EXCELENTÍSSIMO SENHOR DESEMBARGADOR PRESIDENTE DO E. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

 

 

Protocolado nº 132.574/2010

Assunto: Lei nº 2.668, de 21 de julho de 2010, do Município de Cordeirópolis.

 

 

Ementa:  Ação direta de inconstitucionalidade da Lei            nº 2.668, de 21 de julho de 2010, do Município de Cordeirópolis, que “dispõe sobre a entrega domiciliar de medicamentos às pessoas portadoras de doenças crônicas degenerativas, com dificuldades de locomoção”. Projeto de lei de Vereador. Violação da Constituição do Estado, artigos 5º; 37; 47, II e XIV; e 144 (vício de iniciativa); e 25 (criação de despesa sem indicação dos recursos disponíveis para atender aos novos encargos).

 

 

 

 

 

O Procurador-Geral de Justiça do Estado de São Paulo, no exercício da atribuição prevista no art. 116, inciso VI da Lei Complementar Estadual nº 734, de 26 de novembro de 1993 (Lei Orgânica do Ministério Público de São Paulo), em conformidade com o disposto no art. 125, § 2º e art. 129, inciso IV da Constituição Federal, e ainda art. 74, inciso VI e art. 90, inciso III da Constituição do Estado de São Paulo, com amparo nas informações colhidas no incluso protocolado, vem, respeitosamente, perante esse Egrégio Tribunal de Justiça, promover a presente AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE da Lei nº 2.668, de 21 de julho de 2010, do Município de Cordeirópolis, pelos fundamentos a seguir expostos.

1. DO ATO NORMATIVO IMPUGNADO

A Lei Municipal nº 2.668, de 21 de julho de 2010, do Município de Cordeirópolis, que “dispõe sobre entrega domiciliar de medicamentos às pessoas portadoras de doenças crônicas degenerativas, com dificuldades de locomoção”, apresenta a seguinte redação:

“Art. 1º - A Administração Municipal poderá realizar a entrega, em domicílio, dos medicamentos constantes da Rede Pública, às pessoas portadoras de doenças crônicas degenerativas, com dificuldades de locomoção.

Parágrafo único – O medicamento será entregue após visita domiciliar de uma técnica ou assistente social da Rede Pública de Saúde, objetivando a comprovação da real necessidade da entrega do medicamento.

Art. 2º - Para efeito desta Lei são consideradas pessoas portadoras de doenças crônicas degenerativas, com   dificuldade   de   locomoção,   aquelas     assim

                                                                       declaradas pelo médico que prescrever os medicamentos a serem entregues pela Rede Pública.

Art. 3º - Esta Lei será regulamentada pelo Poder Executivo no que couber.

Art. 4º - Esta Lei entra em vigor a partir da data que for sancionada”.

2. FUNDAMENTAÇÃO

A Procuradoria-Geral de Justiça acolheu representação formulada pelo Município de Cordeirópolis, pela qual se apontou a inconstitucionalidade do ato normativo em análise.

Colhe-se dela que o ilustre Vereador SÉRGIO BALTHAZAR RODRIGUES DE OLIVEIRA, certamente imbuído dos mais nobres propósitos, concebeu projeto de lei para instituir no Município de Cordeirópolis a entrega domiciliar de medicamentos às pessoas portadoras de doenças crônicas degenerativas, com dificuldades de locomoção

Como se pode observar, mencionado ato normativo cria obrigações para a Administração Municipal, fixando-lhe condutas                  (cf. arts. 1º e seu § único).

Dito isso, tem-se que a lei impugnada é verticalmente incompatível com a Constituição do Estado de São Paulo, especialmente com os seus arts. 5.º, 47, II e XIV, e 144, os quais dispõem o seguinte:

 

 

“Art. 5.º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

 

Art. 47 – Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas nesta Constituição:

II – exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior da administração estadual;

XIV – praticar os demais atos de administração, nos limites da competência do Executivo;

Art. 144 – Os Municípios, com autonomia, política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.”

Nos entes políticos da Federação, dividem-se as funções de governo: o Executivo foi incumbido da tarefa de administrar, segundo a legislação vigente, por força do postulado da legalidade, enquanto que o Legislativo ficou responsável pela edição das normas genéricas e abstratas, as quais compõem a base normativa para as atividades de gestão.

