EXCELENTÍSSIMO SENHOR DESEMBARGADOR PRESIDENTE DO E. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

Protocolado nº 1.307/2010

Assunto: Inconstitucionalidade das Leis n. 1.582/97, 1.654/97, 1.774/98, 1.775/98, 1.945/00, 1.977/00, 2.042/01, 2.098/01, 2.177/02, 2.214/02, 2.233/02, 2.242/02, 2.254/02, 2.273/02, 2.278/02, 2.287/02, 2.301/03, 2.351/03, 2.381/03, 2.462/03, 2.471/04, 2.549/04, 2.559/04, 2.590/04, 2.701/05, 2.703/05, 2.756/05, 3.101/08, 3.104/08, 3.165/08 e 3.260/09, todas do Município de Ubatuba.

 

Ementa:

1. Ação direta de inconstitucionalidade em face das Leis n. 1.582/97, 1.654/97, 1.774/98, 1.775/98, 1.945/00, 1.977/00, 2.042/01, 2.098/01, 2.177/02, 2.214/02, 2.233/02, 2.242/02, 2.254/02, 2.273/02, 2.278/02, 2.287/02, 2.301/03, 2.351/03, 2.381/03, 2.462/03, 2.471/04, 2.549/04, 2.559/04, 2.590/04, 2.701/05, 2.703/05, 2.756/05, 3.101/08, 3.104/08, 3.165/08 e 3.260/09, do Município de Ubatuba, todas de iniciativa parlamentar, que dispõem sobre comércio ambulante.

2. Violação do princípio da separação entre os Poderes, sendo matéria de iniciativa do Poder Executivo (art. 5º, e art. 47, II e XIV, da CE).

3. Inconstitucionalidade constatada.

 

O Procurador-Geral de Justiça do Estado de São Paulo, no exercício da atribuição prevista no art. 116, inciso VI da Lei Complementar Estadual nº 734, de 26 de novembro de 1993 (Lei Orgânica do Ministério Público de São Paulo), em conformidade com o disposto no art.125, § 2º e art. 129, inciso IV da Constituição Federal, e ainda art. 74, inciso VI e art. 90, inciso III da Constituição do Estado de São Paulo, com amparo nas informações colhidas no incluso protocolado, vem, respeitosamente, perante esse Egrégio Tribunal de Justiça, promover a presente AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE em face das Leis n. 1.582/97, 1.654/97, 1.774/98, 1.775/98, 1.945/00, 1.977/00, 2.042/01, 2.098/01, 2.177/02, 2.214/02, 2.233/02, 2.242/02, 2.254/02, 2.273/02, 2.278/02, 2.287/02, 2.301/03, 2.351/03, 2.381/03, 2.462/03, 2.471/04, 2.549/04, 2.559/04, 2.590/04, 2.701/05, 2.703/05, 2.756/05, 3.101/08, 3.104/08, 3.165/08 e 3.260/09, do Município de Ubatuba, todas de iniciativa parlamentar, que dispõem sobre comércio ambulante, pelos fundamentos a seguir expostos.

 

DOS FATOS E FUNDAMENTOS JURÍDICOS

Todos os diplomas normativos impugnados e acima especificados são de iniciativa parlamentar e dispõem sobre o comércio ambulante local.

Contudo, é possível afirmar que essa lei, ora impugnada, ofende frontalmente os seguintes artigos da Constituição do Estado de São Paulo: 5º, e art. 47, II e XIV, 144.

Ditos atos normativos criam obrigações para a Administração Municipal e ofendem o princípio constitucional da separação entre os poderes, ao regulamentar o comércio ambulante local.

Com efeito, a iniciativa parlamentar que culminou na edição do ato normativo em análise invadiu a esfera de atribuições do Chefe do Poder Executivo.

Ao Poder Legislativo cabe a função de editar atos normativos de caráter geral e abstrato. Ao Executivo cabe o exercício da função de gestão administrativa, que envolve atos de planejamento, direção, organização e execução.

