Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo

Protocolado nº122.549/08

Objeto: Leis Municipais nº856, de 14/7/2003, e nº1240, de 5/3/2007, de Ibiúna.

 

 

Ementa:

1)Ação direta de inconstitucionalidade. Leis Municipais nº856, de 14/7/2003 (art.1º, art.2º e art.4º), e nº1240, de 5/3/2007 (art.3º), de Ibiúna. Criação da “Taxa de Fiscalização e Vigilância”.

2)Imposição fiscal referente ao “fechamento” de vias públicas (permissão de uso de bens públicos). Recolhimento compulsório, por parte de todos os titulares de imóveis “beneficiados” com o fechamento, ainda que determinado ex officio pelo Poder Público. Incidência, ainda que o morador não seja associado à Associação que postulou o fechamento.

3)Desrespeito a princípios constitucionais estabelecidos (art.144 e art.160 e seguintes da Constituição do Estado). Necessidade de respeito à matriz constitucional tributária.

 

 

         O Procurador-Geral de Justiça do Estado de São Paulo, no exercício da atribuição prevista no art.116, inciso VI, da Lei Complementar Estadual nº734 de 26 de novembro de 1993, e em conformidade com o disposto no art.125, §2º, e art.129, inciso IV, da Constituição Federal, e ainda art.74, inciso VI, e art.90, inciso III da Constituição do Estado de São Paulo, com amparo nas informações colhidas no incluso protocolado (PGJ nº122.549/08, que segue como anexo), vem perante esse Egrégio Tribunal de Justiça promover a presente AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE das Leis Municipais nº856, de 14/7/2003 (art.1º, art.2º e art.4º), e nº1240, de 5/3/2007 (art.3º), de Ibiúna, que serão adiante transcritas, pelos fundamentos expostos a seguir.

 

1)Dos atos normativos impugnados.

 

         A Lei Municipal nº856, de 14/7/2003, de Ibiúna (fls.6), que, conforme respectiva ementa, “dá nova redação à Lei nº467, de 16 de setembro de 1998, e dá outras providências”, tem a seguinte redação:

 

“Art.1º. O parágrafo único do art.9º da Lei nº385/97, com as alterações introduzidas pela Lei nº467/98, passa a vigorar com a seguinte redação.

 

‘Art.9º......

Parágrafo único. A cobrança será feita sobre cada um dos imóveis beneficiados, independentemente do fechamento da via pública ter sido requerida por moradores, associações ou provida de ofício pelo Poder Público Municipal.’

 

Art.2º. As cobranças da TAXA DE FISCALIZAÇÃO E VIGILÂNCIA que já tiverem sido efetuadas pelo Poder Público na forma do artigo 9º da Lei nº385/97, com as alterações da Lei nº467/98, permanecem da mesma forma neste exercício financeiro, adequando-se no exercício seguinte ao disposto no artigo 1º.

 

Art.3º. As portarias irregulares existentes até a publicação desta Lei serão regularizadas de ofício pelo Poder Público Municipal, considerando o benefício experimentado por todos os moradores do local fechado, mediante expedição de decreto.

 

Art.4º. A cobrança da TAXA DE FISCALIZAÇÃO E VIGILÂNCIA, criada pela Lei nº385/97, será, nos casos especificados no artigo anterior, cobrada somente após a aplicação da presente lei.

 

Art.5º. Esta lei entra em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário, em especial o art.17 da Lei nº467/98.”

 

         A Lei Municipal nº1240, de 05 de março de 2007, de Ibiúna, (fls.5), que, conforme respectiva rubrica, “Revoga as Leis Municipais números 385/97, 467/98 e 856/03 e dá outras providências”, tem a seguinte redação:

 

“Art.1º. Ficam revogadas as leis municipais números 385/97, 467/98 e 856/03.

 

Art.2º. As despesas com a execução da presente lei correrão à conta de dotações orçamentárias próprias, consignadas no orçamento, suplementadas se necessário.

