EXCELENTÍSSIMO SENHOR DESEMBARGADOR PRESIDENTE DO E. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

 

Protocolado nº 133.578/08

Assunto: Inconstitucionalidade da Lei Complementar nº 456, de 10 de julho de 2008, do Município de Jundiaí.

 

 

Ementa:  Lei municipal de iniciativa de Vereador que foi sancionada e, à margem da elaboração do Plano Diretor, altera Zona de Conservação da Serra dos Cristais para Zona Residencial de Média Densidade. Ausência de planejamento e participação comunitária. Vício de iniciativa não suprido pela sanção. Ofensa ao artigo 182, § 1º, da Constituição da República e aos artigos 180, inc. II e 181, § 1º, da Constituição do Estado de São Paulo. Violação da separação entre os Poderes (arts. 5º e 47, II e XIV, e 144 da Constituição Estadual).

           

 

 

                                                         O Procurador-Geral de Justiça do Estado de São Paulo, no exercício da atribuição prevista no art. 116, inciso VI da Lei Complementar Estadual nº 734, de 26 de novembro de 1993 (Lei Orgânica do Ministério Público de São Paulo), em conformidade com o disposto no art.125, § 2º e art. 129, inciso IV da Constituição Federal, e ainda art. 74, inciso VI e art. 90, inciso III da Constituição do Estado de São Paulo, com amparo nas informações colhidas no incluso protocolado, vem, respeitosamente, perante esse Egrégio Tribunal de Justiça, promover a presente AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE da Lei Complementar nº 456, de 10 de julho de 2008, que altera a Zona Rural incluindo área na Zona Urbana, classificando-a em Zona Residencial de Média Densidade do Município de Jundiaí , pelos fundamentos a seguir expostos.

 

 

1. DO ATO NORMATIVO IMPUGNADO.

 

                                                        

                                                         A 11ª Promotora de Justiça de Jundiaí, na defesa do Meio Ambiente Urbano, trouxe ao conhecimento da Procuradoria-Geral de Justiça que foi promulgada a Lei Complementar nº 456, de 10 de julho de 2008, alteradora do perímetro rural e urbano do Município de Jundiaí (fl. 8).

 

                                                         Nos autos de inquérito civil instaurado (IC nº 118/08), se verificou que a lei de autoria de Vereador não contou com estudo técnico de impacto ambiental, além de ter obtido pareceres desfavoráveis do Conselho Municipal da Defesa do Meio Ambiente, bem como da Consultoria Jurídica da própria Câmara Municipal de Jundiaí.

 

                                                         A Casa de Leis ofereceu informações (fls. 95/96), confirmando que a lei complementar inquinada originou-se do Projeto de Lei Complementar nº 840, de autoria do vereador Adilson Rodrigues Rosa, juntando cópia do processo legislativo (fls. 97/166). A Municipalidade de Jundiaí manifestou-se pela constitucionalidade da Lei Complementar nº 456/08, dizendo caber à Câmara Municipal, com sanção do prefeito, aprovar e alterar o Plano Diretor (fl. 167).

 

                                                         Da análise de todo o processado e, em particular, das informações prestadas pela Câmara Municipal, se concluiu que a Lei em análise ofende frontalmente os artigos 180, inciso II; 181, § 1º;       5º; 47, II e XIV e 144, da Constituição do Estado de São Paulo[1].

 

                                                         É o que será demonstrado a seguir.

 

 

2. FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA

 

 

                                                         A definição dos perímetros rural e urbano deve ser feita por lei municipal, tanto para fins urbanísticos, como para efeitos tributários.

 

                                                         É que a Constituição da República concedeu ao Município competência legislativa especial relacionada à política de desenvolvimento urbano (art. 30, I e 182, § 1º), cabendo-lhe promover o adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano[2].

 

                                                         Hely Lopes Meirelles chega a dizer que, para os fins urbanísticos, “a competência é privativa e irretirável do Município” [3]:  lei urbanística deve estabelecer os requisitos da urbanização e lei específica, como esta de que tratam os autos, delimitará a zona urbana.

