EXCELENTÍSSIMO SENHOR DESEMBARGADOR PRESIDENTE DO E. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

 

Protocolado nº 118.462/10

Assunto: Inconstitucionalidade do inc. XIX, do art. 62, da Lei Orgânica do Município de Americana.

 

Ementa: Ação direta de inconstitucionalidade. Inc. XIX, do art. 62, da Lei Orgânica do Município de Americana. Autorização da Câmara Municipal para aprovação de projetos ou planos de parcelamento do solo na forma de loteamento, retalhamento, desmembramento e arruamento e zoneamento urbano ou para fins urbanos pelo Poder Executivo.  Arts. 5º, 47, II, XIV e XIX, a, 111 e 115, II e V, Constituição Estadual. Violação do princípio da separação dos poderes.

 

         

 

 

O Procurador-Geral de Justiça do Estado de São Paulo, no exercício da atribuição prevista no art. 116, inciso VI da Lei Complementar Estadual nº 734, de 26 de novembro de 1993 (Lei Orgânica do Ministério Público de São Paulo), em conformidade com o disposto no art. 125, § 2º e art. 129, inciso IV da Constituição Federal, e ainda art. 74, inciso VI e art. 90, inciso III da Constituição do Estado de São Paulo, com amparo nas informações colhidas no incluso protocolado, vem, respeitosamente, perante esse Egrégio Tribunal de Justiça, promover a presente AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE do inc. XIX, do art. 62, da Lei Orgânica do Município de Americana, pelos fundamentos a seguir expostos.

I. DO ATO NORMATIVO IMPUGNADO.

1. O dispositivo impugnado, da Lei Orgânica do Município de Americana dispõe que:

"Art. 62. Ao Prefeito compete, entre outras atribuições:

(...)

XIX - aprovar planos de loteamento, arruamento e zoneamento urbano ou para fins urbanos, ad referendum da Câmara Municipal;"

Contudo, é possível afirmar que a lei impugnada ofende frontalmente os seguintes dispositivos da Constituição do Estado de São Paulo: art. 5º; art. 47, incisos II e XIV; art. 111, caput; art. 144; art. 180, caput, e inciso II; e art. 181.

É o que será demonstrado a seguir.

II. DO DIREITO

2. A expressão "ad referendum", contida no inc. XIX, do art. 62 afronta a Constituição Bandeirante, sendo que os dispositivos que foram vulnerados apresentam a seguinte redação:

“Art. 5º- São poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

§ 1º É vedado a qualquer dos Poderes delegar atribuições.

Art. 144- Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por Lei Orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição”.

3. Como se sabe, no Brasil o governo municipal é de funções divididas, incumbindo as legislativas às Câmaras e as executivas ao Prefeito. Entre ambos não existe nenhuma subordinação política ou administrativa, havendo, isto sim, entrosamento de funções e de atividades político-administrativas.[1]

4. À Câmara, ainda, são atribuídas outras funções, tais como a de controle e fiscalização, assessoramento e administrativas, mas prepondera a função sobre essas outras. Em sua função normal e predominante sobre as demais, o Legislativo municipal edita leis, isto é, normas gerais e abstratas, de observância obrigatória. Ao Executivo incumbe praticar atos concretos de administração, ou seja, aplicar aos casos particulares essas normas gerais editadas pela Câmara.

5. Essa divisão de funções é decorrência lógica da opção feita pelo constituinte originário em repartir o exercício do poder político por diversos órgãos diferentes e independentes, na forma idealizada por Montesquieu, de modo a dificultar ou impedir o arbítrio.[2]

6. Em sendo assim, tem-se como ilegítima toda e qualquer interferência de um Poder sobre o outro, dado que atentatória à separação institucional de suas funções (CE, art. 5º). Ou seja, a Câmara não pode delegar funções ao prefeito, nem receber delegações deste, pois, assim como não cabe à Edilidade praticar atos do Executivo, não pode este substituí-la nas atividades que lhe são próprias.[3]

7. Vistos esses aspectos de ordem geral, cabe assinalar que, neste caso, a Câmara Municipal de Americana editou lei que obriga o Prefeito a submeter à sua apreciação todos os projetos que visam à implantação de loteamentos, arruamento e zoneamento urbano ou para fins urbanos, que deverão ser aprovados, à exceção da última hipótese, por ato do Poder Executivo.

8. Evidentemente, o Legislativo não tem essa competência, visto que em relação ao uso e ocupação do solo, incumbe a esse Poder apenas elaborar normas visando à ordenação espacial do território do Município, especialmente para a cidade, nos termos dos artigos 30, incisos I e VIII, e 182, ambos da Constituição Federal, desde que respeitados, é claro, os parâmetros estabelecidos pelas normas gerais e suplementares editadas, respectivamente, pela União e Estados-membros (CF, art. 24, I e § 2º).

9. Mas também o Executivo, por si só, não tem o poder de, para os fins específicos de zoneamento urbano ou para fins urbanos deliberar a respeito. Tal matéria deve ser objeto de lei específica, de sua iniciativa, é certo, mas observadas as disposições estabelecidas na Constituição Estadual (arts.181  e 182).

10. Já, por outro lado, o controle da execução das leis que disciplinam o uso e ocupação do solo urbano deve ser exercido pelos órgãos competentes da Prefeitura. Quer dizer, qualquer atividade relacionada a essa área, deve ser submetida à análise e aprovação de profissionais especializados e técnicos subordinados ao Prefeito, inserindo-se, portanto, no âmbito das atribuições administrativas atinentes a essa autoridade executiva.

