Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente do Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo.

 

Ementa:

1)Ação direta de inconstitucionalidade. 2) Decreto Municipal que regulamenta Lei Municipal. Fixação da forma de arrecadação do tributo da  Contribuição para o Custeio da Iluminação Pública (CIP). 3). Instituição de cobrança progressiva, que não permite aferir a capacidade contributiva dos contribuintes. 4) Violação dos arts. 111, 144, 160, § 1º  e 163,III da Constituição do Estado. 5)  Inconstitucionalidade reconhecida.

                  

 

                      O Procurador-Geral de Justiça, no exercício da atribuição prevista no artigo 116, inciso VI, da Lei Complementar Estadual n.º 734, de 26 de novembro de 1993 (Lei Orgânica do Ministério Público de São Paulo), e em conformidade com o disposto nos artigos 125, § 2.º, e 129, inciso IV, da Constituição da República, e nos artigos 74, inciso VI, e 90, inciso III, da Constituição do Estado de São Paulo -– com base nas informações constantes do incluso protocolado (PGJ n.º 134.073/07) --, vem, respeitosamente, perante esse Egrégio Tribunal de Justiça promover a presente AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE do Decreto, n. 2.900, de 27 de dezembro de 2006, do Município de Santana de Parnaíba, que regulamenta a Lei Municipal n. 2.772, de 22 de dezembro de 2006, do mesmo Município, pelas razões e fundamentos a seguir expostos:

 

                   Pois bem, o ato normativo cuja validade jurídico-constitucional ora se questiona reza o seguinte:

 

 

 

             Art. 1.º - O valor anual da CIP, apurado com base no custo do serviço de iluminação das vias e logradouros públicos será pago pelos contribuintes em 12 (doze) parcelas mensais.

 

 

             Art. 2.º - Os valores mensais da Contribuição ficam estabelecidos da seguinte forma:

 

             I- Para os imóveis residenciais – faixa de consumo: de 0 a 79 kwh-isento; de 80 a 220 kwh- R$ 3,54; de 221 a 500 kwh- R$ 9,73; de 501 a 1000 kwh – R$ 11,84; acima de 1001 kwh – R$ 17,75.

 

             II- Para os imóveis não residências – faixa de consumo: de 0 a 79 kwh – isento; de 80 a 220 kwh – R$ 3,54; de 221 a 500 kwh- R$ 9,73; de 501 a 1000 kwh- R$ 15,41; de 1001 a 2000kwh – R$ 19,17; de 2001 a 3000 kwh – R$ 24,10; acima de 3001 kwh- R$ 28,00.

 

             III- Para os imóveis industriais – faixa de consumo de 0 a 79 kwh – isento; de 80 a 220 kwh – R$ 3,54; de 221 a 500 kwh – R$ 13,07; de 501 a 1000 kwh- R$ 24,10; de 1001 a 2000kwh- R$ 27,00; acima de 2001 kwh-R$ 28,00.

 

             Art. 3º - A  forma e o prazo para pagamento da CIP serão fixados da mesma maneira a que for aplicada pela empresa concessionária de energia elétrica para cobrança das tarifas de seus serviços com a transferência dos recursos à prefeitura com base no produto arrecadado.

 

             Art. 4º - Em caso de mora do contribuinte a empresa concessionária de energia elétrica contratada para arrecadação da CIP calculará os acréscimos devidos com base no mesmo índice que utilizar para atualização de seus créditos.

 

             Art. 5º - O valor anual da CIP poderá ser revisado no custo do serviço apurado ao final de cada exercício, mantendo-se a arrecadação fixada neste decreto, enquanto não se alterar.

 

             Art. 6º - Este Decreto entra em vigor na data de sua publicação, produzindo seus efeitos a partir de 1º de janeiro de 2007.

 

             Art. 7º - Revogam-se as disposições em contrário.”

 

 

 

                   O ato normativo em questão -- como será visto a seguir -- é incompatível com a Constituição Paulista, mais precisamente com os seus arts. 111, 144, 160, § 1.º e 163, II, que assim dispõem:

        

         Art. 111 – A administração pública direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes do Estado, obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, razoabilidade, finalidade, motivação e interesse público.