 

                                                         Tratando-se de lei que altera o zoneamento, três parâmetros (artigos 5º e 47, incs. II e XIV, 144, 180 e 181 da Constituição do Estado) devem ser observados[4] para a constatação de sua constitucionalidade: (a) a iniciativa cabe apenas do Chefe do Executivo; (b) a necessidade do planejamento; (c) e a necessidade de participação das comunidades envolvidas.

 

                                                         O Projeto de Lei Complementar nº. 840/2008, que deu origem à lei impugnada, decorreu de iniciativa parlamentar, como se disse. Deste ato legislativo decorre também a inexistência de adequado planejamento para a elaboração do ato normativo.

 

                                                         A matéria atinente à gestão da cidade decorre, essencialmente, da administração realizada pelo Chefe do Executivo, o que leva à conclusão de que, na hipótese em exame, foi violado o princípio da separação de poderes (arts. 5º e 47, II e XIV, Constituição Paulista; art. 2º, Constituição Federal).

 

                                                         Embora o Município seja dotado de autonomia política e administrativa, dentro do sistema federativo (arts. 1º e 18, Constituição Federal), esta autonomia não tem caráter absoluto. Limita-se ao âmbito prefixado pelo ente estrutural e hierarquicamente superior, isto é, a Constituição Federal[5] e deve ser exercida com a observância dos princípios contidos na Constituição Federal e na Constituição Estadual[6], para a consecução de suas quatro capacidades básicas: (a) capacidade de auto-organização (elaboração de lei orgânica própria); (b) capacidade de autogoverno (eletividade do Prefeito e dos Vereadores às respectivas Câmaras Municipais); (c) capacidade normativa própria (autolegislação, mediante competência para elaboração de leis municipais); (d) capacidade de auto-administração (administração própria para manter e prestar serviços de interesse local); que refletem, respectivamente, a autonomia política (capacidades de auto-organização e de autogoverno), normativa (capacidade de fazer leis próprias sobre matéria de suas competências), administrativa (administração própria e organização dos serviços locais) e financeira (capacidade de decretação de seus tributos e aplicação de suas rendas).

 

                                                         A autonomia do Município, entretanto, deve respeitar o princípio da separação dos Poderes, contando o art. 5º da Constituição do Estado com a expressa previsão de que eles atuam de forma independentemente e harmônica, regra, aliás, que também consta do art. 2º da Constituição Federal, igualmente aplicável no âmbito estadual por força do art. 144 da Constituição Bandeirante.

 

                                                         Recorde-se, com Hely Lopes Meirelles, que as atribuições do Prefeito são de natureza governamental e administrativa, sendo certo que atua sempre

“por meio de atos concretos e específicos, de governo (atos políticos) ou de administração (atos administrativos), ao passo que a Câmara desempenha suas atribuições típicas editando normas abstratas e gerais de conduta (leis). Nisso se distinguem fundamentalmente suas atividades. O ato executivo do Prefeito é dirigido a um objetivo imediato, concreto e especial; o ato legislativo da Câmara é mediato, abstrato e genérico (...) O prefeito provê in concreto, em razão do seu poder de administrar; a Câmara provê in abstracto em virtude de seu poder de regular. Todo ato do prefeito que infringir a prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art. 2º c.c. o art. 31), podendo ser invalidado pelo Judiciário”[7].

 

                                                         A lei em exame ofendeu a separação que deve ocorrer no exercício das funções estatais, por ingressar na esfera de competência do Poder Executivo.

 

                                                         É bem verdade, a propósito, que não há previsão de iniciativa legislativa reservada na matéria.

 

                                                         Entretanto, pela natureza da matéria e pelos requisitos que nosso sistema constitucional estabelece para a elaboração da legislação urbanística, é lícito afirmar que ela demanda planejamento administrativo. E o planejamento na ocupação e uso do solo urbano das cidades é algo que só o Poder Executivo é habilitado, estrutural e tecnicamente, a fazer.