 

 

Essa repartição de funções decorre da incorporação à Constituição brasileira do princípio da independência e harmonia entre os Poderes (art. 2.º), preconizado por Montesquieu, e que visa a impedir a concentração de poderes num único órgão ou agente, o que a experiência revelou conduzir ao absolutismo.

A tarefa de administrar o Município, a cargo do Executivo, engloba as atividades de planejamento, organização e direção dos serviços públicos, o que abrange, efetivamente, a concepção de programas, como o da espécie em análise.

Assim, não poderia a Lei Municipal ordinária sem a iniciativa do Prefeito, criar atribuições para os órgãos da Administração. Como administrador do Município, caberia somente ao Prefeito o exame da conveniência e oportunidade de desenvolver entrega de medicamento de tal natureza. A indevida ingerência nas prerrogativas do Prefeito despreza o princípio da separação entre os Poderes e contraria o art. 5º da Constituição do Estado de São Paulo.

Com efeito, a criação de programas e a forma de prestação de serviços públicos são matérias de preponderante interesse do Poder Executivo, já que é a esse Poder que cabe a responsabilidade, perante a sociedade, pela eficiência da Administração.

Sendo assim, a iniciativa do processo legislativo para criação de políticas públicas e funcionamento de serviços municipais é privativa do Poder Executivo, pois, como assinala Manoel Gonçalves Ferreira Filho “o aspecto fundamental da iniciativa reservada está em resguardar a seu titular a decisão de propor direito novo em matérias confiadas à sua especial atenção, ou de seu interesse preponderante” (Do Processo Legislativo, São Paulo, Saraiva, p. 204).

Por esse motivo, a Constituição Estadual, em dispositivo que repete o artigo 61, § 1º, II, e, da Constituição Federal, conferiu ao Governador do Estado a iniciativa privativa das leis que disponham sobre as atribuições da administração pública e, consequentemente, sobre os serviços públicos por ela prestados, direta ou indiretamente. Trata-se de questão relativa ao processo legislativo, cujos princípios são de observância obrigatória pelos Municípios, em face do artigo 144, da Constituição do Estado, tal como tem decidido o Supremo Tribunal Federal:

“O modelo estruturador do processo legislativo, tal como delineado em seus aspectos fundamentais pela Constituição da República - inclusive no que se refere às hipóteses de iniciativa do processo de formação das leis - impõe-se, enquanto padrão normativo de compulsório atendimento, à incondicional observância dos Estados-Membros. Precedentes: RTJ 146/388 - RTJ 150/482” (ADIn nº 1434-0, medida liminar, relator Ministro Celso de Mello, DJU nº 227, p. 45684).

Se a regra é impositiva para os Estados-membros, é induvidoso que também o é para os Municípios.

As normas de fixação de competência para a iniciativa do processo legislativo derivam do princípio da separação dos poderes, que nada mais é que o mecanismo jurídico que serve à organização do Estado, definindo órgãos, estabelecendo competências e marcando as relações recíprocas entre esses mesmos órgãos (Manoel Gonçalves Ferreira Filho, op. cit., pp. 111-112). Se essas normas não são atendidas, como no caso em exame, fica patente a inconstitucionalidade, em face de vício de iniciativa.

Sobre isso, ensinou Hely Lopes Meirelles que se “a Câmara, desatendendo à privatividade do Executivo para esses projetos, votar e aprovar leis sobre tais matérias, caberá ao Prefeito vetá-las, por inconstitucionais. Sancionadas e promulgadas que sejam, nem por isso se nos afigura que convalesçam de vício inicial, porque o Executivo não pode renunciar prerrogativas institucionais inerentes às suas funções, como não pode delegá-las aquiescer em que o Legislativo as exerça” (Direito Municipal Brasileiro, São Paulo, Malheiros, 7ª ed., pp. 544-545).

Ademais, se a Constituição atribuiu ao Poder Executivo a responsabilidade pela prestação dos serviços públicos, é evidente que, pela teoria dos poderes implícitos, a ele deve caber a iniciativa das leis que tratem sobre a matéria. Essa teoria dos poderes implícitos - implied powers - surgiu no voto de Marshall, proferido no leading case McCulloch versus Maryland, de 1819, afirmando que, quando o Governo recebe poderes no sentido de cumprir certas finalidades estatais, dispõe também, implicitamente, dos meios necessários de execução. “Se o governante tem atribuições para praticar certos atos, cabe-lhe igualmente exercer aquelas que possibilitem seu exercício” (Caio Mário da Silva Pereira, em “Pareceres do Consultor-Geral da República”, v. 68, pp. 99-100).