Atos que, na prática, representam invasão da esfera executiva pelo legislador, devem ser invalidados em sede de controle concentrado de normas, na medida em que representam quebra do equilíbrio assentado nos arts. 5º, 37 e 47, II e XIV, da Constituição do Estado de São Paulo, aplicáveis aos Municípios por força de seu art. 144.

Como ensinou Hely Lopes Meirelles:

“A Prefeitura não pode legislar, como a Câmara não pode administrar. Cada um dos órgãos tem missão própria e privativa: a Câmara estabelece regra para a Administração; a Prefeitura a executa, convertendo o mandamento legal, genérico e abstrato, em atos administrativos, individuais e concretos. O Legislativo edita normas; o Executivo pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art.2º) extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e inoperante (...) todo ato do Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art.2º c/c o art.31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito Municipal Brasileiro, 15ª. ed., São Paulo: Malheiros, 2006, p. 708, 712).

Deste modo, quando a pretexto de legislar, o Poder Legislativo administra, editando leis de efeitos concretos, ou que equivalem, na prática, a verdadeiros atos de administração, viola a harmonia e independência que deve existir entre os Poderes. Essa é exatamente a hipótese verificada nos autos.

Neste sentido, já proclamou esse Egrégio Tribunal que:

“Ao Executivo haverá de caber sempre o exercício de atos que impliquem no gerir as atividades municipais. Terá, também, evidentemente, a iniciativa das leis que lhe propiciem a boa execução dos trabalhos que lhe são atribuídos. Quando a Câmara Municipal, o órgão meramente legislativo, pretende intervir na forma pela qual se dará esse gerenciamento, está a usurpar funções que são de incumbência do Prefeito” (ADI n. 53.583-0, Rel. Des. Fonseca Tavares).

E nesta linha, verificando a inconstitucionalidade por ruptura do princípio da separação de poderes, este Egrégio Tribunal de Justiça vem declarando a inconstitucionalidade de leis similares (ADI 117.556-0/5-00, Rel. Des. Canguçu de Almeida, v.u., 02-02-2006; ADI 124.857-0/5-00, Rel. Des. Reis Kuntz, v.u., 19-04-2006; ADI 126.596-0/8-00, Rel. Des. Jarbas Mazzoni, v.u., 12-12-2007; ADI 127.526-0/7-00, Rel. Des. Renato Nalini, v.u., 01-08-2007; ADI 132.624-0/6-00, Rel. Des. Mohamed Amaro, m.v., 24-10-2007; ADI 142.130-0/0-00, Rel. Des. Ivan Sartori, 07-05-2008).

O vício de iniciativa conduz à declaração de inconstitucionalidade da lei, que não se convalida com a sanção ou a promulgação de quem deveria ter apresentado o projeto. É da jurisprudência que “o Executivo não pode renunciar prerrogativas institucionais inerentes às suas funções, como não pode delegá-las ou aquiescer em que o Legislativo as exerça” (ADIn 13.798-0, rel. Des. Garrigós Vinhares, j. 11.12.1991, v.u.).

De outro lado, o ato legislativo impugnado também revela a inexistência de adequado planejamento para a elaboração do ato normativo.

A matéria atinente à gestão da cidade decorre, essencialmente, da administração realizada pelo Chefe do Executivo, o que leva à conclusão de que, na hipótese em exame, foi violado o princípio da separação de poderes (arts. 5º e 47, II e XIV, Constituição Paulista; art. 2º, Constituição Federal).