 

                                                         Considerando que ao Poder Legislativo cabe legislar, e ao Poder Executivo cabe administrar, é lícito concluir que o ato legislativo que invade a esfera da gestão administrativa - que envolve atos de planejamento, estabelecimento de diretrizes e a realização propriamente dita do que foi estabelecido na fase do planejamento (realização de atos administrativos concretos) – é inconstitucional, por violar a regra da separação de Poderes.

 

                                                         No caso ora examinado, como a iniciativa legislativa partiu de Vereador, chega-se à conclusão de que o Legislativo Municipal violou a regra que exige independência e harmonia entre os Poderes, invadindo a esfera das atribuições do Executivo Municipal.

 

                                                         Por igualdade de razões é que a Constituição Estadual, em dispositivo aplicável aos Municípios em função do seu art. 144, prevê, nos incisos II e XIV do seu art. 47 as atribuições privativas do Chefe do Executivo para “exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior da administração estadual”, bem como “praticar os demais atos de administração, nos limites da competência do Executivo”.

 

                                                         Vale, a propósito, colacionar precedentes desse E.Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, acolhendo, em hipóteses análogas, a tese da inconstitucionalidade por violação da separação de Poderes, e por isso aplicáveis ao caso mutatis mutandis:

“Ação Direta de Inconstitucionalidade da Lei 3.801, de 01 de julho de 2004, do Município de Valinhos, que ‘cria zona corredor 1 – ZC1, nas ruas Martinho Leardine e Pedro Leardine e altera o zoneamento de Z2A para Z3B no JD. Paiquerê e no Condomínio residencial Millenium’. Lei apenas em sentido formal. Incompetência do Poder Legislativo Municipal. Matéria afeta ao Poder Executivo. Violação dos princípios da independência e harmonia dos poderes. Ação procedente” (TJSP, ADIN 119.158-0/3, Comarca de Valinhos, rel. Des. Denser de Sá, j. 02.02.2006).

 

“Inconstitucionalidade. Ação Direta. Lei Complementar Municipal 1.482/03. ‘Autoriza, em caráter excepcional, atividades de prestação de serviços (clínicas de acupuntura, terapias e meditações) em trecho da Avenida Sumaré...’.Lei de iniciativa exclusiva do Prefeito. Ofensa à Constituição Estadual. Vício de iniciativa. Ação procedente. Inconstitucionalidade declarada”(TJSP, ADIN 115.322-0/3-00, Ribeirão Preto, rel. Des. Barbosa Pereira, j.27.07.2005).

 

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. Ribeirão Preto. Lei Complementar n° 1.973, de 03 de março de 2006, de iniciativa de Vereador, dispondo sobre matéria urbanística, exigente de prévio planejamento. Caracterizada interferência na competência legislativa reservada ao Chefe do Poder Executivo local. Procedência da ação.” (ADI 134.169-0/3-00, rel. des. Oliveira Santos, j. 19.12.2007, v.u.).

 

                                                         Anote-se também que em iniciativa desta Procuradoria-Geral de Justiça, esse E.Órgão Especial reconheceu a inconstitucionalidade de lei de iniciativa parlamentar que alterou o zoneamento urbano, como se infere da ementa a seguir transcrita:

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE – Lei Complementar n° 294/05 do Município de Catanduva - Alteração de Zoneamento Urbano - Identificação de lotes que passam a ter característica comercial, em zona estritamente residencial – Inadmissibilidade - Vício de inconstitucionalidade, por motivo de vedada delegação de poder em matéria de reserva legal. Ação julgada procedente.” (ADI 148.671-0/1-00, rel. des. Walter Swensson, j. 23.01.2008, v.u.).

 

                                                         Há inúmeros outros precedentes desse egrégio Tribunal de Justiça apontando, do mesmo modo, no sentido do reconhecimento da inconstitucionalidade, por quebra da regra da separação de poderes, em casos de leis que alteram o zoneamento ou uso do solo urbano: ADI 118.767-0/5-00, rel. des. Jarbas Mazzoni, j.07.04.06; ADI 125.012-0/7-00, rel. des. Jarbas Mazzoni, j.02.08.06; ADI 130.137-0/9-00, rel. des. Debatin Cardoso, j. 25.10.06; ADI 125.642-0/1-00, rel. des. Walter de Almeida Guilherme, j. 07.04.06.

