconstitucionalidade de expressões tão somente, permitindo que os cargos criados permaneçam hígidos, apenas que providos por servidores de carreira, tudo de modo a concretizar o princípio da máxima efetividade das leis.

 

DA LIMINAR

 

                                                         Tendo em vista a vigência da lei e sua manifesta inconstitucionalidade, gerando pagamento de servidores mensalmente, de modo a gerar discussão posterior sobre eventual repetição do indébito, necessária a liminar. Quando se trata do controle normativo abstrato e desde que haja a cumulativa satisfação dos requisitos concernentes ao fumus boni juris e ao periculum in mora, o poder geral de cautela autoriza a suspensão de eficácia de dispositivos legais impugnados, até o advento da decisão final.

 

                                                         Conforme se nota de fl. 559 do Protocolado nº. 114.200/07 anexado, a Prefeitura Municipal de Jacareí proveu os cargos questionados e vem fazendo os pagamentos, em claro prejuízo aos cofres públicos. A expressão da lei inquinada não pode se sobrepor às Constituições Estadual e Federal, causando nítido prejuízo à administração municipal, tema tão sensível quanto de difícil solução para todos.

 

                                                         Neste caso, os requisitos do perigo na demora e da fumaça do bom direito se fazem presentes, de modo que está translúcida a conveniência de sustar, provisoriamente, a eficácia dos dispositivos questionados. De resto, ainda que não houvesse essa singular situação de risco, restaria, ao menos, a excepcional conveniência da medida. Com efeito, no contexto das ações diretas e da outorga de provimentos cautelares para defesa da Constituição, o juízo de conveniência é um critério relevante, que vem condicionando os pronunciamentos mais recentes do Supremo Tribunal Federal, preordenados à suspensão liminar de leis aparentemente inconstitucionais (cf. ADIN-MC 125, j. 15.2.90, DJU de 4.5.90, p. 3.693, rel. Min. Celso de Mello; ADIN-MC 568, RTJ 138/64; ADIN-MC 493, RTJ 142/52; ADIN-MC 540, DJU de 25.9.92, p. 16.182).

 

                                                         É o que se requer.

 

PEDIDO FINAL

 

                                                         Nestes termos, aguardo seja determinado o processamento da presente ação, vindo, no final, a ser declarada a inconstitucionalidade das expressões “num percentual mínimo de cinco por centoconstantes do § 1º do artigo 48, da Lei nº. 4.616, de 27 de junho de 2002, do Município de Jacareí, efetuando-se as comunicações de praxe.

 

                                                         Requer-se ainda sejam requisitadas informações à Câmara Municipal de Jacareí e ao Prefeito Municipal de Jacareí, bem como citado o Procurador-Geral do Estado, para manifestar-se sobre o ato normativo impugnado.

 

                                                         Posteriormente, aguarda-se vista para fins de manifestação final.

São Paulo, 15 de setembro de 2008.

 

FERNANDO GRELLA VIEIRA

PROCURADOR-GERA DE JUSTIÇA