 

Art.3º. Os valores já pagos sob o título de taxa de fiscalização e vigilância não serão devolvidos, considerando a vigência válida das leis ora revogadas até a publicação desta Lei.

 

Art.4º. Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário.”

 

            Ocorre que os dispositivos colocados em destaque (negrito) na Lei nº856/2003 (art.1º, art.2º e art.4º) e na Lei nº1240/2007 (art.3º) são verticalmente incompatíveis com nosso sistema constitucional, como será demonstrado a seguir.

 

2)Histórico normativo e de impugnações da “Taxa de Fiscalização e Vigilância”.

 

         Para compreender a hipótese deduzida na presente ação direta, é necessária pequena retrospectiva atinente à evolução legislativa e de impugnações quanto ao tributo em questão, no Município de Ibiúna.

 

         Cumpre ressaltar, inicialmente, que na sessão de julgamento realizada em 30 de abril de 2008, ao examinar a ADI nº152.226.0/6, rel. des. Viana Santos, proposta por esta Procuradoria-Geral de Justiça, o C. Órgão Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo declarou a inconstitucionalidade da Lei Municipal nº1123, de 1º de dezembro de 2006, de Ibiúna, que cuidava da “Taxa de Regularização de Portaria”, sendo referido julgado contemplado com a ementa transcrita a seguir:

 

“Ação direta de inconstitucionalidade. Lei Complementar nº1123, de 01 de dezembro de 2006, do Município de Ibiúna. Criação de TAXA DE REGULARIZAÇÃO DE PORTARIA para imóveis beneficiados por fechamento de loteamento, nos termos do artigo 9º da Lei 385/97. Revogação expressa da Lei 385/97 com o advento da Lei nº1240/2007. Não tem esta ação direta o condão de atingir lei diversa. No mais, realmente o legislador municipal, ao criar um tributo nestes moldes, violou o princípio da separação dos Poderes, consagrado na Constituição Estadual. Afronta aos artigos 5º, 120, 139, 144, 159, parágrafo único, e 160, incisos I a V, da Constituição Paulista. Julgaram procedente a ação”. (cópia do acórdão a fls.8/13).

 

            Com a declaração da inconstitucionalidade da Lei nº1123/2006 (cópia às fls.21), ocorreu o efeito repristinatório com relação à Lei Municipal nº856, de 14/7/2003, de Ibiúna, que instituiu a “Taxa de Fiscalização e Vigilância”, e que ostenta a mesma inconstitucionalidade da denominada “Taxa de Regularização de Portaria”, criada pela Lei nº1123/2206, e anulada por esse C. Órgão Especial na ADI nº152.226.0/6.

 

         Em função disso, esta Procuradoria-Geral de Justiça interpôs embargos de declaração na ADI nº152.226.0/6, para que, por arrastamento, fosse reconhecida a inconstitucionalidade do ato normativo repristinado, ou seja, a Lei Municipal nº856, de 14/7/2003, de Ibiúna, que padece do mesmo vício. Entretanto, tais embargos não foram acolhidos (cópia do v. acórdão a fls.22/29).

 

         Oportuno anotar também que a própria Lei Municipal nº856, de 14/7/2003, de Ibiúna fora impugnada anteriormente em ação direta proposta por esta Procuradoria-Geral de Justiça (ADI nº131.469.0/0, rel. des. Reis Kuntz). Referida ação, entretanto, foi extinta por perda do objeto, na medida em que, antes da sessão de julgamento, o ato normativo foi revogado por força da edição da Lei Municipal nº1123/2006 (cópia do v. acórdão a fls.29/36).

 

         Em síntese, diante do não acolhimento dos embargos de declaração interpostos na ADI nº152.226.0/6, encontra-se em vigor a norma repristinada (Lei Municipal nº856/2003), que é verticalmente incompatível com nossa sistemática constitucional.

 

         Encontra-se também em plena vigência o art.3º da Lei Municipal nº1240/2007, que legitimou a cobrança da “Taxa de Fiscalização e Vigilância” em relação a período pretérito, ao dispor que “Os valores já pagos sob o título de taxa de fiscalização e vigilância não serão devolvidos, considerando a vigência válida das leis ora revogadas até a publicação desta lei”.

