EXCELENTÍSSIMO SENHOR DESEMBARGADOR PRESIDENTE DO E. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

 

Protocolado n. 129.193/08

Assunto: Inconstitucionalidade do § 24 do art. 108 da Lei Orgânica do Município de Catanduva

 

Ementa: 1. § 24 do art. 108 da Lei Orgânica do Município de Catanduva; 2. Inconstitucionalidade da expressão ‘a qualquer título’ constante do mencionado dispositivo legal, que permite a incorporação de décimos da diferença entre a remuneração do cargo de que seja titular e a do cargo ou função que venha a exercer o servidor público; 3. A generalização ofende o princípio democrático, que rege o acesso aos cargos públicos, e o princípio da moralidade administrativa; 4. Violação dos arts. 111, 115, II, 133 e 144, da Constituição do Estado de São Paulo; 4. Ação direta ajuizada.

 

O Procurador-Geral de Justiça do Estado de São Paulo, no exercício da atribuição prevista no art. 116, inciso VI da Lei Complementar Estadual nº 734, de 26 de novembro de 1993 (Lei Orgânica do Ministério Público de São Paulo), em conformidade com o disposto no art.125, § 2º e art. 129, inciso IV da Constituição Federal, e ainda art. 74, inciso VI e art. 90, inciso III da Constituição do Estado de São Paulo, com amparo nas informações colhidas no incluso protocolado (PT n. 129.193/08), vem, respeitosamente, perante esse Egrégio Tribunal de Justiça, promover a presente AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE, com pedido de liminar, em face do § 24 do art. 108 da Lei Orgânica do Município de Catanduva, pelos fundamentos a seguir expostos.

DO ATO NORMATIVO IMPUGNADO

O dispositivo legal impugnado, isto é, o § 24 do art. 108 da Lei Orgânica do Município de Catanduva, está assim redigido:

“§ 24 - O servidor, com mais de cinco anos de efetivo exercício, que tenha exercido ou venha a exercer a qualquer título, cargo ou função que lhes proporcione remuneração superior à do cargo de que seja titular, ou função para a qual foi admitido, incorporará um décimo dessa diferença, por ano, até o limite de dez décimos”.

Esse dispositivo atende a estabilidade financeira como decorrência do princípio da irredutibilidade de vencimentos. Mas, sua redação ampla e indistinta, revelada pela expressão “a qualquer título” aninha em seu raio de ação situações como o desvio de função, permitindo que um servidor público, mesmo que investido em um determinado cargo, possa amealhar remuneração de outro (isolado ou de diferente carreira), sem submissão ao prévio concurso público, de maneira a, indiretamente, nele investi-lo já que absorve e incorpora a diferença de estipêndio.

Por essa razão, a expressão “a qualquer título” contida no dispositivo legal impugnado, ofende o inciso II do art. 115 da Constituição do Estado de São Paulo (que reproduz o art. 37, II, da Constituição Federal), aplicável aos Municípios por conta de seu art. 144, in verbis:

“Artigo 115 - Para a organização da administração pública direta e indireta, inclusive as fundações instituídas ou mantidas por qualquer dos Poderes do Estado, é obrigatório o cumprimento das seguintes normas:

(...)

II - a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia, em concurso público de provas ou de provas e títulos, ressalvadas as nomeações para cargo em comissões, declarado em lei, de livre nomeação e exoneração”.

Neste sentido, dispositivo análogo da Constituição Paulista foi julgado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal em venerando acórdão cuja ementa é adiante transcrita:

