EXCELENTÍSSIMO SENHOR DESEMBARGADOR PRESIDENTE DO E. TRIBUNAL DE
JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
Protocolado nº 130.605/2009
Assunto: Inconstitucionalidade do art. 37, I e parágrafo único, da Lei Complementar Municipal nº 186, de 18 de abril de 1996, de Jundiaí.
Ementa:
1) Ação
direta de inconstitucionalidade. Art. 37, I e parágrafo único, da Lei
Complementar Municipal nº 186, de 18 de abril de 1996. Enquadramento de
servidores com possibilidade de violação da regra do concurso público.
2) Violação dos princípios
constitucionais do concurso, da isonomia, da acessibilidade geral ao serviço
público e da impessoalidade (art. 111 e 115, I e II da CE; art. 37 caput e
incisos I e II da CR/88).
O
Procurador-Geral de Justiça do Estado de São Paulo, no exercício da atribuição
prevista no art. 116, inciso VI, da Lei Complementar Estadual nº 734 de 26 de
novembro de 1993, e em conformidade com o disposto no art. 125, § 2º, e art. 129,
inciso IV, da Constituição da República, e ainda art. 74, inciso VI, e art. 90,
inciso III da Constituição do Estado de São Paulo, com amparo nas informações
colhidas no incluso protocolado (PGJ nº 130.605/2009, que segue como anexo), vem
perante esse Egrégio Tribunal de Justiça promover a presente AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE do
art. 37, I e parágrafo único, da Lei
Complementar Municipal nº 186, de 18 de abril de 1996, de Jundiaí, pelos fundamentos expostos a seguir.
1)Dispositivo impugnado.
Cumpre
anotar inicialmente que o protocolado nº 130.605/2009 (que segue como anexo a
esta inicial) foi instaurado por força de representação formulada pelo DD. 11º Promotor de Justiça de Jundiaí
(fls. 2/4).
A Lei Complementar Municipal nº 186, de 18 de
abril de 1996, conforme respectiva rubrica “reestrutura os cargos e empregos públicos do Departamento de Águas e
Esgotos – DAE e fixa a composição de seu Conselho Deliberativo” (fls. 5/35
do PT. nº 130.605/2009).
Ocorre
que o art. 37 do mencionado diploma, já nas disposições finais da lei, tem a
seguinte redação, com destaque (negrito)
para as expressões incompatíveis com nossa sistemática constitucional:
“(...)
Artigo 37 – No processo de enquadramento serão considerados os seguintes fatores:
I – atribuições realmente
desempenhadas pelo servidor do Departamento de Águas e Esgotos – DAE;
II – nível salarial do cargo ou emprego ocupado pelo servidor;
III – experiência específica;
IV – grau de escolaridade;
V – habilitação legal para o exercício da profissão regulamentada.
Parágrafo único – O requisito a que se refere o inciso IV deste artigo será dispensado para atender unicamente a situações de fato pré-existentes à data da vigência desta Lei Complementar.”
Ocorre que a possibilidade de, no processo de enquadramento dos servidores na nova estrutura administrativa, serem consideradas as “atribuições realmente desempenhadas pelo servidor do Departamento de Águas e Esgotos – DAE”; bem como a possibilidade, nos termos do parágrafo único do art. 37, de dispensa do requisito de escolaridade para “atender a situações de fato pré-existentes”, efetivamente geram a “transposição” e consequentemente violação à regra constitucional do acesso aos cargos e empregos mediante concurso público.
2)Fundamentação: Violação do princípio do concurso público, da acessibilidade
geral, da isonomia e da impessoalidade.
Os
dispositivos transcritos violam princípios constitucionais que exigem a
realização de concurso público para acesso aos cargos e empregos na
administração pública, e, por conseqüência, violam também a regra da
acessibilidade geral e da isonomia com relação ao provimento de cargos na
administração pública, que decorrem dos seguintes dispositivos da Constituição
Estadual:
“(...)
Art.111. A administração pública direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes do Estado, obedecerá aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, razoabilidade, finalidade, motivação, interesse público e eficiência.
Art.115. Para a organização da administração pública direta e indireta, inclusive as fundações instituídas ou mantidas por qualquer dos Poderes do Estado, é obrigatório o cumprimento das seguintes normas:
I – os cargos, empregos e funções públicas são acessíveis aos brasileiros que preencham os requisitos estabelecidos em lei, assim como os estrangeiros, na forma da lei;
II – a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia, em concurso público de provas ou de provas e títulos, ressalvadas as nomeações para cargo de provimento em comissão, declarado em lei, de livre nomeação e exoneração; (...)