 

                                                         Em síntese: (a) partindo de parlamentar a iniciativa do processo legislativo que culminou com a edição da lei impugnada; e (b) interferindo esta no planejamento urbanístico, que se enquadra no conceito de gestão administrativa, reservada esta ao Poder Executivo; evidencia-se a inconstitucionalidade da lei local impugnada, por violação ao disposto nos arts. 5º, 47, II e XIV, e 144 caput, todos da Constituição do Estado de São Paulo.

 

                                                         É fato inegável que, no caso em exame, não ocorreu o indispensável planejamento urbanístico. A Constituição do Estado de São Paulo prevê objetivamente a necessidade de planejamento em matéria urbanística.

 

                                                         O art. 180 caput da Carta Bandeirante, ao tratar do tema, indica os critérios a serem observados, pelo Estado e pelos Municípios, no “estabelecimento de diretrizes e normas relativas ao desenvolvimento urbano”. Entre eles, de conformidade com o inciso I do referido artigo, encontra-se a participação das respectivas entidades comunitárias no estudo, encaminhamento e solução de problemas, “plano, programas e projetos que lhes sejam concernentes”.

 

                                                         O art.181 da Constituição Estadual, por sua vez, prescreve que a “lei municipal estabelecerá em conformidade com as diretrizes do plano diretor, normas sobre zoneamento, loteamento, parcelamento, uso e ocupação do solo, índices urbanísticos, proteção ambiental e demais limitações administrativas pertinentes”; enquanto o respectivo §1º estabelece que “os planos diretores, obrigatórios a todos os Municípios, deverão considerar a totalidade do território Municipal”.

 

                                                         Cumpre recordar que a exigência do plano diretor, como “instrumento básico da política de desenvolvimento e expansão urbana”, está assentada no § 1º do art. 182 da Constituição Federal, cuja aplicabilidade à hipótese decorre da regra contida no art. 144 da Constituição do Estado de São Paulo.

 

                                                         Anote-se, finalmente, que esse art. 182 caput disciplina que “a política de desenvolvimento urbano, executada pelo poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes”.

 

                                                         Recorde-se também que o inciso VIII do art. 30 da Constituição Federal prevê a competência dos Municípios para “promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento, e da ocupação do solo urbano”.

 

                                                         É possível extrair dos dispositivos acima apontados que: (a) a adequada política de ocupação e uso do solo é valor que conta com assento constitucional (federal e estadual); (b) a política de ocupação e uso adequado do solo se faz mediante planejamento e estabelecimento de diretrizes através de lei; (c) as diretrizes para o planejamento, ocupação e uso do solo devem constar do respectivo plano diretor, cuja elaboração depende de avaliação concreta das peculiaridades de cada Município; (d) a legislação específica sobre uso e ocupação do solo deve pautar-se por adequado planejamento.

 

                                                         A sistemática constitucional - relativa à necessidade de planejamento, diretrizes, e ordenação global da ocupação e uso do solo - evidencia que o casuísmo, nessa matéria, não é em hipótese alguma admissível.

 

                                                         O ato normativo que altera sensivelmente as condições, limites e possibilidades do uso do solo urbano em zona residencial, alterando o perímetro rural, sem realização de qualquer planejamento ou estudo, viola diretamente a sistemática constitucional na matéria.

 

                                                         Entendimento diverso tornará sem valor algum todo o trabalho previamente realizado para fins de elaboração e aprovação da Lei do Plano Diretor e de Uso e Ocupação do Solo Urbano. Qualquer iniciativa parlamentar poderá – como se verificou no caso em exame – levar à alteração legislativa casuísta.

 

                                                         Tratando da elaboração do plano diretor do ordenamento urbano, anota Hely Lopes Meirelles que “a elaboração do plano diretor é tarefa de especialistas nos diversificados setores de sua abrangência, devendo por isso mesmo ser confiada a órgão técnico da Prefeitura ou contratada com profissionais de notória especialização na matéria, sempre sob supervisão do Prefeito, que transmitirá as aspirações dos munícipes quanto ao desenvolvimento do Município e indicará as prioridades das obras e serviços de maior urgência e utilidade para a população”[8].