“CONCURSO PÚBLICO. RESSALVA. NOMEAÇÃO PARA CARGO EM COMISSÃO. DÉCIMOS DA DIFERENÇA ENTRE REMUNERAÇÃO DO CARGO DE QUE SEJA TITULAR O SERVIDOR E DO CARGO EM FUNÇÃO OCUPADO. INCONSTITUCIONALIDADE. 1. A Constituição Federal prevê, em seu art. 37, II, in fine, a ressalva à possibilidade de ‘nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação’, como exceção à exigência de concurso público. Inconstitucional o permissivo constitucional estadual apenas na parte em que permite a incorporação ‘a qualquer título’ de décimos da diferença entre a remuneração do cargo de que seja titular e a do cargo ou função que venha a exercer. A generalização ofende o princípio democrático que rege o acesso aos cargos públicos. 2. Ao Supremo Tribunal Federal, como guardião maior da Constituição, incumbe declarar a inconstitucionalidade de lei, sempre que esta se verificar, ainda que ex officio, em razão do controle difuso, independente de pedido expresso da parte. 3. O Ministério Público atuou, no caso concreto. Não há vício de procedimento sustentado. 4. Embargos da Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo e do Estado de São Paulo acolhidos em parte, para limitar a declaração de inconstitucionalidade dos art. 133 da Constituição e 19 do se ADCT, tão só, à expressão, ‘a qualquer título’, constante do primeiro dispositivo. Rejeitados, os do servidor, por não demonstrada a existência da alegada omissão e por seu manifesto propósito infringente” (STF, RE-ED 219.934-SP, Tribunal Pleno, Rel. Min. Ellen Gracie, 13-10-2004, v.u., DJ 26-11-2004, p. 06, RTJ 192/722, RT 835/151).

A motivação do venerando acórdão é apropriada como exposição da causa petendi desta demanda, in verbis:

“A questão fundamental posta é, entretanto, a compatibilização do instituto da estabilidade financeira, em decorrência da nomeação para cargo em comissão com a norma contida no artigo 37, II, da Constituição Federal.

Penso, não haver dúvida quanto ao fato de o instituto da estabilidade financeira ser compatível com o sistema constitucional em vigor.

O Ministro relator também assim entendeu, quando afirmou em seu voto (fls. 201):

‘Quanto ao mais, o eminente Ministro Marco Aurélio bem considerou esse caso como sendo de estabilidade financeira, e realmente assim pode ser tachado. Não é, porém, aquela estabilidade financeira usual, que decorre da situação perfeitamente regular de um funcionário efetivo exercer um cargo em comissão e dar-se a estabilidade financeira em virtude dessa legítima razão. Mas, no caso, trata-se de um funcionário efetivo, desviado de função para o exercício de outro cargo efetivo mais elevado e, incorporados os vencimentos desse segundo cargo, concedeu-se a ele, não nominalmente, um outro cargo, mas aquilo que constitui um dos mais importantes atributos da conceituação do cargo público, que são os vencimentos a este atribuídos’ (grifei)

O que deve ser analisado, nestes embargos, porém, é se a situação ilegal do servidor, desviado de sua função, que recebia vencimentos de cargo, não comissionado, diferente daquele para o qual tinha prestado concurso, justifica ou não, a declaração de inconstitucionalidade do artigo 133 da Constituição do Estado de São Paulo e do artigo 19 do seu Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, em face do artigo 37, II, da Constituição Federal.

(...)

A propósito, assim dirimiu a questão, no seu voto vencedor, o Ministro Gallotti:

‘A situação concreta em exame não se traduz formalmente – é certo – na investidura em novo cargo, mas significa o reconhecimento de atributo essencial a ele inerente, qual seja o da sua remuneração.

Permitir a sua percepção, apenas por não se fazer acompanhar de mudança na denominação do cargo, seria, segundo penso, esvaziar o mandamento do art. 37, II, da Constituição, comprometendo-lhe, desenganadamente, a substância.’ (fl. 194)

(...)

Inconstitucional, seria o permissivo constitucional estadual apenas na parte em que permite a incorporação ‘a qualquer título’ porque este ‘a qualquer título’ é que abrangeria situações como a dos autos, em que o servidor, que tenha prestado concurso para um cargo venha a receber proventos próprios ou até mesmo a denominação de cargo diferente, para o qual se exija outro concurso”.

Tal como naquela sede, nesta merece prestígio, sob o pálio do art. 115, II, da Constituição do Estado de São Paulo, entendimento que reconheça a inconstitucionalidade da expressão “a qualquer título” contida no dispositivo legal impugnado.

Além disso, o preceito legal enfocado incentiva e estimula práticas administrativas, como o desvio de função, que não se compatibilizam a ética e a probidade nas relações do poder público, favorecendo apaniguados na obtenção de remuneração maior a que fazem jus como expressão do regime jurídico de seus cargos, desde que escolhidos por critérios subjetivos por seus superiores para o exercício de função diversa do cargo público nos quais investidos.