É oportuno recordar que tais dispositivos são reproduções do disposto no art. 37, I e II da CR/88, sendo todos (os da Constituição Federal e os da Estadual), aplicáveis aos Municípios por força do art.144 da Constituição Paulista.
Dispensa
maiores digressões a afirmação de que a realização de concurso público, para
acesso aos cargos, empregos, e funções públicas, é a regra. Ela só admite
exceções nas estritas hipóteses previstas na Constituição Federal e Estadual,
quais sejam, (a) a nomeação para cargos de provimento em comissão previstos em
lei específica de cada ente federativo (nos casos de cargos ou funções de
direção, chefia ou assessoramento superior da administração, em que deva
prevalecer o vínculo de especial confiança entre o servidor e o agente superior
ao qual se vincule), e (b) a contratação temporária, nas hipóteses previstas em
lei de cada ente federativo, para atendimento a necessidade temporária de
excepcional interesse público (cf. art. 115 II, V e X da Constituição Paulista; art. 37 I, II e
IX da CR/88).
Diante
disso, qualquer dispensa indevida da realização de concurso para fins de
ingresso no serviço público, ou mesmo a realização de provimentos a partir de
concursos internos, para que servidores ocupem cargos ou empregos situados em
carreira distinta, ou finalmente o simples aproveitamento de servidores em
cargos ou empregos integrantes de carreira distinta, são atos que significam,
na prática, burla à regra do concurso. Traduzem-se, do mesmo modo, em criação
de óbice à acessibilidade de todos os cidadãos aos cargos públicos previstos em
lei, e, por conseguinte, violação ao princípio da isonomia. Criam, finalmente,
possibilidade de favorecimento, com quebra do princípio da impessoalidade.
No
caso em exame o dispositivo impugnado nesta inicial permite que, no Município
de Jundiaí, em função da nova estrutura administrativa e de carreira dos
servidores do Departamento de Água e Esgotos – DAE, no processo de
enquadramento sejam levadas em conta as funções realmente desempenhadas pelo
servidor, bem como dispensado o requisito de escolaridade, para atender a
situações de fato existentes quando da edição do ato normativo.
Em
outras palavras, se determinado servidor prestou concurso para certo cargo, mas
encontrava-se, quando da edição da Lei Complementar nº 186/96, exercendo
funções referentes a cargo distinto, ainda que atinentes a grau de escolaridade
superior (o denominado “desvio de função”), por força do art. 37, I, e
parágrafo único da referida lei foi autorizado seu “enquadramento” no cargo de nível superior, ou mesmo de carreira distinta.
Esse
permissivo legal, destinado à acomodação de situações de fato pré-existentes,
representa evidente burla aos princípios da isonomia, da acessibilidade geral,
do concurso e da impessoalidade, que devem nortear o provimento de cargos no
âmbito da Administração Pública.
Não
se pode confundir o caso tratado nestes autos com situações em que, por lei
nova, é conferida nova denominação a cargos públicos, sem que haja mudança de
atribuições. Em tais casos, o enquadramento dos antigos titulares, admitidos
por concurso público, é feito sem maiores dificuldades ou questionamentos, pois
que é admissível a inserção do servidor em cargo idêntico, da mesma natureza,
em novo sistema de classificação (STF, RTJ 150/26).
Nesses
casos, nada obstante a alteração da denominação do cargo ou emprego público,
não se altera a situação funcional do servidor, que continua posicionado no
mesmo contexto dentro da carreira na qual ingressou por força de concurso.
Em
outros termos, para que tal solução seja legítima, é imprescindível que o
aproveitamento de ocupantes de cargos extintos nos recém-criados se opere em
vista de “completa identidade substancial entre os cargos em exame, além de
compatibilidade funcional e remuneratória e equivalência dos requisitos
exigidos em concurso” (ADIs 1.591, Rel. Min. Octavio Gallotti, e 2.713, Rel.
Min. Ellen Gracie).
Esta
situação não se confunde com a hipótese de “transformação”, em que se verifica
a alteração do título e das atribuições do cargo, e por isso configura novo
provimento, a depender da exigência de concurso público (ADI 266, Rel. Min.
Octavio Gallotti, julgamento em 18-6-93, DJ de 6-8-93).
Vale
recordar que o conceito de carreira diz respeito ao “agrupamento de classes da mesma profissão ou atividade, escalonadas
segundo a hierarquia do serviço, para acesso privativo dos titulares dos cargos
que a integram, mediante provimento originário” (cf. Hely Lopes Meirelles, Direito Administrativo Brasileiro, 34
ed., São Paulo, Malheiros, 2008, p. 424). No mesmo sentido Edmir Netto de
Araújo, Curso de Direito Administrativo,
São Paulo, 2005.
