EXCELENTÍSSIMO SENHOR DESEMBARGADOR PRESIDENTE DO E. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

Protocolado nº 124.640/2009

Assunto: Inconstitucionalidade  da Lei Complementar nº 2.116, de 28 de junho de 2006, do Município de Itaberá.

 

Ementa: 1) Lei Complementar nº 2.116, de 28 de junho de 2006, do Município de Itaberá, que ”altera nomenclatura e atribuições de cargos de provimento efetivo do quadro de pessoal do Município e dá outras providências”; 2) Hipóteses de “transposição”; 3) Violação do princípio constitucional do concurso, da acessibilidade de cargos, empregos e funções públicas, da isonomia e da impessoalidade (art. 111, e 115, inc. I e II, da Constituição Paulista); 4) Inconstitucionalidade reconhecida.

 

O Procurador-Geral de Justiça do Estado de São Paulo, no exercício da atribuição prevista no art. 116, inciso VI da Lei Complementar Estadual nº 734, de 26 de novembro de 1993 (Lei Orgânica do Ministério Público de São Paulo), em conformidade com o disposto no art. 125, § 2º e art. 129, inciso IV da Constituição Federal, e ainda art. 74, inciso VI e art. 90, inciso III da Constituição do Estado de São Paulo, com amparo nas informações colhidas no incluso protocolado, vem, respeitosamente, perante esse Egrégio Tribunal de Justiça, promover a presente AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE da Lei Complementar n. 2.116, de 28 de junho de 2006, do Município de Itaberá, que “altera nomenclatura e atribuições de cargos de provimento efetivo do quadro de pessoal do Município e dá outras providências” , pelos fundamentos a seguir expostos.

 

1. DO ATO NORMATIVO IMPUGNADO.

A Lei Complementar nº 2.116, de 28 de junho de 2006, “altera nomenclatura e atribuições de cargos de provimento efetivo do quadro de pessoal do Município e dá outras providências”

 Por ela, foram transformados alguns  dos cargos de provimento efetivo constantes da Lei n. 1.710, de 10 de novembro de 1998, de Itaberá, que “dispõe sobre a criação de cargos de provimento efetivo e em regime de comissão e dá outras providências”.

 Essa “transformação de cargos”, no entanto, ofende frontalmente os seguintes dispositivos da Constituição do Estado de São Paulo: arts. 111, 115, incisos I e II, e 144.

É o que será demonstrado a seguir.

2. FUNDAMENTAÇÃO

Registre-se, inicialmente, que a presente propositura decorre do acolhimento de representação formulada pela Dra. DÉBORA ORSI DUTRA, DD Promotora de Justiça de Itaberá.

A subscritora entendeu que a transformação de cargos operada pela lei em questão, burlou o princípio do concurso público.

Essa situação, de fato, está caracterizada no art. 1º , da Lei n. 2.116, de 28 de junho de 2006 que transformou a nomenclatura de alguns dos cargos de provimento efetivo constantes da Lei Municipal n. 1.710, de 10 de novembro de 1998, a saber:


 

Cargo anterior

Cargo atual

Agente de Saúde

Recepcionista

Agente de Saúde

Atendente de Farmácia

Agente de Saúde

Escriturário

Agente de Saúde

Motorista Transporte de Alunos

Agente de Saúde

Auxiliar de Enfermagem

Agente de Saúde

Agente Comunitário de Saúde

Agente Comunitário de Saúde

Escriturário

Agente Comunitário de Saúde

Auxiliar de Limpeza

Agente Comunitário de Saúde

Recepcionista

Auxiliar Manutenção Pontes

Tratorista

Pedreiro

Tratorista

Recepcionista

Escriturário

Borracheiro

Motorista de Ambulância

Lavador

Auxiliar Mecânico

Fiscal

Caixa

Gari

Merendeira

Servente

Escriturária

Servente

Auxiliar de Odontologia

Servente

Auxiliar de Creche

Ajudante Geral

Escriturário

Ajudante Geral

Telefonista

Ajudante Geral

Motorista

Ajudante Geral

Jardineiro

Ajudante Geral

Lixeiro

Ajudante Geral

Gari

Ajudante Geral

Auxiliar de Administração

Ajudante Geral

Coveiro

Ajudante Geral

Vigia

Ajudante Geral

Merendeira

Ajudante Geral

Servente

Ajudante Geral

Oficial Administrativo

Escriturário

Auxiliar de Enfermagem

Escriturário

Encarregados de Serviços

Monitor em Alimentação

Caixa

Merendeira

Auxiliar de Limpeza

Merendeira

Recepcionista

Telefonista

Auxiliar de Administração

Escriturário

Auxiliar de Administração

Oficial Administrativo

Encarregado de Serviços

Motorista de Transporte de Alunos

Encarregado de Serviços

Caixa

Oficial Administrativo

 