 

         Como bem acenou a representação que rendeu ensejo à propositura desta ação direta (fls.2/4), o art.3º da Lei Municipal nº1240/2007, de Ibiúna, serve indevidamente como fundamento para a manutenção da cobrança da taxa inconstitucional, durante o período de 14/7/2003 a 5/3/2007.

 

         Embora a Lei Municipal nº1240/2007 tenha revogado a cobrança da taxa inconstitucional, contém o dispositivo acima mencionado, que procura evitar a repetição do que foi pago indevidamente pelos contribuintes, em que pese a notória inconstitucionalidade do tributo, cuja incidência havia sido suspensa por liminar concedida na ADI nº131.469.0/0, (v. acórdão, fls.29/36), que acabou posteriormente sido extinta, como apontado, sem exame do mérito.

 

         Esse quadro justifica a propositura da presente ação direta a fim de que seja reconhecida a inconstitucionalidade de dispositivos da Lei nº856/2003 (art.1º, art.2º e art.4º) e da Lei nº1240/2007 (art.3º), pelos fundamentos indicados a seguir.

 

3)Fundamentos do reconhecimento da inconstitucionalidade de dispositivos da Lei nº856/2003 (art.1º, art.2º e art.4º).

 

         A Lei Municipal nº385/97, de Ibiúna, mencionada pelo art.1º da Lei Municipal nº856/2003, permitiu o fechamento, para tráfego de veículos em Vilas e ruas sem saída no Município de Ibiúna, desde que preenchidos os requisitos nela especificados (fls.48/52). Além disso, criou a então denominada “Taxa de Fiscalização e Vigilância”, contendo seu art.9º a seguinte redação:

 

“Lei Municipal nº385/97

 

(...)

 

Art.9º. A autorização de que trata a presente Lei será concedida a título oneroso, devendo os imóveis beneficiados pelo fechamento recolher a TAXA DE FISCALIZAÇÃO E VIGILÂNCIA, que fica criada pela presente Lei e cujo valor para o exercício de 1997, fixado em R$ 120,00 (cento e vinte reais), por imóvel, e deverá ser pago nas mesmas condições e número de parcelas do IPTU.

 

Parágrafo único. Os moradores beneficiados pelo fechamento ou a Associação representativa ficam obrigados a comunicar à Prefeitura Municipal, qual a metragem quadrada mínima e o tipo de construção permitidos que poderão ser executados.”

 

            Esse dispositivo (art.9º da Lei nº385/97 de Ibiúna), que criou a “Taxa de Fiscalização e Vigilância”, foi impugnado pela Procuradoria-Geral de Justiça por meio da ADI nº060.079.0/9-00, rel. des. Luiz Tâmbara, que acabou sendo julgada improcedente (cópia do v. acórdão às fls.55/77). Na oportunidade, esse C. Órgão Especial reconheceu a legitimidade constitucional da aludida imposição, identificando-se, na hipótese, espécie de preço público ou tarifa, e não tributo. Para compreensão do que ficou decidido naquela oportunidade, é oportuno transcrever trecho do voto do relator, Des. Luiz Tâmbara, a respeito da “Taxa de Fiscalização e Vigilância”:

 

“(...)

 