 

                                                         Cumpre finalmente destacar a importância do planejamento urbanístico e da necessária razoabilidade de que se deve revestir a legislação elaborada nesta matéria, recordando Toshio Mukai, que “a ocupação e o desenvolvimento dos espaços habitáveis, sejam eles no campo ou na cidade, não podem ocorrer de forma meramente acidental, sob as forças dos interesses privados e da coletividade. Ao contrário, são necessários profundos estudos acerca da natureza da ocupação, sua finalidade, avaliação da geografia local, da capacidade de comportar essa utilização sem danos para o meio ambiente, de forma a permitir boas condições de vida para as pessoas, permitindo o desenvolvimento econômico-social, harmonizando os interesses particulares e os da coletividade”[9].

 

                                                         Deste modo, padece de inconstitucionalidade o ato normativo oriundo do Legislativo municipal que, sem qualquer estudo prévio consistente ou participação popular, e de forma casuística, altera o modo de acesso a vias e logradouros públicos resultantes de parcelamento do solo ou não, ferindo frontalmente o disposto nos art. 180 caput e inciso II, art. 181 caput e § 1º, ambos da Constituição Estadual; bem como, por força do art. 144 da Constituição Estadual, os princípios constitucionais estabelecidos nos art. 182 caput e §1º, e 30, VIII, da Constituição Federal.

 

                                                         De fato, cabe admitir que o projeto de lei é de autoria de Vereador e foi apresentado ao Chefe do Executivo Municipal que sancionou. Todavia, como sabido, não há se falar em convalidação, havendo nítida inconstitucionalidade por vício de iniciativa ou quebra da regra da separação de poderes. Relevante é que a Comissão do Plano Diretor de Jundiaí (fl. 142), foi concitada a informar sobre o projeto de lei e afirma não ter havido planejamento e participação comunitária, posicionando-se contrariamente ao Projeto de Lei. De fato, noticia-se a realização de uma audiência pública (fl. 143), todavia, absolutamente insuficiente para representar os exigidos planejamento e participação comunitária, notadamente na hipótese dos autos, com o parecer desfavorável da Comissão Municipal do Plano Diretor de Jundiaí.

 

                                                         Os autos evidenciam que não houve o planejamento.

 

                                                         Com efeito, o Projeto de Lei Complementar nº 840 foi apresentado em 19/05/2008, tendo sido publicada em 10 de julho de 2008, tendo por justificativa a existência no local de loteamento irregular (fl. 22). Sob esse aspecto, ainda, é sintomático que, a Consultoria Jurídica da própria Câmara Municipal tenha se posicionado contrariamente ao Projeto (fls. 66/72), além da Comissão do Plano Diretor de Jundiaí (fl. 142).

 

                                                         Aliás, o plano diretor, como se sabe, é o instrumento que fixa os objetivos e prioridades locais, de acordo com as demandas dos munícipes, e orienta os projetos de urbanização e reurbanização que lhe seguem. Deve abranger a totalidade do território do Município e, de acordo com o Estatuto da Cidade, deverá prever a delimitação da área urbana.

 

                                                         Bem por isso, figura-se casuística a lei impugnada que, à margem do plano diretor, altera o perímetro urbano tão somente para contemplar área em “que há residências construídas no local e que a provação desta iniciativa irá pôr fim a uma situação de loteamento irregular que se arrasta por muitos anos.” (fl. 101).

 

                                                         E, ainda que assim não fosse, a falta de participação comunitária é, por si só, fundamento suficiente ao reconhecimento da inconstitucionalidade da lei em análise.

 

                                                         Nesse passo, deve-se atentar para a expressa determinação contida na Carta Bandeirante e dirigida aos Municípios para que assegurem a participação das respectivas entidades comunitárias no estudo, encaminhamento e solução dos problemas, planos, programas e projetos que lhes sejam concernentes quando da edição de normas relativas ao desenvolvimento urbano.