Referida transformação, viola princípios constitucionais que exigem a realização de concurso público para acesso aos cargos e empregos na administração pública, e, por conseqüência, viola também a regra da acessibilidade geral e da isonomia com relação ao provimento de cargos na administração pública, que decorrem dos seguintes dispositivos da Constituição Estadual:

Art. 111. A administração pública direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes do Estado, obedecerá aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, razoabilidade, finalidade, motivação, interesse público e eficiência.

Art.115. Para a organização da administração pública direta e indireta, inclusive as fundações instituídas ou mantidas por qualquer dos Poderes do Estado, é obrigatório o cumprimento das seguintes normas:

I – os cargos, empregos e funções públicas são acessíveis aos brasileiros que preencham os requisitos estabelecidos em lei, assim como os estrangeiros, na forma da lei;

II – a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia, em concurso público de provas ou de provas e títulos, ressalvadas as nomeações para cargo de provimento em comissão, declarado em lei, de livre nomeação e exoneração;

É oportuno recordar que tais dispositivos são reproduções do disposto no art. 37, incisos I e II, da CR/88, sendo todos (os da Constituição Federal e os da Estadual), aplicáveis aos Municípios por força do art. 144 da Constituição Paulista.

Dispensa maiores digressões a afirmação de que a realização de concurso público, para acesso aos cargos, empregos, e funções públicas, é a regra. Ela só admite exceções nas estritas hipóteses previstas na Constituição Federal e Estadual, quais sejam, (a) a nomeação para cargos de provimento em comissão previstos em lei específica de cada ente federativo (nos casos de cargos ou funções de direção, chefia ou assessoramento superior da administração, em que deva prevalecer o vínculo de especial confiança entre o servidor e o agente superior ao qual se vincule), e (b) a contratação temporária, nas hipóteses previstas em lei de cada ente federativo, para atendimento a necessidade temporária de excepcional interesse público (cf. art. 115, incs. II, V e X, da Constituição Paulista; art. 37, incs. I, II e IX, da CR/88).

Diante disso, qualquer dispensa indevida da realização de concurso para fins de ingresso no serviço público, ou mesmo a realização de provimentos a partir de concursos internos, para que servidores ocupem cargos ou empregos situados em carreira distinta, ou finalmente a simples transformação de nomenclatura de cargos ou empregos de integrantes de carreira distinta, são atos que significam, na prática, burla à regra do concurso. Traduzem-se, do mesmo modo, em criação de óbice à acessibilidade de todos os cidadãos aos cargos públicos previstos em lei, e, por conseguinte, violação ao princípio da isonomia. Criam, finalmente, possibilidade de favorecimento, com quebra do princípio da impessoalidade.

Não se pode confundir o caso tratado nestes autos, com situações em que, por lei nova, é conferida nova denominação a cargos públicos, sem que haja mudança de atribuições. Em tais casos, o enquadramento dos antigos titulares, admitidos por concurso público, é feito sem maiores dificuldades ou questionamentos, pois que é admissível a “transposição” do servidor para cargo idêntico, da mesma natureza, em novo sistema de classificação (STF, RTJ 150/26).

Note-se que, para que tal solução seja legítima, é imprescindível que o aproveitamento de ocupantes de cargos extintos nos recém-criados se opere em vista de “completa identidade substancial entre os cargos em exame, além de compatibilidade funcional e remuneratória e equivalência dos requisitos exigidos em concurso” (ADIs 1.591, Rel. Min. Octavio Gallotti, e 2.713, Rel. Min. Ellen Gracie).

Esta situação não se confunde com a hipótese de “transformação”, em que se verifica a alteração do título e das atribuições do cargo, e por isso configura novo provimento, a depender da exigência de concurso público (ADI 266, Rel. Min. Octavio Gallotti, julgamento em 18-6-93, DJ de 6-8-93).