Houve evidente impropriedade na redação do artigo 9º, da Lei 385, de 17 de fevereiro de 1997, do MUNICÍPIO DE ÍBIÚNA, ao aludir a autorização de que trata a presente Lei será concedida a título oneroso devendo os imóveis beneficiados pelo fechamento recolher a TAXA DE FISCALIZAÇÃO E VIGILÂNCIA, que fica criada pela presente Lei e cujo valor para o exercício de 1997, fixado em R$ 120,00, por imóvel, deverá ser pago nas mesmas condições e números de parcelas do IPTU. Não de cuida de TAXA em razão do exercício do poder de polícia (CE, artigo 160, inciso II, e CF, artigo 145, inciso II), senão de preço público. Segundo o magistério do emérito Professor HELY LOPES MEÍRELLES, "permissão de uso é o ato negocial, unilateral, discricionário e precário através do qual a Administração faculta ao particular a utilização individual de determinado bem público. Como ato negocial, pode ser com ou sem condições, gratuito ou remunerado, por tempo certo ou indeterminado, conforme estabelecido no termo próprio, mas sempre modificável e revogável unilateralmente pela Administração, quando o interesse público o exigir, dados sua natureza precária e o poder discricionário do permitente para consentir e retirar o uso especial do bem público" (Direito Administrativo Brasileiro, 26ª edição - 2001, atualizada por Eurico de Andrade Azevedo, Déício Balestero Aleixo e José Emmanuel Burle Filho, Malheiros Editores, pág. 466).

 

Ainda que se entenda que se trata de taxa, encontra ela apoio nas disposições constitucionais e na doutrina. O artigo 160, inciso II, da Constituição do Estado de São Paulo, repetindo o preceito abrigado no artigo 145, inciso II, da Constituição da República, prevê que: "Compete ao Estado instituir: II - taxas em razão do exercício do poder de polícia, ou pela utilização, efetiva ou potencial, de serviços públicos de sua atribuição, específicos e divisíveis, prestados ao contribuinte ou postos à sua disposição." Em seguida, no § 2° do mencionado dispositivo, estabelece que: “As taxas não poderão ter base de cálculo própria de impostos." Na lição do saudoso Professor HELY LOPES MEIRELLES, "A utilização efetiva ou potencial do serviço é, necessariamente, o fato gerador da taxa remuneratória, que não pode ter como base de cálculo a que tenha servido para a incidência de impostos (CF, artigo 145, § 2º). A especificidade e a divisibilidade do serviço constituem também requisitos essenciais para a imposição da taxa remuneratória, nos termos do artigo 142, II, da CF. Serviço público específico, consoante o Código Tributário Nacional, é o que pode ser destacado em unidade autônoma de intervenção, de utilidade ou de necessidade pública (artigo 79, II). Segundo o mesmo Código, divisível é o serviço suscetível de utilização, separadamente, por parte de cada um dos seus usuários (artigo 79, III). Devem-se entender por específicos os serviços destinados a determinadas categorias de usuários, diversamente dos genéricos, que são prestados, ou postos à disposição, em caráter geral para toda a coletividade. Quanto à divisibilidade, o conceito do Código Tributário Nacional está correto, pois caracteriza como divisíveis os serviços uti singuli, isto é, os de utilização individual e mensurável, que se contrapõem aos serviços uti universi, prestados indistintamente a todos os usuários, sem possibilidade de individualização e medição, muito embora possam beneficiar mais determinadas categorias do que outras. A especificidade e a divisibilidade ocorrem, em regra, nos serviços de caráter domiciliar, como os de energia elétrica, água, esgotos, telefonia e coleta de lixo, que beneficiam individualmente o usuário e lhe são prestados na medida de suas necessidades, ensejando a proporcionalidade da remuneração. Somente a conjugação desses dois requisitos -- especificidade e divisibilidade -, aliada à compulsoriedade do serviço, pode autorizar a imposição de taxa. Destarte, não é cabível a cobrança de taxa pelo calçamento de via pública ou pela iluminação de logradouro público, que não configuram serviços específicos, nem divisíveis, por serem prestados uti universi, e não uti singuli, do mesmo modo que seria ilegal a imposição de taxa relativamente aos transportes urbanos postos à disposição dos usuários, por faltar a esse serviço, específico e divisível, o requisitos da compulsoriedade." Em seguida, ao discorrer sobre a base de cálculo do tributo, esclarece que: "Base de cálculo ou base imponível, um dos elementos do fato gerador, é a unidade ou medida estabelecida pela lei tributária para quantificar o tributo, tal como o valor venal do imóvel, o preço do serviço, o rendimento líquido da pessoa física. A base de cálculo pode consistir num só elemento aferidor ou na combinação de vários elementos que conduzam ao quantum debeatur, pela aplicação da alíquota devida à base de cálculo cabível, como veremos adiante. O que convém reter é que a base de cálculo há que estar vinculada ao fato gerador e deve manter estrita pertinência com a matéria tributável, sob pena de descaracterizar o tributo e invalidar sua cobrança. Assim, por exemplo, a base de cálculo da taxa de coleta de lixo domiciliar não pode ser o valor venal do imóvel, porque confundiria com o imposto predial urbano; poderá ser o metro linear de frente ou qualquer outro elemento que guarde estreita relação com o serviço taxado" (Direito Municipal Brasileiro, Malheiros Editores, 11a edição atualizada por Célia Marisa Prendes e Márcio Schneider Reis, 2000, págs. 151/153 e 161).