Embora o Município seja dotado de autonomia política e administrativa, dentro do sistema federativo (arts. 1º e 18, Constituição Federal), esta autonomia não tem caráter absoluto. Limita-se ao âmbito pré-fixado pelo ente estrutural e hierarquicamente superior, isto é, a Constituição Federal (José Afonso da Silva, Direito constitucional positivo, 13ª ed., São Paulo, Malheiros, 1997, p.459). E deve ser exercida com a observância dos princípios contidos na Constituição Federal e na Constituição Estadual (Luiz Alberto David Araújo e Vidal Serrano Nunes Júnior, Curso de direito constitucional, 9ªed., São Paulo, Saraiva, 285) para a consecução de suas quatro capacidades básicas: (a) capacidade de auto-organização (elaboração de lei orgânica própria); (b) capacidade de autogoverno (eletividade do Prefeito e dos Vereadores às respectivas Câmaras Municipais); (c) capacidade normativa própria (autolegislação, mediante competência para elaboração de leis municipais); (d) capacidade de auto-administração (administração própria para manter e prestar serviços de interesse local); que refletem, respectivamente, a autonomia política (capacidades de auto-organização e de autogoverno), normativa (capacidade de fazer leis próprias sobre matéria de suas competências), administrativa (administração própria e organização dos serviços locais) e financeira (capacidade de decretação de seus tributos e aplicação de suas rendas).

A autonomia do Município, entretanto, deve respeitar o princípio da separação dos Poderes, contando o art. 5º da Constituição do Estado com a expressa previsão de que eles atuam de forma independentemente e harmônica, regra, aliás, que também consta do art. 2º da Constituição Federal, igualmente aplicável no âmbito estadual por força do art. 144 da Constituição Bandeirante.

Recorde-se, com Hely Lopes Meirelles, que as atribuições do Prefeito são de natureza governamental e administrativa, sendo certo que atua sempre “por meio de atos concretos e específicos, de governo (atos políticos) ou de administração (atos administrativos), ao passo que a Câmara desempenha suas atribuições típicas editando normas abstratas e gerais de conduta (leis). Nisso se distinguem fundamentalmente suas atividades. O ato executivo do Prefeito é dirigido a um objetivo imediato, concreto e especial; o ato legislativo da Câmara é mediato, abstrato e genérico(...) O prefeito provê in concreto, em razão do seu poder de administrar; a Câmara provê in abstracto em virtude de seu poder de regular. Todo ato do prefeito que infringir a prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art.2º c.c. o art.31), podendo ser invalidado pelo Judiciário” (Direito Municipal Brasileiro, 6ªed., 3ª tir., atualizada por Izabel Camargo Lopes Monteiro e Yara Darcy Police Monteiro,
São Paulo, Malheiros, 1993, p. 523).

A lei em exame ofendeu a separação que deve ocorrer no exercício das funções estatais, por ingressar na esfera de competência do Poder Executivo.

Pela natureza da matéria e pelos requisitos que nosso sistema constitucional estabelece para a elaboração da legislação urbanística, é lícito afirmar que ela demanda planejamento administrativo. E o planejamento na ocupação e uso do solo urbano das cidades é algo que só o Poder Executivo é habilitado, estrutural e tecnicamente, a fazer.

Considerando que ao Poder Legislativo cabe legislar, e ao Poder Executivo cabe administrar, é lícito concluir que o ato legislativo que invade a esfera da gestão administrativa - que envolve atos de planejamento e estabelecimento de diretrizes – é inconstitucional, por violar a regra da separação de Poderes.

Nos casos ora examinados, a iniciativa legislativa partiu de Vereador, o que permite concluir que o Legislativo Municipal violou a regra que exige independência e harmonia entre os Poderes, invadindo a esfera das atribuições do Executivo Municipal.

Por igualdade de razões é que a Constituição Estadual, em dispositivo aplicável aos Municípios em função do seu art. 144, prevê, nos incisos II e XIV do seu art. 47 as atribuições privativas do Chefe do Executivo para “exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior da administração estadual”, bem como “praticar os demais atos de administração, nos limites da competência do Executivo”.

Vale, a propósito, colacionar precedente desse egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, em caso idêntico (Adin n. 158.160-0/8-00), consignou:

“Ação Direta de Inconstitucionalidade – Ato normativo municipal, de autoria de vereador, que dispõe sobre o comércio ambulante no Município – Iniciativa privativa do Chefe do Executivo – Violação da cláusula de separação de poderes – Ofensa ao artigo 5º e da Constitucional Estadual, aplicável aos Municípios ex vi Art. 144 da mês Carta – Inconstitucionalidade reconhecida – Ação procedente”.