Natural
assim a evolução funcional, que deve ocorrer, dentro de uma mesma carreira, de
um cargo ou emprego situado em plano inferior, para outro localizado em patamar
superior.
Diversa,
entretanto, é a hipótese em exame, pois aqui, o que se verifica, é a burla, de
forma indireta, do princípio do concurso público e de seus corolários lógicos.
Nosso
sistema constitucional consagrou o livre acesso aos cargos, empregos e funções
públicas, na forma prevista em lei, e a submissão prévia a concurso público,
ressalvadas, evidentemente, as nomeações para cargos em comissão.
Na
definição de Adilson Abreu Dallari, concurso público é “um procedimento administrativo aberto a todo e qualquer interessado que
preencha os requisitos estabelecidos em lei, destinado à seleção de pessoal,
mediante a aferição do conhecimento, da aptidão e da experiência dos
candidatos, por critérios objetivos, previamente estabelecidos no edital de
abertura, de maneira a possibilitar uma classificação de todos os aprovados”
(Regime Constitucional dos Servidores
Públicos, 2. ed., São Paulo, RT, 1992, p. 36, apud Celso Ribeiro Bastos, Comentários à Constituição do Brasil, 3º
vol., T. III, São Paulo, Saraiva, 1992, p. 67).
É
por meio do concurso que se resguarda “a
aplicação do princípio da igualdade de todos (CF., art. 37, I) e, ao mesmo
tempo, o interesse da Administração em admitir somente os melhores” (Celso
Ribeiro Bastos, op. cit., p. 66), afastando-se “os ineptos e apaniguados, que costumam abarrotar as repartições
públicas, num espetáculo degradante de protecionismo e falta de escrúpulos de
políticos que se alçam e se mantêm no poder, leiloando empregos públicos”
(Hely Lopes Meirelles, Direito
Administrativo Brasileiro, 34. ed., São Paulo, RT, 2008, p. 440/441).
Acrescente-se,
ademais, que a existência de formas de provimento derivado “de modo algum significa abertura para
costear se o sentido próprio do concurso público. Como este é sempre específico
para dado cargo, encartado em carreira certa, quem nele se investiu não pode
depois, sem novo concurso público, ser trasladado para cargo de natureza
diversa ou de outra carreira melhor retribuída ou de encargos mais nobres e
elevados. O nefando expediente a que se alude foi algumas vezes adotado, no
passado, sob a escusa de corrigir desvio de funções ou com arrimo na
nomenclatura esdrúxula de ‘transposição de cargos’. Corresponde a uma burla
manifesta do concurso público. É que permite a candidatos que ultrapassaram
apenas concursos singelos, destinados a cargos de modesta expressão – e que se
qualificaram tão somente para eles – venham a aceder, depois de aí investidos,
a cargos outros, para cujo ingresso se demandaria sucesso em concursos de
dificuldades muito maiores, disputados por concorrentes de qualificação bem
mais elevada” (Celso Antônio Bandeira de Mello, Regime Constitucional dos Servidores da Administração Direta e Indireta,
São Paulo, RT, 1995, p. 55).
Não
se nega, observe-se, a possibilidade de aprimoramento na organização administrativa
de determinado ente federativo, e tampouco a reestruturação do respectivo
quadro de cargos, empregos e funções. Tal possibilidade é ínsita à própria
autonomia de cada ente federativo, e em especial dos Municípios (art. 29, 30, I
da CR/88).
Também
não se refuta a possibilidade de enquadramento de servidores, já integrantes da
administração, nos casos de extinção ou transformação de cargos, empregos e
funções, desde que idênticas as
atribuições do novo cargo, e idênticos
os requisitos ou condições exigidos dos candidatos ao seu provimento.
Contudo,
como anota Hely Lopes Meirelles, “se a
transformação implicar alteração do título e das atribuições do cargo,
configura novo provimento, que exige concurso público” (Direito Administrativo Brasileiro, cit.,p.
427).
É
oportuno averbar que no E. STF a matéria é pacífica. Encontra-se sedimentada no
verbete nº 685 da súmula da jurisprudência dominante da Corte, com a seguinte
dicção:
"É inconstitucional toda modalidade de provimento que propicie ao servidor investir-se, sem prévia aprovação em concurso público destinado ao seu provimento, em cargo que não integra a carreira na qual anteriormente investido." (SÚM. 685).