 

Por outra vertente, o Excelso Plenário do Supremo Tribunal Federal firmou o entendimento no sentido de que a Taxa de Coleta de Lixo do Município de São Carlos, instituída pela Lei n° 10.253/89, é constitucional, porquanto sua variação segundo a área construída do imóvel, não caracterizou identidade com a base de cálculo do IPTU (RREE n°s. 232.393-1, SP, Relator Ministro CARLOS VELLOSO; 279.793-0, SP, Relator Ministro SYDNEY SANCHES, DJU de 22/11/2000; e 239.115-1, SP, Relator Ministro MARCO AURÉLIO). Em outra oportunidade, examinando lei do Município de Campinas, aquela mais alta Corte Constitucional deixou assentado que: "o fato de a taxa ser calculada com base na metragem do imóvel, um dos elementos do Imposto Predial e Territorial Urbano, não implica inconstitucionalidade ante o disposto no artigo 145, § 2º, da Constituição Federal" (RE n° 232.577-5, SP, Relator Ministro MARCO AURÉLIO). A mesma orientação foi adotada no julgamento do Recurso Extraordinário n° 239.277-7, SP, Relator o Ministro NELSON JOBIM, DJU de 17/11/2000, a respeito da lei do Município de São Paulo. No caso sob exame, a lei municipal fixou a taxa de R$ 120,00, por imóvel, para remunerar os serviços decorrentes do exercício do poder de polícia, consistentes na Fiscalização e Vigilância das normas estabelecidas em função da autorização para o fechamento das vilas ou das ruas sem saída, residenciais, no Município de ÍBIÚNA, a ser paga pelos proprietários dos imóveis beneficiados pelo fechamento (singularidade e individualidade do serviço), nas mesmas condições e números de parcelas do IPTU. É indiscutível que a circunstância de o valor ser pago nas mesmas condições e números de parcelas do IPTU, não implica inconsíitucionalidade ante o disposto no artigo 145, § 2º, da Constituição Federal, e 160, § 2º, da Constituição do Estado.

 

Em apertado resumo, após a leitura atenta do texto da lei chega-se à conclusão que ela autoriza o fechamento de vilas e ruas sem saída, residenciais, bem como o uso de bens públicos de uso comum integrantes do sistema viário interno apenas pelos moradores e visitantes autorizados, mediante a obrigação dos moradores de promoverem sua limpeza, manutenção e conservação, além de permitir a restrição do acesso de estranhos nas áreas objeto de fechamento, a título oneroso, pois impõe o pagamento de preço público, guardando, assim, integral submissão aos comandos superiores da Constituição do Estado de São Paulo, da Constituição da República e das leis pertinentes de maior hierarquia. (g.n.).

(...)“

 

            Não deve causar perplexidade, entretanto, a renovação da impugnação, nesta ação direta.

 

         Não há, na hipótese, o obstáculo da coisa julgada. No v. acórdão proferido quando do julgamento da ADI nº060.079.0/9-00, ficou decidido que a “Taxa de Fiscalização e Vigilância” tinha a natureza de preço público, à luz da redação do dispositivo que a instituíra, ou seja, o art.9º da Lei Municipal nº385/97.