 

Em síntese: (a) partindo de parlamentar a iniciativa do processo legislativo que culminou com a edição das leis impugnadas; e (b) interferindo esta no planejamento urbanístico, que se enquadra no conceito de gestão administrativa, reservada esta ao Poder Executivo; evidencia-se a inconstitucionalidade das leis locais impugnadas, por violação ao disposto nos arts. 5º, 47, II e XIV, e 144 caput, todos da Constituição do Estado de São Paulo.

Deste modo, padecem de inconstitucionalidade os atos normativos oriundos do Legislativo municipal que dispõe sobre o comércio ambulante local.

 

DA LIMINAR

Presentes, na hipótese examinada, os pressupostos do fumus bonis iuris e do periculum in mora, a justificar a suspensão liminar da vigência e eficácia dos atos normativos impugnados. A razoável fundamentação jurídica decorre dos motivos expostos anteriormente, que indicam, de forma clara, que as leis impugnadas na presente ação padecem de vício de inconstitucionalidade. O perigo da demora decorre especialmente da idéia de que, sem a imediata suspensão da vigência e eficácia dos atos normativos impugnados, instalar-se-á, provavelmente, situação consumada, decorrente da restrição ilegítima de livre, amplo e incondicionado acesso a bens públicos de uso comum do povo.

Assim, a imediata suspensão da eficácia do ato normativo, cuja inconstitucionalidade é palpável, evita qualquer desdobramento no plano dos fatos que possa significar, na prática, prejuízo concreto para o Poder Público Municipal, tanto no aspecto administrativo, como do ponto de vista urbanístico.

 

DOS PEDIDOS

Posto isso, requer-se a concessão da liminar, para fins de suspensão imediata da eficácia da lei impugnada.

Além disso, evidenciada a necessidade de reconhecimento da inconstitucionalidade das leis aqui examinadas, requer-se o recebimento e processamento da presente ação declaratória, para que ao final seja julgada procedente, reconhecendo-se a inconstitucionalidade das Leis n. 1.582/97, 1.654/97, 1.774/98, 1.775/98, 1.945/00, 1.977/00, 2.042/01, 2.098/01, 2.177/02, 2.214/02, 2.233/02, 2.242/02, 2.254/02, 2.273/02, 2.278/02, 2.287/02, 2.301/03, 2.351/03, 2.381/03, 2.462/03, 2.471/04, 2.549/04, 2.559/04, 2.590/04, 2.701/05, 2.703/05, 2.756/05, 3.101/08, 3.104/08, 3.165/08 e 3.260/09, do Município de Ubatuba, todas de iniciativa parlamentar, que dispõem sobre comércio ambulante.

Requer-se ainda sejam requisitadas informações à Câmara Municipal e ao Prefeito Municipal, bem como posteriormente citado o Procurador-Geral do Estado para se manifestar sobre o ato normativo impugnado.

Posteriormente, aguarda-se vista para fins de manifestação final.

São Paulo, 9 de agosto de 2010.

 

                         Fernando Grella Vieira

                         Procurador-Geral de Justiça

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Protocolado nº 1.307/2010

Assunto: Inconstitucionalidade das Leis n. 1.582/97, 1.654/97, 1.774/98, 1.775/98, 1.945/00, 1.977/00, 2.042/01, 2.098/01, 2.177/02, 2.214/02, 2.233/02, 2.242/02, 2.254/02, 2.273/02, 2.278/02, 2.287/02, 2.301/03, 2.351/03, 2.381/03, 2.462/03, 2.471/04, 2.549/04, 2.559/04, 2.590/04, 2.701/05, 2.703/05, 2.756/05, 3.101/08, 3.104/08, 3.165/08 e 3.260/09, todas do Município de Ubatuba.

 

 

1. Distribua-se a petição inicial da ação direta de inconstitucionalidade junto ao Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

 

2. Oficie-se ao interessado, informando-lhe a propositura da ação, com cópia da petição inicial.

 

 

São Paulo, 9 de agosto de 2010.

 

 

FERNANDO GRELLA VIEIRA

Procurador-Geral de Justiça