 

         Art. 144 – Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por Lei Orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.

        

         (Art. 160)

 

 

 

         § 1.º - Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte.

 

         Art. 163 – Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado ao Estado:

        

         I - ......

 

         II – instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente, proibida qualquer distinção em razão de ocupação profissional ou função por eles exercida, independentemente da denominação jurídica dos rendimentos, títulos ou direitos;

 

                   Na ordem constitucional em vigor, os Municípios integram a federação e são dotados de autonomia, atendidos os princípios estabelecidos na Carta Magna e na Constituição do respectivo Estado (CF., art. 29, “caput”). Basicamente, essa autonomia se manifesta pelas seguintes competências: legislar sobre assuntos de interesse local; suplementar a legislação federal e a estadual no que couber; “instituir e arrecadar os tributos que lhes são próprios (CF., art. 30, incisos I a III).

 

 

                   Com relação à competência tributária atribuída aos Municípios, e que é consubstanciada na capacidade de instituir e arrecadar tributos, é bem de ver que ela encontra limites nas normas da Constituição Federal ([1]) atinentes ao Sistema Tributário Nacional (CF., art. 145 e segs.), que envolvem princípios incontornáveis, dentre os quais as regras matrizes dos tributos.

 

                   De fato, mesmo reconhecendo que a Constituição em vigor não criou tributos, é certo que, além de discriminar competências, ela fixou a “norma padrão de incidência” de cada um dos tributos que podem ser instituídos pelos entes estatais. Assim, ao outorgar competência às pessoas políticas para a instituição de “impostos, taxas e contribuições”, o seu art. 145 classifica juridicamente os tributos, definindo o padrão de cada um deles, ao qual o legislador ordinário está vinculado.

 

                   Para ROQUE ANTONIO CARRAZZA,

 

             A Constituição, ao discriminar as competências tributárias, estabeleceu - ainda que, por vezes, de modo implícito e com uma certa margem de liberdade para o legislador - a norma padrão de incidência (o arquétipo genérico, a regra matriz) de cada exação. Noutros termos, ela apontou a hipótese de incidência possível, o sujeito ativo possível, o sujeito passivo possível, a base de cálculo possível e a alíquota possível, das várias espécies e subespécies de tributos. Em síntese, o legislador, ao exercitar a competência tributária, deverá ser fiel à norma padrão de incidência do tributo, pré-traçada na Constituição. O legislador (federal, estadual, municipal ou distrital)  enquanto cria o tributo, não pode fugir deste arquétipo constitucional.” (Cf. “Curso de Direito Constitucional Tributário”,Editora Revista dos Tribunais, São Paulo,  4.ª edição, pág. 257).

 

                   Bem por isso, o Supremo Tribunal Federal já assentou que: “O fundamento do poder de tributar (...) reside no dever jurídico de essencial e estrita fidelidade dos entes tributantes ao que imperativamente dispõe a Constituição da República” (v. Despacho do Ministro-Presidente CELSO DE MELLO, Informativo n.º 125), sendo, portanto, inconstitucional qualquer tributo criado fora desses limites.   

 

                  No expediente em anexo, apurou-se que a Câmara Municipal de Santana de Parnaíba editou a Lei Complementar n.º 2.772, de 22 de  dezembro de 2006, instituindo a Contribuição de Iluminação Pública –CIP, que foi regulamentada pelo Decreto ora impugnado.

 

                   Pois bem, anteriormente à edição da EC n.º 39/02 – que tornou possível a cobrança dessa espécie tributária --, inúmeros Municípios implantaram a taxa de iluminação pública, que, entretanto, foi declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal (RREE 231.764-RJ e 233.332-RJ, Rel. Min. ILMAR GALVÃO, j. em 10/03/1999), por se referir a serviço público não-específico e indivisível.