 

         Entretanto, a Lei Municipal nº856/2003, de Ibiúna, deu nova configuração ao parágrafo único do art.9º da Lei Municipal nº385/97, passando a prever que “a cobrança (do mencionado valor) será feita sobre cada um dos imóveis beneficiados, independentemente do fechamento da via pública ter sido requerida por moradores, associações ou provida de ofício pelo Poder Público Municipal”.

 

         Essa modificação alterou de forma substancial a natureza jurídica da aludida imposição financeira.

 

         Tal afirmação decorre da observação de que ao impor a cobrança da “Taxa de Fiscalização e Vigilância” com relação a todos os imóveis beneficiados pelo fechamento das vias públicas, mesmo quando este tiver sido determinado de ofício pelo Poder Público Municipal, operou-se a mudança da natureza jurídica da mencionada “Taxa”: deixou de configurar preço público ou tarifa, passando a figurar como verdadeiro tributo, em função do caráter compulsório da imposição fiscal.

 

         Frise-se: foi afastada a facultatividade que caracterizava a exação como preço público, na medida em que sua cobrança tornou-se impositiva, tomando como “hipótese de incidência” o “fechamento da via pública”, ainda que determinado de ofício pelo Poder Público.

 

         Vale lembrar que a distinção entre taxa e preço público, com base na compulsoriedade da exação, é reconhecida como critério prevalente de diferenciação pela doutrina.

 

         Embora seja notória a dificuldade de estabelecer a diversidade entre taxa e preço público, anota Luciano Amaro que, de todas as elaborações teóricas, “é possível identificar uma linha comum: tem-se procurado dizer que ‘alguns’ serviços (ditos ‘essenciais’, ‘próprios’, ‘inerentes’, indispensáveis’ ou ‘compulsórios’, ou ‘públicos’, em determinado sentido estrito) devem ser taxados, enquanto ‘outros’ serviços’ (sem aqueles qualificativos) podem ser taxados ou tarifados (ou devem ser tarifados)”. Na última hipótese é que se reconhece a figura da tarifa ou preço público (Direito Tributário Brasileiro, 13ªed., São Paulo, Saraiva, 2007, p.43).

 

         A dificuldade de estabelecimento de critérios para a diferenciação entre taxas e preços públicos é sentida também na doutrina estrangeira, havendo respeitável posição, inclusive, no sentido de que caberia ao Poder Público escolher o regime público (taxas) ou privado (preços) para remuneração dos serviços que presta. Confira-se: José Juan Ferreiro Lapatza, Direito Tributário – Teoria Geral do Tributo, São Paulo, edição conjunta Marcial Pons e Manole, 2007, p.176/180.

 

         Entretanto, o entendimento que tem prevalecido parte, de fato, da compulsoriedade na identificação das taxas, e da facultatividade no reconhecimento do preço público. Nesse sentido, confira-se: Hely Lopes Meirelles, Direito Municipal Brasileiro, 6ª ed., 3ª tir., São Paulo, Malheiros, 1993, p.145/146; José Nilo de Castro, Direito Municipal Positivo, 6ªed., Belo Horizonte, Del Rey, 2006, p.240; Roque Antônio Carrazza, Curso de Direito Constitucional Tributário, 4ªed., São Paulo, Malheiros, 1993, p.270 e ss; entre outros.

 

         Diante do quadro, recomendável é adotar-se o posicionamento do E. STF. A Suprema Corte Brasileira identificou na facultatividade da imposição, em síntese, a nota distintiva, reconhecendo-a como principal fundamento para a diferenciação, nos termos do verbete nº545 da súmula de sua jurisprudência dominante, assim vazada:

 

“Súmula nº545: Preços de serviços públicos e taxas não se confundem, porque estas, diferentemente daqueles, são compulsórias e têm sua cobrança condicionada à prévia autorização orçamentária, em relação à lei que às instituiu.”

 

         Ante tal quadro, amparado em respeitável doutrina bem como no posicionamento sumulado pelo E. STF justifica-se, em síntese, reconhecer na hipótese – cobrança compulsória – existência de taxa. Por conseqüência, alterado o panorama normativo com relação ao que existia quando do julgamento da ADI nº060.079.0/9-00 (rel. des. Luiz Tâmbara), torna-se viável novo exame da questão, nessa diferente perspectiva.