Há diversos precedentes do E. STF que, sob vários aspectos e em situações diferentes, confirmam afirmação de que nosso sistema constitucional não transige com a regra do concurso público. Assim, como quando a Corte veda a ascensão e a transferência, que são formas de ingresso em carreira diversa daquela para a qual o servidor público ingressou por concurso (ADI 231, Rel. Min. Moreira Alves, julgamento em 5-8-92, DJ de 13-11-92; ADI 3.582, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgamento em 1º-8-07, DJ de 17-8-07); ou ao proibir o mero enquadramento de prestadores de serviço (ADI 3.434-MC, voto do Min. Joaquim Barbosa, julgamento em 23-8-06, DJ de 28-9-07); ou mesmo ao vedar o enquadramento de servidores que exerçam determinadas funções, em cargos que integram carreira distinta, ainda que com período prévio de reciclagem (ADI 388, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgamento em 20-9-07, DJ de 19-10-07; ADI 3.442, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgamento em 7-11-07, DJ de 7-12-07; ADI 3.857/CE, rel. Min. Ricardo Lewandowski, j. 18/12/2008).
Relevante
notar, do mesmo modo, que a exigência de concurso público para a investidura em
cargo assegura, entre outras coisas, o respeito aos princípios da impessoalidade
e o da isonomia.
Também
por isso que a estabilidade constitucional anômala e transitória prevista no
art. 19 do ADCT-CR/88 (aplicável aos servidores não concursados que, quando da
promulgação da Carta Federal, contassem com, no mínimo, cinco anos
ininterruptos de serviço público) tem sido interpretada restritivamente.
O
E. STF tem reiteradamente afirmado a inconstitucionalidade de normas estaduais
que ampliam a exceção à regra da exigência de concurso para o ingresso no
serviço: ADI 498, Rel. Min. Carlos Velloso (DJ de 9-8-1996); ADI 208, Rel. Min.
Moreira Alves (DJ de 19-12-2002); ADI 100, Rel. Min. Ellen Gracie, julgamento
em 9-9-04, DJ de 1º-10-04; ADI 88, Rel. Min. Moreira Alves, julgamento em
11-5-00, DJ de 8-9-00; ADI 289, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgamento em
9-2-07, DJ de 16-3-07; ADI 125, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgamento em
9-2-07, DJ de 27-4-07.
Esse
entendimento também vem sendo consagrado no E. Tribunal de Justiça de São
Paulo, por meio de seu Colendo Órgão Especial, conforme ementa transcrita a
seguir:
“Ementa: Inconstitucionalidade - Ação Direta - Lei Municipal
- Disposições relativas ao funcionalismo público - Desrespeito às regras de ingresso no serviço
público por meio de concurso, com enquadramento de funcionários sem a
realização dele, consagração de desvio de função e permissão de ocupação cargos
distintos àquele para o qual o servidor foi habilitado - Inadmissibilidade –
Procedência da ação com declaração de inconstitucionalidade das normas infringentes
dos princípios constitucionais de igual acessibilidade a cargos públicos por
meio de concurso e efeitos "ad nunc". (TJSP, Órgão Especial, ADI 164.694-0/3,
rel. des. Maurício Vidigal, j. 13.05.2009, v.u.).
3)Conclusão e pedido.
Diante
de todo o exposto, aguarda-se o recebimento e processamento da presente ação
declaratória, para que ao final seja ela julgada procedente, reconhecendo-se a
inconstitucionalidade do inciso I e do
parágrafo único do art. 37 da Lei Complementar Municipal nº 186, de 18 de abril
de 1996, de Jundiaí.
Requer-se
ainda sejam requisitadas informações à Câmara Municipal e ao Senhor Prefeito
Municipal de Jundiaí, bem como posteriormente citado o Procurador-Geral do
Estado para manifestar-se sobre o ato normativo impugnado.
Posteriormente,
aguarda-se vista para fins de manifestação final.
Termos
em que,
Aguarda-se
deferimento.
São Paulo, 10 de dezembro de
2009.
Fernando Grella Vieira
Procurador-Geral de Justiça
rbl
Protocolado nº
130.605/2009
Assunto:
Inconstitucionalidade do art. 37, I e parágrafo único da Lei Complementar
Municipal nº 186, de 18 de abril de 1996, de Jundiaí.
1. Distribua-se a inicial da ação direta de inconstitucionalidade.
2. Oficie-se ao interessado, com o envio de cópias, comunicando-se a propositura da ação.
3. Cumpra-se.
São Paulo, 10 de dezembro de 2009.
Fernando Grella Vieira
Procurador-Geral de Justiça
rbl