 

                                                         Ora, se na formação das leis conjugam-se atos dos poderes Executivo e Legislativo, é curial que a determinação constitucional concernente ao Direito Urbanístico representa um plus do processo da formação da norma. Por tal razão, a apreciação da lei pela Câmara Municipal não dispensa esse requisito. É como pensa esse Sodalício. Colhe-se, em recente julgado[10], primorosa lição acerca da necessidade de planejamento e participação comunitária para a alteração do perímetro urbano:

“O argumento principal da inconstitucionalidade da lei em foco está na alteração de zona rural em zona urbana, sem aprovação anteriormente de um Plano Diretor para essa finalidade, onde deveria ser elaborado prévio estudo e ampla discussão com a sociedade, evitando a aprovação, sem legislação específica, de vários loteamentos em áreas de grande extensão territorial, podendo resultar impacto ambiental.

(...)

O diploma legal é argüido de inconstitucional por não obedecer, fundamentalmente, em sua gênese, determinação expressa e autoaplicável do art. 180, II e V, da Carta Estadual, inserido no capítulo da política urbana e relativa ao plano diretor, que assegura a participação da sociedade na elaboração das leis.

Nos autos não se verifica um planejamento municipal adequado e nenhum envolvimento da sociedade local direta ou indiretamente por suas entidades ou classes de associações, que pudessem de alguma forma expressar ou opinar sobre o assunto, o que é de elevada importância, para todos aqueles residentes próximo a áreas protegidas ambientalmente.

O Plano Diretor envolve estudos técnicos, valoração de ações, é um diploma legal de política urbana de um município, com o objetivo de ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes.

Não há notícias de estudos pertinentes, detalhados e conclusivos norteados pelo interesse público, em benefício da sociedade local, inexiste qualquer indício de planejamento ou comprovação de observância de normas urbanísticas, também não consta a manifestação da sociedade local, assim, violado está o artigo 180 inciso II e V, da Constituição do Estado de São Paulo (...)

Diploma desta importância jamais poderia merecer um tratamento displicente e ao arrepio das normas constitucionais O controle de constitucionalidade pode ser preventivo ou sucessivo. O objetivo precípuo deste controle preventivo ocorre antes de sua entrada em vigor, encontrando-se ainda em processo de formação, buscando justamente evitar que ingresse no ordenamento jurídico normas de efeitos inconstitucionais.

Na lição de José Nilo de Castro acentua que "as políticas de controle do solo urbano e a implementação de uma política de assentamento racional, justo, ordenado, do homem na cidade se impõem, para salvá-los, seja o homem, seja a cidade, enquanto habitante e espaço habitável... Os municípios a este intento, devem cercar-se de especialistas na área de engenharia, urbanismo, saneamento, sociologia, juristas entre outros - ou contratar firmas especializadas de consultoria, a fim de que se faça diagnóstico completo da cidade, coletando-se-lhes os objetivos. Obrigatoriamente participarão da elaboração do plano diretor as associações representativas da comunidade, além de se abrir oportunidade de iniciativa de projeto de lei a população." (In Direito Positivo, Del Rey, Belo Horizonte, p. 263/265).

A própria Constituição Federal de 1988 (art. 29, XII), prescreve a cooperação das associações representativas no planejamento municipal.

Em verdade, não tomou as devidas cautelas a municipalidade, quando da elaboração da lei, não poderiam os legisladores votar sem antes proceder prévia consulta aos setores interessados.

Todas leis devem ser precedidas de mecanismos e formas para garantir o direito básico de participação da sociedade na sua elaboração, com isso pode-se afirmar que todas as leis estaduais que versarem sobre política urbana deverão obedecer, além dos trâmites comuns a toda e qualquer legislação, a mais uma condicionante, qual seja, a participação das entidades comunitárias legalmente constituídas, sob pena de o diploma legal padecer de vício formal, por ofensa à democracia participativa e ao princípio da publicidade.

(...)

Não houve debates com a comunidade e em nenhum momento se aponta que houve qualquer discussão prévia, nenhum laudo técnico, ou "experts" e nenhuma audiência durante a tramitação do projeto, estando patente o vício formal.