11. Sobre esse assunto, Hely Lopes Meirelles ensina que “incumbe ao Prefeito, como agente executivo que é, executar e fazer cumprir as leis e outras normas legais. Na execução dessas normas está implícito o seu poder-dever de fiscalizar e impor penas disciplinares, multas e demais sanções aos infratores ou desobedientes, bem como o de recorrer aos meios judiciais e requisitar força pública para assegurar o cumprimento de suas determinações legais”.[4]

12. Referido autor também leciona que “a aprovação de loteamento é ato da alçada privativa da Prefeitura, atendidas as prescrições da União, os preceitos sanitários do Estado e as imposições urbanísticas do Município, ouvidas previamente, quando for o caso, as autoridades militares e as florestais com jurisdição na área, e o INCRA, se a gleba estiver na zona rural”.[5]

13. Nesse contexto, afigura-se patente a violação do princípio da independência e harmonia entre os poderes, pois a obrigatoriedade do Prefeito em remeter projetos ou planos de parcelamento do solo na forma de loteamento, retalhamento, desmembramento e arruamento e zoneamento urbano ou para fins urbanos ao Legislativo para que sejam referendados ou aprovados, implica na clara interferência deste Poder no exercício de atribuição de natureza tipicamente administrativa, própria do Executivo, a quem, como se viu, compete aplicar a lei ao caso concreto.

14. Em sua clássica obra Curso de Direito Constitucional Positivo, José Afonso da Silva adverte que “os trabalhos do Legislativo e do Executivo, especialmente, mas também do Judiciário, só se desenvolverão a bom termo, se esses órgãos se subordinarem ao princípio da harmonia, que não significa nem o domínio de um pelo outro nem a usurpação de atribuições, mas a verificação de que, entre eles, há de haver consciente colaboração e controle recíproco, para evitar distorções e desmandos. A desarmonia, porém, se dá sempre que se acrescem as atribuições, faculdades e prerrogativas de um em detrimento de outro”.[6]

15. É irrecusável, pois, ante o cotejo ora estabelecido, a conclusão de que a legislação, consistente na expressão em exame, é materialmente incompatível com os princípios da independência, harmonia e autonomia dos Poderes, consagrados no art. 5º e § 1º, da Constituição do Estado de São Paulo, que são de observância obrigatória pelos Municípios, por força do art. 144 dessa mesma Carta, impondo-se, assim, a sua exclusão do ordenamento jurídico vigente.

16. Os pressupostos para a concessão da liminar encontram-se presentes. O fumus boni juris exsurge da constatação segura de que há invasão de competência administrativa do Executivo pela Câmara Municipal. Há periculum in mora, pois para a aprovação de "projetos ou planos de parcelamento do solo na forma de loteamento, retalhamento, desmembramento e arruamento" o Prefeito depende da vontade política da Câmara Municipal, quando pela ordem constitucional tem permissão para aprovar atos normativos relativos a essas matérias no Município. Além disso, caso ele se negue ao cumprimento dessa legislação, poderá ficar sujeito a um processo de cassação, com o que se gerará uma desnecessária crise institucional, o que recomenda a suspensão de sua eficácia até o julgamento definitivo desta demanda.

17. Nestes termos, requeiro seja concedida liminar para a suspensão da eficácia da expressão "ad referendum da Câmara Municipal", contida no art. 62, inc. XIX, da Lei Orgânica do Município de Americana, bem como se determine o processamento da presente ação direta, vindo, a final, ser declarada a inconstitucionalidade de tal expressão.

18. Requer-se ainda sejam requisitadas informações à Câmara Municipal e ao Prefeito Municipal, bem como citado o Procurador-Geral do Estado para se manifestar sobre o ato normativo impugnado.

19. Cumpridas tais iniciais diligências, aguarda-se vista para manifestação final.

São Paulo, 1º de fevereiro de 2011.

 

                         Fernando Grella Vieira

                         Procurador-Geral de Justiça

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Protocolado nº 118.462/10

Assunto: Inconstitucionalidade do inc. XIX, do art.62, da Lei Orgânica do Município de Americana.

 

 

 

 

 

1.    Distribua-se a petição inicial da ação direta de inconstitucionalidade, em face inc. XIX, do art. 62, da Lei Orgânica do Município de Americana, junto ao Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

2.    Oficie-se ao interessado, informando-lhe a propositura da ação, com cópia da petição inicial.

 

                    São Paulo, 1º de fevereiro de 2011.

 

 

 

 

Fernando Grella Vieira

Procurador-Geral de Justiça

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[1] Hely Lopes Meirelles, Direito Municipal Brasileiro, São Paulo: Malheiros, 1996, 8ª ed., p. 428.

[2] Manoel Gonçalves Ferreira Filho, Curso de Direito Constitucional, São Paulo: Saraiva, 1996, 23ª ed., p. 116.

[3] Hely Lopes Meirelles, ob. cit., p. 429.

[4] Hely Lopes Meirelles, Direito Municipal Brasileiro, São Paulo: Malheiros, 1996, 8ª ed., p. 525.

[5] Hely Lopes Meirelles, Direito Municipal Brasileiro, São Paulo: Malheiros, 9ª ed., 1997, p. 402.

[6] José Afonso da Silva, Curso de Direito Constitucional Positivo, São Paulo: Malheiros, 1992, 8ª ed., p. 101.