Com a previsão de incorporação de fração da diferença de vencimentos, abre-se a oportunidade da instauração de relações distanciadas do interesse público criando situações absolutamente imorais de favorecimento, abrigadas pela expressão “a qualquer título”. Em suma, proporciona o uso da necessidade do serviço público e dos recursos do erário para melhorias estipendiais oblíquas.

Por essa razão, denota-se a clara incompatibilidade e a manifesta violação da expressão “a qualquer título” contida no § 24 do art. 24 da Lei Orgânica do Município de Catanduva com o art. 111, caput, da Constituição do Estado de São Paulo (aplicável aos Municípios por força de seu art. 144 e reproduzindo o art. 37, caput, da Constituição Federal) que inscreve a moralidade como princípio constitucional da administração pública, in verbis:

“Artigo 111 – A administração pública direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes do Estado, obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, razoabilidade, finalidade, motivação, interesse público e eficiência”. 

Ademais, a expressão “a qualquer título” agride o art. 133 da Constituição do Estado de São Paulo, aplicável aos Municípios por obra de seu art. 144, cuja atual redação assim expressa:

“Artigo 133 - O servidor, com mais de cinco anos de efetivo exercício, que tenha exercido ou venha a exercer cargo ou função que lhe proporcione remuneração superior à do cargo de que seja titular, ou função para a qual foi admitido, incorporará um décimo dessa diferença, por ano, até o limite de dez”.

Com efeito, o parâmetro da inconstitucionalidade é a norma em vigor e a anterior redação desse art. 133 da Constituição Estadual também continha a expressão “a qualquer título”.

Entretanto, em face do julgamento do Supremo Tribunal Federal, acima relatado, essa expressão teve sua execução suspensa com a edição da Resolução n. 51, de 13 de julho de 2005, do Senado Federal.

Destarte, em face da atual expressão do art. 133 da Carta Política Paulista, o § 24 do art. 108 da Lei Orgânica de Catanduva é verticalmente incompatível e, portanto, inconstitucional.

DA LIMINAR

Demonstrada quantum satis a inconstitucionalidade, por ofensa aos arts. 111, 115, II, 133 e 144, da Constituição Estadual, é promovida a presente ação, requerendo a concessão de medida liminar.

Em se tratando do controle normativo abstrato, uma vez verificada a cumulativa satisfação dos requisitos legais concernentes ao fumus boni iuris e ao periculum in mora.

O poder geral de cautela autoriza a suspensão da eficácia da expressão “a qualquer título” contida no § 24 do art. 108 da Lei Orgânica de Catanduva, até o final julgamento da respectiva ação direta de inconstitucionalidade, diante da plausibilidade jurídica da tese exposta na inicial e do delineamento da situação do risco irreparável consistente no pagamento de vencimentos ou proventos indevidos porque inconstitucionalmente atribuídos, de modo a gravar ilicitamente o erário.

Face ao exposto, requer:

a) a concessão de liminar suspendendo a eficácia da expressão “a qualquer título” contida no § 24 do art. 108 da Lei Orgânica de Catanduva até final julgamento da lide e o processamento do feito observando as prescrições legais e regulamentares;

b) a colheita das informações necessárias dos Excelentíssimos Senhores Prefeito e Presidente da Câmara Municipal de Catanduva, sobre as quais protesta por manifestação oportuna;

c) a oitiva do douto Procurador-Geral do Estado, nos termos do art. 90, § 2º, da Constituição Estadual;

d) ao final, seja julgada procedente a presente ação, declarando-se a inconstitucionalidade da expressão “a qualquer título” contida no § 24 do art. 108 da Lei Orgânica de Catanduva.

São Paulo, 10 de março de 2009.

 

Fernando Grella Vieira

Procurador-Geral de Justiça

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Protocolado PGJ nº 129.193/08

Interessado: Promotoria de Justiça de Catanduva

Assunto:  Inconstitucionalidade do § 24 do art. 108 da Lei Orgânica do Município de Catanduva.

 

1. Distribua-se a petição inicial da ação direta de inconstitucionalidade, em face do § 24 da Lei Orgânica do Município de Catanduva, junto ao Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

2. Oficie-se ao interessado, informando-lhe a propositura da ação, com cópia da petição inicial.

São Paulo, 10 de março de 2009.

 

Fernando Grella Vieira

Procurador-Geral de Justiça

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