 

         A ilegitimidade na autorização de cobrança compulsória da referida “Taxa de Fiscalização e Vigilância” fica patenteada, ademais, por inúmeras razões.

 

         O Poder Público já arrecada impostos e outros tributos para a manutenção de serviços públicos essenciais à população. Some-se a isso que não há amparo constitucional para tal cobrança com relação a proprietários de imóveis que não tenham solicitado o fechamento das vias à Prefeitura, não podendo ser carreado a tais pessoas referido ônus financeiro. Idêntica afirmação é válida quanto aos moradores que não estejam vinculados às Associações que tenham solicitado o fechamento, mormente considerada a garantia constitucional que todos os cidadãos ostentam de não serem compelidos a participar de qualquer entidade associativa, conforme previsto no art.5º XX da CR/88.

 

         Admitida a possibilidade de outorga, pelo Poder Público, de permissão de uso, em favor de particular, a título oneroso, não é viável que desse ajuste surjam deveres e obrigações vinculando terceiros que não tomaram parte do negócio jurídico. É nessa condição que se encontram os moradores de vias públicas fechadas por autorização da Municipalidade, que não solicitaram o fechamento, e sequer são filiados à Associação que solicitou tal providência à Administração Pública.

 

         Acrescente-se que o fechamento de vias públicas é fenômeno que tem ocorrido cada vez com maior freqüência. Tal tendência tem resultado de omissões e deficiências na prestação de serviços públicos essenciais, como segurança, limpeza, conservação de vias e logradouros, entre outros.

 

         Quando moradores, com o pedido de fechamento, assumem tais ônus, o principal beneficiário é o próprio Poder Público, que, além dos tributos já arrecadados, pretende aumentar ainda mais suas receitas, com a imposição da Taxa de Fiscalização e Vigilância.

 

         Admitir o fechamento ex officio pela Administração Pública, com a imposição da “Taxa de Fiscalização e Vigilância” a todos os “beneficiários” (rectius = moradores das vias fechadas ao acesso geral), significa repassar ao particular inúmeras obrigações que são inerentes ao Poder Público, tributando-o duplamente (impostos, mais a Taxa de Fiscalização e Vigilância) sem que os serviços públicos sejam efetivamente prestados.

 

         Não bastassem tais considerações, é necessário recordar que a competência tributária dos Municípios (capacidade constitucionalmente definida de instituir e arrecadar tributos) é limitada pelo que a doutrina especializada denomina “matriz constitucional tributária”, definida no art.160 e ss. da Constituição do Estado de São Paulo (que reproduz, praticamente, o disposto no art.145 e ss. da CR/88).

 

         O sistema constitucional em vigor (Constituição da República e Constituição Estadual) não cria tributos, mas traça a “norma padrão de incidência”, definindo os tributos que podem ser criados por cada um dos entes federativos.

 

         Quando a Constituição conferiu aos entes federativos a competência para instituição de impostos, taxas e contribuições de melhoria, tratou já, nesse passo, de classificar juridicamente os tributos, definindo o modelo de cada um deles, e vinculando o legislador infraconstitucional.

 

         É imprescindível trazer à colação o ensinamento de Roque Antônio Carrazza (Curso de Direito Constitucional Tributário, cit., p.257), no sentido de que:

 

“A Constituição, ao discriminar as competências tributárias, estabeleceu – ainda que, por vezes, de modo implícito e com uma certa margem de liberdade para o legislador – a norma padrão de incidência (o arquétipo genérico, a regra matriz) de cada exação. Noutros termos, ela apontou a hipótese de incidência possível, a base de cálculo possível e a alíquota possível, das várias espécies e subespécies de tributos. Em síntese, o legislador, ao exercitar a competência tributária, deverá ser fiel à norma padrão de incidência do tributo, pré-traçada na Constituição. O legislador (federal, estadual, municipal ou distrital) quando cria o tributo, não pode fugir deste arquétipo constitucional”.