 

-                  Ocorre, porém, que, nada obstante a promulgação da EC n.º 39/02, quando instituiu a cobrança de contribuição para o custeio do serviço de iluminação pública,  Decreto n. 2.900, de 27 de dezembro de 2006, que regulamentou a Lei Municipal n. 2.772, de 22 de dezembro de 2006 do Município de Santana de Parnaíba, contrariou frontalmente a Constituição, fugindo do modelo por ela traçado, ao instituir a cobrança de contribuição progressiva, nos termos dos incisos de seu art. 2.º.

 

                   Com efeito, os incisos do art. 2.º do mencionado Decreto dispõe que “a contribuição será variável de acordo com  (a) a categoria de consumidor (Industrial, Comercial e Residencial) e (b) a quantidade de consumo”. Ou seja, o valor da contribuição ora impugnada é definido, basicamente, pela faixa de consumo em que se situar o contribuinte na sua respectiva categoria: INDUSTRIAL – R$ 0,00 até R$ 28,00; COMERCIAL – R$ 0,00 até R$ 28,00; RESIDENCIAL – R$ 0,00 até R$ 17,75.

 

                   Entretanto, por sua natureza peculiar, a contribuição para o custeio da iluminação pública não condiz com o regime de “progressividade”, tal como previsto na legislação municipal ora combatida, máxime diante da ausência de autorização constitucional expressa.

 

                   Na verdade, essa modalidade de tributo não pode variar na razão da presumível capacidade contributiva do sujeito passivo da obrigação tributária. Aliás, mesmo se fosse juridicamente possível a adoção da progressividade na definição da contribuição para o custeio do serviço de iluminação pública, o que se admite somente para argumentar, não haveria como se proceder à aferição da capacidade contributiva simplesmente pelo padrão de consumo de energia elétrica medido em Kw/h, de acordo com a respectiva categoria de consumidores (Industrial, Comercial e Residencial), porquanto esse critério legal não se presta à efetiva realização da justiça tributária.

 

                   Com efeito, o critério legalmente eleito - a quantidade de consumo medida em Kw/h - não permite aferir a real capacidade econômica do contribuinte. Para que seja possível alcançar a isonomia tributária, por meio de avaliação da capacidade econômica do contribuinte, afigura-se indispensável a consideração de outros dados, como por exemplo os rendimentos e as atividades econômicas desenvolvidas pelo contribuinte, conforme expressamente estabelecido na regra constitucional.

 

                   Apenas para ilustrar essa situação, tome-se como exemplo o imóvel de alto padrão que seja habitado por apenas um morador, o qual passa a maior parte do tempo fora. Certamente, o consumo de energia elétrica nesse imóvel será muito inferior ao de uma moradia coletiva (v.g. um cortiço), que, em regra, é ocupada por pessoas mais humildes. Por conta do critério legalmente fixado, estas últimas serão obrigadas ao pagamento de contribuição de iluminação pública em montante superior ao do primeiro, o que, além de desarrazoado, atenta contra o postulado da isonomia.

 

                   Bem por isso, aliás, ao examinar iniciativa semelhante, o Des. PAULO SHINTATE advertiu que: “... essa progressividade (...) estabelecida de forma desvinculada da objetiva e adequada avaliação da capacidade contributiva do sujeito passivo conduz, ao contrário do pretendido pela norma constitucional, à injustiça e à quebra do princípio da isonomia tributária.” (ADIn 059.340.0/8, j. em 26/04/2000).

 

                  Ademais, em precedente integralmente aplicável à espécie, o Excelso Pretório firmou o entendimento no sentido de que o legislador ordinário não pode se valer da progressividade na definição de alíquotas pertinentes à contribuição previdenciária, visto que -- cuidando-se de matéria sujeita a estrita previsão constitucional -- “... inexiste espaço de liberdade decisória para o Congresso Nacional, em tema de progressividade tributária, instituir alíquotas progressivas em situações não autorizadas pelo texto da Constituição” (ADIn 2062/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO).