 Vale recordar que o conceito de carreira diz respeito ao “agrupamento de classes da mesma profissão ou atividade, escalonadas segundo a hierarquia do serviço, para acesso privativo dos titulares dos cargos que a integram, mediante provimento originário” (cf. Hely Lopes Meirelles, Direito Administrativo Brasileiro, 34ª. ed., São Paulo, Malheiros, 2008, p. 424). No mesmo sentido: Edmir Netto de Araújo, Curso de Direito Administrativo, São Paulo, 2005.

Natural assim a evolução funcional, que deve ocorrer, dentro de uma mesma carreira, de um cargo ou emprego situado em plano inferior, para outro localizado em patamar superior.

Diversa, entretanto, é a hipótese em exame, pois aqui, o que se verifica, é a burla, de forma indireta, do princípio do concurso público e de seus corolários lógicos.

Nosso sistema constitucional consagrou o livre acesso aos cargos, empregos e funções públicas, na forma prevista em lei, e a submissão prévia a concurso público, ressalvadas, evidentemente, as nomeações para cargos em comissão. Na definição de Adilson Abreu Dallari, concurso público é “um procedimento administrativo aberto a todo e qualquer interessado que preencha os requisitos estabelecidos em lei, destinado à seleção de pessoal, mediante a aferição do conhecimento, da aptidão e da experiência dos candidatos, por critérios objetivos, previamente estabelecidos no edital de abertura, de maneira a possibilitar uma classificação de todos os aprovados” (Regime Constitucional dos Servidores Públicos, 2ª ed., São Paulo, RT, 1992, p. 36, apud Celso Ribeiro Bastos, Comentários à Constituição do Brasil, 3º vol., t. III, São Paulo, Saraiva, 1992, p. 67).

 É por meio do concurso que se resguarda “a aplicação do princípio da igualdade de todos (CF., art. 37, I) e, ao mesmo tempo, o interesse da Administração em admitir somente os melhores” (Celso Ribeiro Bastos, op. cit., p. 66), afastando-se “os ineptos e apaniguados, que costumam abarrotar as repartições públicas, num espetáculo degradante de protecionismo e falta de escrúpulos de políticos que se alçam e se mantêm no poder, leiloando empregos públicos” (Hely Lopes Meirelles, Direito Administrativo Brasileiro, 34ª ed., São Paulo, RT, 2008, p. 440/441).

Acrescente-se, ademais, que a existência de formas de provimento derivadas “de modo algum significa abertura para costear se o sentido próprio do concurso público. Como este é sempre específico para dado cargo, encartado em carreira certa, quem nele se investiu não pode depois, sem novo concurso público, ser trasladado para cargo de natureza diversa ou de outra carreira melhor retribuída ou de encargos mais nobres e elevados. O nefando expediente a que se alude foi algumas vezes adotado, no passado, sob a escusa de corrigir desvio de funções ou com arrimo na nomenclatura esdrúxula de ‘transposição de cargos’. Corresponde a uma burla manifesta do concurso público. É que permite a candidatos que ultrapassaram apenas concursos singelos, destinados a cargos de modesta expressão – e que se qualificaram tão somente para eles – venham a aceder, depois de aí investidos, a cargos outros, para cujo ingresso se demandaria sucesso em concursos de dificuldades muito maiores, disputados por concorrentes de qualificação bem mais elevada” (Celso Antônio Bandeira de Mello, Regime Constitucional dos Servidores da Administração Direta e Indireta, São Paulo, RT, 1995, p. 55).

Não se nega, observe-se, a possibilidade de aprimoramento na organização administrativa de determinado ente federativo, e tampouco a reestruturação do respectivo quadro de cargos, empregos e funções. Tal possibilidade é ínsita à própria autonomia de cada ente federativo, e em especial dos Municípios (art. 29, 30, inc. I, da CR/88).

Também não se refuta a possibilidade de enquadramento de servidores, já integrantes da administração, nos casos de extinção ou transformação de cargos, empregos e funções, desde que idênticas as atribuições do novo cargo, e idênticos os requisitos ou condições exigidos dos candidatos ao seu provimento. Contudo, como anota Hely Lopes Meirelles, “se a transformação implicar alteração do título e das atribuições do cargo, configura novo provimento, que exige concurso público” (Direito Administrativo Brasileiro, cit., p. 427).