 

            Nosso sistema constitucional não prevê a possibilidade de criação de tributo (imposto ou taxa de serviço ou de polícia) que traga como hipótese de incidência o “fechamento de via pública de ofício pelo Poder Público”, tal como estabelecido na Lei Municipal nº856/2003.

 

         De outro lado, a cobrança de preço público em decorrência da permissão de uso (com utilização quase que exclusiva pelos particulares de determinadas vias públicas, fechadas por autorização da Administração Municipal) depende, necessariamente, de celebração de negócio jurídico entre o Poder Público e os particulares interessados, dispostos a assumir a administração dos referidos bens públicos. Esse negócio jurídico não é apto a vincular terceiros (moradores que não tenham requerido ou concordado com o fechamento das vias).

 

         A Lei Municipal nº856/2003, ao prever a possibilidade de fechamento ex officio de vias públicas, com cobrança compulsória da “Taxa de Fiscalização e Vigilância”, tanto de moradores que não tenham requerido o fechamento, como daqueles que não integrem Associação que tenha solicitado tal providência, transformou o que foi anteriormente reconhecido pelo C. Órgão Especial (quando do julgamento da ADI nº060.079.0/9) como preço público, em taxa (tributo), sem parâmetro constitucional.

 

         Como os preceitos constitucionais relativos ao sistema tributário nacional são princípios estabelecidos, devem ser obrigatoriamente observados pelos Estados e pelos Municípios, nos termos do art.144 e art.160 e seguintes da Constituição do Estado.

 

         O desrespeito, verificado na hipótese em análise, gera vertical incompatibilidade entre o ato normativo e o sistema constitucional.

 

4)Fundamentos da inconstitucionalidade da Lei Municipal nº1240/2007 (art.3º).

 

         De outro lado, os motivos acima consignados, para o reconhecimento da inconstitucionalidade dos dispositivos da Lei Municipal nº856/2003, também se aplicam ao art.3º da Lei Municipal nº1240/2007, pelo qual “Os valores já pagos sob o título de taxa de fiscalização e vigilância não serão devolvidos, considerando a vigência válida das leis ora revogadas até a publicação desta lei”.

 

         É necessário ponderar que, se a norma em exame pretendeu validar cobrança de tributo referente a período pretérito, decorrente de leis anteriores, e esta cobrança pretérita era por si mesma, inconstitucional, a conclusão lógica é no sentido do reconhecimento da inconstitucionalidade do diploma que foi editado com o escopo de validação.

 

         E é de simples compreensão o porquê da edição da Lei Municipal nº1240/2007.

 

         Isso se verificou porque a cobrança do mencionado tributo havia sido suspenso provisoriamente, por força de liminar concedida na ADI nº131.469.0/0, que ao final acabou sendo extinta sem exame do mérito, por perda de objeto (cf. cópia do acórdão, a fls.30/36).

 

         De todo modo, em síntese, se é inconstitucional a instituição do tributo (nos termos da fundamentação constante do item anterior desta inicial), também o é a edição de ato normativo que pretende validar a cobrança que foi realizada em determinado período, no qual a sua exigibilidade fora suspensa por força de decisão judicial.

 

5)Conclusão.

 

         Diante de todo o exposto, aguarda-se o recebimento e processamento da presente ação declaratória, para que ao final seja ela julgada procedente, reconhecendo-se a inconstitucionalidade Leis Municipais nº856, de 14/7/2003 (art.1º, art.2º e art.4º), e nº1240, de 5/3/2007 (art.3º), de Ibiúna.

 

         Requer-se ainda sejam requisitadas informações à Câmara Municipal de Ibiúna, bem como posteriormente citado o Procurador-Geral do Estado para manifestar-se sobre o ato normativo impugnado.

 

         Posteriormente, aguarda-se vista para fins de manifestação final.

 

São Paulo, de 26 de novembro de 2008.

 

 

Fernando Grella Vieira

Procurador-Geral de Justiça