Daí porque o Legislativo Municipal não poderia subtrair do Prefeito o exame da conveniência e da oportunidade de realizar entrega domiciliar de medicamentos às pessoas portadoras de doenças crônicas degenerativas, com dificuldades de locomoção e fixar as regras para sua operacionalização. Fazendo-o, ofendeu claramente o princípio da separação dos poderes (artigo 5º da Constituição Estadual), com a violação da iniciativa reservada do Executivo para desencadear o processo legislativo correspondente (artigo 24, § 2º, 2, c.c. artigo 47, XVIII, da mesma Carta).

Em casos semelhantes, esse E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo tem afastado a interferência do Poder Legislativo na definição de atividades e das ações concretas a cargo da Administração, destacando-se:

“Ao executivo haverá de caber sempre o exercício de atos que impliquem no gerir as atividades municipais. Terá, também, evidentemente, a iniciativa das leis que lhe propiciem a boa execução dos trabalhos que lhe são atribuídos. Quando a Câmara Municipal, o órgão meramente legislativo, pretende intervir na forma pela qual se dará esse gerenciamento, está a usurpar funções que são de incumbência do Prefeito” (Adin. n. 53.583-0, Rel. Dês. Fonseca Tavares; Adin n. 43.987, Rel. Dês. Oetter Guedes; Adin n. 38.977, Rel. Dês. Franciulli Netto; Adin n. 41.091, Rel. Dês. Paulo Shintate).

Nota-se, por fim, que a lei gera aumento de despesa sem indicação da fonte e, destarte, colide com as disposições dos artigos 25 e 176, inc. I, da Constituição Bandeirante.

Impõe-se observar que a entrega domiciliar de medicamentos às pessoas portadoras de doenças crônicas e degenerativas, com dificuldades de locomoção traz ônus ao Erário.

O Município haverá de providenciar a entrega desses medicamentos, bem como, pessoal especializado para realizar visitas domiciliares para a comprovação da real necessidade da entrega do medicamento, do que decorre o aumento dos encargos do orçamento (art. 176, I, CE).

Nota-se, contudo, que a lei não contém qualquer elemento indicativo dos recursos que serão onerados.

Em casos similares esse Egrégio Tribunal de Justiça tem reconhecido a inconstitucionalidade dessas leis por violação ao art. 25 da Constituição Estadual, em razão da ausência de indicação de recursos disponíveis para fazer frente às despesas criadas (ADI 18.628-0, ADI 13.796-0, ADI 38.249-0, ADI 36.805.0/2, ADI 38.977.0/0).

3. CONCLUSÃO E PEDIDO

Por todo o exposto, evidencia-se a necessidade de reconhecimento da inconstitucionalidade da norma aqui apontada.

Assim, aguarda-se o recebimento e processamento da presente Ação Declaratória, para que ao final seja julgada procedente, reconhecendo-se a inconstitucionalidade da Lei nº 2.668, de 21 de julho de 2010, do Município de Cordeirópolis.

 Requer-se ainda sejam requisitadas informações à Câmara Municipal e ao Prefeito Municipal, bem como posteriormente citado o Procurador-Geral do Estado para se manifestar sobre o ato normativo impugnado.

Posteriormente, aguarda-se vista para fins de manifestação final.

 

São Paulo, 26 de abril de 2011.

 

Fernando Grella Vieira

Procurador- Geral de Justiça

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Protocolado nº 132.574/2010

Interessado:  Promotoria de Justiça de Cordeirópolis

Assunto: Lei nº 2.668, de 21 de julho de 2010, do Município de Cordeirópolis.

 

 

 

 

 

 

1.    Distribua-se a petição inicial da ação direta de inconstitucionalidade, em face da lei nº 2.668, de 21 de julho de 2010, do Município de Cordeirópolis, junto ao Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

2.    Oficie-se ao interessado, informando-lhe a propositura da ação, com cópia da petição inicial.

3.    Desentranhe-se a representação de fls. 13 e seguintes, por se tratar de outra matéria, autuando-a em novo protocolado.

 

                    São Paulo, 26 de abril de 2011.

 

 

 

Fernando Grella Vieira

Procurador-Geral de Justiça

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