É oportuno averbar que no STF a matéria é pacífica. Encontra-se sedimentada no verbete nº 685 da súmula da jurisprudência dominante da Corte, com a seguinte dicção:

É inconstitucional toda modalidade de provimento que propicie ao servidor investir-se, sem prévia aprovação em concurso público destinado ao seu provimento, em cargo que não integra a carreira na qual anteriormente investido. (SÚM. 685).

Há diversos precedentes do STF que, sob vários aspectos e em situações diferentes, confirmam que nosso sistema constitucional não transige com a regra do concurso público. Assim, como quando a Corte veda a ascensão e a transferência, que são formas de ingresso em carreira diversa daquela para a qual o servidor público ingressou por concurso (ADI 231, Rel. Min. Moreira Alves, julgamento em 5-8-92, DJ de 13-11-92; ADI 3.582, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgamento em 1º-8-07, DJ de 17-8-07); ou ao proibir o mero enquadramento de prestadores de serviço (ADI 3.434-MC, voto do Min. Joaquim Barbosa, julgamento em 23-8-06, DJ de 28-9-07); ou mesmo ao vedar o enquadramento de servidores que exerçam determinadas funções, em cargos que integram carreira distinta, ainda que com período prévio de reciclagem (ADI 388, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgamento em 20-9-07, DJ de 19-10-07; ADI 3.442, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgamento em 7-11-07, DJ de 7-12-07).

Relevante notar, do mesmo modo, que a exigência de concurso público para a investidura em cargo assegura, entre outras coisas, o respeito aos princípios da impessoalidade e o da isonomia. A estabilidade constitucional anômala e transitória prevista no art. 19 do ADCT-CR/88, aplicável aos servidores não concursados que, quando da promulgação da Carta Federal, contassem com, no mínimo, cinco anos ininterruptos de serviço público, tem sido interpretada restritivamente. O STF tem, reiteradamente, afirmado a inconstitucionalidade de normas estaduais que ampliam a exceção à regra da exigência de concurso para o ingresso no serviço: ADI 498, Rel. Min. Carlos Velloso (DJ de 9-8-1996); ADI 208, Rel. Min. Moreira Alves (DJ de 19-12-2002); ADI 100, Rel. Min. Ellen Gracie, julgamento em 9-9-04, DJ de 1º-10-04; ADI 88, Rel. Min. Moreira Alves, julgamento em 11-5-00, DJ de 8-9-00; ADI 289, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgamento em 9-2-07, DJ de 16-3-07; ADI 125, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgamento em 9-2-07, DJ de 27-4-07.   

3. CONCLUSÃO E PEDIDO.

Por todo o exposto, evidencia-se a necessidade de reconhecimento da inconstitucionalidade da norma aqui apontada.

Assim, aguarda-se o recebimento e processamento da presente Ação Declaratória, para que ao final seja julgada procedente, reconhecendo-se a inconstitucionalidade da Lei Complementar n. 2.116, de 28 de junho de 2006, do Município de Itaberá que “altera nomenclatura e atribuições de cargos de provimento efetivo do quadro de pessoal do Município e dá outras providências”, do que decorrerá a disponibilidade dos servidores nominados para os novos cargos, até que cargos equivalentes àqueles que ocupavam sejam recriados.

Requer-se ainda sejam requisitadas informações à Câmara Municipal e ao Prefeito Municipal, bem como posteriormente citado o Procurador-Geral do Estado para se manifestar sobre o ato normativo impugnado.

Posteriormente, aguarda-se vista para fins de manifestação final.

São Paulo, 04 de março de 2010.

 

José Luiz Abrantes

Procurador-Geral de Justiça

-   em exercício -

vlcb


Protocolado nº 124.640/2009

Interessado:  Promotoria de Justiça de Itaberá

Assunto: Inconstitucionalidade da Lei Complementar nº 2.116, de 28 de junho de 2006, do Município de Itaberá.

 

 

 

 

 

 

 

1.    Distribua-se a petição inicial da ação direta de inconstitucionalidade, em face de dispositivos da Lei Complementar nº 2.116, de 28 de junho de 2006, do Município de Itaberá, junto ao Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

2.    Oficie-se ao interessado, informando-lhe a propositura da ação, com cópia da petição inicial.

 

                    São Paulo, 04 de março de 2010.

 

 

 

 

José Luiz Abrantes

Procurador-Geral de Justiça

-   em exercício -

vlcb