 

                                                         Em suma, tem-se claro que a Lei Complementar nº 456, de 10 de julho de 2008, do Município de Jundiaí, de iniciativa parlamentar e que alterou os perímetros rural e urbano sem prévio planejamento e sem consulta à comunidade, desatendendo o comando dos artigos 180, inciso II e 181 da Constituição do Estado de São Paulo, cumprindo seja declarada a sua inconstitucionalidade.

 

3. PEDIDO DE LIMINAR.

 

                                                         Estão presentes, na hipótese examinada, os pressupostos do fumus bonis iuris e do periculum in mora, a justificar a suspensão liminar da vigência e eficácia do ato normativo impugnado.

 

                                                         A razoável fundamentação jurídica decorre dos motivos expostos anteriormente, que indicam, de forma clara, que a Lei impugnada na presente ação padece de vício de inconstitucionalidade.

 

                                                         O perigo da demora decorre especialmente da idéia de que, sem a imediata suspensão da vigência e eficácia do ato normativo impugnado, instalar-se-á, provavelmente, situação consumada decorrente do novo desenho urbano.

 

                                                         A idéia do fato consumado, com repercussão concreta, guarda relevância para a apreciação da necessidade da concessão da liminar na Ação Direta de Inconstitucionalidade. Válida tal afirmação, na medida em que providências administrativas que ulteriormente serão necessárias para o restabelecimento do status quo ante, com a esperada procedência da ação, trarão ônus e custos para a Administração Pública.

 

                                                         Assim, a imediata suspensão da eficácia do ato normativo, cuja inconstitucionalidade é palpável, evita qualquer desdobramento no plano dos fatos que possa significar, na prática, prejuízo concreto para o Poder Público Municipal no aspecto administrativo.

 

                                                         De resto, ainda que não houvesse essa singular situação de risco, restaria, ao menos, a excepcional conveniência da medida. Com efeito, no contexto das ações diretas e da outorga de provimentos cautelares para defesa da Constituição, o juízo de conveniência é um critério relevante, que vem condicionando os pronunciamentos mais recentes do Supremo Tribunal Federal, preordenados à suspensão liminar de leis aparentemente inconstitucionais (cf. ADIN-MC 125, j. 15.2.90, DJU de 4.5.90, p. 3.693, rel. Min. Celso de Mello; ADIN-MC 568, RTJ 138/64; ADIN-MC 493, RTJ 142/52; ADIN-MC 540, DJU de 25.9.92, p. 16.182).

 

                                                         Diante do exposto, requer-se a concessão da liminar, para fins de suspensão imediata da eficácia do ato normativo impugnado, ou seja, a Lei Complementar nº 456, de 10 de julho de 2008, do Município de Jundiaí , durante o trâmite da presente Ação Direta de Inconstitucionalidade.

 

4. CONCLUSÃO E PEDIDO.

 

                                                         Por todo o exposto, evidencia-se a necessidade de reconhecimento da inconstitucionalidade da norma aqui apontada.

 

                                                         Assim, aguarda-se o recebimento e processamento da presente Ação Direta de Inconstitucionalidade, para que ao final seja julgado procedente o pedido, reconhecendo-se a inconstitucionalidade da Lei Complementar nº 456, de 10 de julho de 2008, do Município de Jundiaí.

 

                                                         Requer-se ainda sejam requisitadas informações à Câmara Municipal e ao Prefeito Municipal, bem como posteriormente citado o Procurador-Geral do Estado, para se manifestar sobre o ato normativo impugnado.

 

                                                         Posteriormente, aguarda-se vista para fins de manifestação final.

São Paulo, 9 de janeiro de 2009.

 

FERNANDO GRELLA VIEIRA

Procurador-Geral de Justiça

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Protocolado PGJ nº 133.578/08

Interessado: Promotoria de Justiça de Jundiaí

 

 

 

 

                                                1. Distribua-se a petição inicial da ação direta de inconstitucionalidade, em face da Lei Complementar nº 456/08, do Município de Jundiaí, junto ao Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

 

                                                 2. Oficie-se ao interessado, informando-lhe a propositura da ação, com cópia da petição inicial.

 

 

São Paulo, 09 de janeiro de 2009.

 

 

FERNANDO GRELLA VIEIRA

Procurador-Geral de Justiça



[1] Artigo 5º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

Artigo 47 – Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas nesta Constituição:

(...)

II – exercer, com o auxílio dos secretários de Estado, a direção superior da administração estadual;

XIV – praticar os demais atos de administração, nos limites da competência do Executivo;

Artigo 180 - No estabelecimento de diretrizes e normas relativas ao desenvolvimento urbano, o Estado e os Municípios assegurarão:

(...)

II - a participação das respectivas entidades comunitárias no estudo, encaminhamento e solução dos problemas, planos, programas e projetos que lhes sejam concernentes;

(...)

Artigo 181 - Lei municipal estabelecerá, em conformidade com as diretrizes do plano diretor, normas sobre zoneamento, loteamento, parcelamento, uso e ocupação do solo, índices urbanísticos, proteção ambiental e demais limitações administrativas pertinentes.

§ 1º - Os planos diretores, obrigatórios a todos os Municípios, deverão considerar a totalidade de seu território municipal.

(...)

Artigo 144 – Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.

[2] Alexandre de Moraes. Direito Constitucional, 23ª. ed., São Paulo: Atlas, 2008, p. 309-310.

[3] Hely Lopes Meirelles. Direito Municipal Brasileiro, 16ª. ed., São Paulo: Malheiros, 2008, p. 556.

[4] Confira-se no doutrina: Hely Lopes Meirelles, Direito Municipal Brasileiro, 6ªed., 3ª tir., atualizada por Izabel Camargo Lopes Monteiro e Yara Darcy Police Monteiro, São Paulo: Malheiros, 1993, p.393, 395 e 523; José Afonso da Silva, Direito Urbanístico, 4ªed., São Paulo: Malheiros, 2006, p.251; Toshio Mukai, Temas atuais de direito urbanístico e ambiental, Belo Horizonte: Editora Fórum, 2004, p.29. Na jurisprudência do E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo se encontram os seguintes julgados: ADIN 119.158-0/3, Comarca de Valinhos, rel. Des. Denser de Sá, j. 02.02.2006; ADIN 115.322-0/3-00, Ribeirão Preto, rel. Des. Barbosa Pereira, j.27.07.2005; ADI 134 169-0/3-00, rel. des. Oliveira Santos, j. 19.12.2007, v.u; ADIN 148.671-0/1-00, rel. des. Walter Swensson, j. 23.01.2008, v.u.; entre outros.

[5] SILVA, José Afonso da.  Direito constitucional positivo, 13ª ed., São Paulo: Malheiros, 1997, p.459.

[6]ARAÚJO, Luiz Alberto David e NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano, Curso de direito constitucional, 9ªed., São Paulo: Saraiva, p. 285.

[7] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Municipal Brasileiro, 6ªed., 3ª tir., atualizada por Izabel Camargo Lopes Monteiro e Yara Darcy Police Monteiro, São Paulo: Malheiros, 1993, p. 523.

[8] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Municipal Brasileiro, 6ªed., 3ª tir., atualizada por Izabel Camargo Lopes Monteiro e Yara Darcy Police Monteiro, São Paulo: Malheiros, 1993, p. 393-395.

 

[9] MUKAI, Toshio. Temas atuais de direito urbanístico e ambiental. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2004, p.29.

[10] Inconstitucionalidade - Ação direta - Lei 1.542 de 25 de março de 2002 - Descaracterização de zona rural em urbana - Ausência de Plano Diretor e não participação da sociedade quando da elaboração da lei - Área de proteção ambiental — Ofensa aos artigos 5º, 23, 111, 144, 152, I, II e III, 180, II, V, 181, 191 e 196 da Constituição Estadual - Ação procedente - Inconstitucionalidade declarada (ADIn nº 146.526-0/6-00, rel. Barbosa Pereira, j. 19.09.2007, v.u.).