 

                   CONCLUSÕES: o ato normativo em epígrafe é materialmente inconstitucional porque: (a) a Constituição não autoriza a adoção do critério da progressividade na cobrança da contribuição de iluminação pública; (b) a quantidade de consumo (KWH) não permite aferir a capacidade contributiva;

 

                   Remanesce, no caso, a necessidade da concessão de “MEDIDA LIMINAR”. Quando se trata do controle normativo abstrato, e diante da cumulativa satisfação dos requisitos legais concernentes ao “fumus boni júris” e ao “periculum in mora”, o poder geral de cautela autoriza a suspensão da eficácia do ato normativo impugnado, até o final julgamento da presente ação direta.

 

                   A plausibilidade jurídica da tese exposta na inicial é evidente, encontrando respaldo inclusive na jurisprudência dominante nesse Egrégio Tribunal de Justiça (ADIn n.º 111.320.0/5, Rel. Des. NIGRO CONCEIÇÃO, ADIn n.º 116.949.0/1, Rel. Des. DENSER DE SÁ; ADIn n.º 117.103.0/9, Rel. Des. RUY CAMILO), que tem considerado desarrazoada, arbitrária e ofensiva à isonomia a utilização da progressividade como critério de cobrança da contribuição para o custeio do serviço de iluminação pública, tal como estabelecido pelo Decreto n. 2.900, de 27 de dezembro de 2006, do Município de Santana de Parnaíba.

 

                   E, por outro lado, também está delineada a situação de risco, caracterizadora do ‘periculum in mora’, tanto mais porque “em matéria tributária há um permanente estado de ameaça gerada pela potencialidade de ato administrativo fiscal dirigido ao contribuinte” (STJ - 1ª Turma, j. 21.8.97, rel. Min. MILTON LUIZ PEREIRA, DJU de 10.11.97, p. 57.703). Assim, o contribuinte estará sendo compelido a pagar uma exação cuja constitucionalidade é contestada aqui  -- e certamente o fará por temor às conseqüências que a lei empresta ao inadimplemento tributário --, salvo, é claro, se estiver amparado por uma liminar.

 

                   Como a CIP atinge milhares de pessoas, a repetição do indébito exigirá a multiplicação de longas e dispendiosas demandas. Ou seja, estar-se-á sujeitando o contribuinte a uma situação semelhante à anacrônica regra do solve et repete.  Em suma: há justo receio de lesão ao direito que tem o contribuinte de não pagar uma dívida tributária cuja fonte normativa foi moldada em total afronta às normas constitucionais. De resto, ainda que não houvesse essa singular situação de risco, restaria, ao menos, a excepcional conveniência da medida. Com efeito, no contexto das ações diretas e da outorga de provimentos cautelares para defesa da Constituição, o juízo de conveniência é um critério relevante, que vem condicionando os pronunciamentos mais recentes do Excelso Pretório, preordenados à suspensão liminar de leis aparentemente inconstitucionais (cf. ADIN-MC 125, j. 15.2.90, rel. Min. CELSO DE MELLO; ADIN-MC 568, RTJ 138/64; ADIN-MC 493, RTJ 142/52).

 

                   Tais afirmações se ajustam com precisão aos casos como o presente, cuja matéria em discussão é de natureza tributária. Com efeito, as limitações constitucionais ao poder estatal de tributar têm manifesta relevância e é inegável que convém ao bem comum assegurar o efetivo império de seus princípios. Como se sabe, “o exercício do poder tributário, pelo Estado, submete-se, por inteiro, aos modelos jurídicos positivados no texto constitucional, que, de modo explícito ou implícito, institui em favor dos contribuintes decisivas limitações à competência estatal para impor e exigir, coativamente, as diversas espécies tributárias existentes”. Bem por isso, aliás, é que “os princípios constitucionais tributários (...), sobre representarem importante conquista político-jurídica dos contribuintes, constituem expressão fundamental dos direitos individuais outorgados aos particulares pelo ordenamento estatal” (ADIn-MC n.º 712-DF, rel. Min. CELSO DE MELLO, j. em 7.10.92).

 

                   Em face do exposto, e após a concessão da liminar, requeiro seja autorizado o processamento da presente ação, colhendo-se informações da Câmara de Vereadores de Santana de Parnaíba no prazo regimental, sobre as quais me manifestarei oportunamente, vindo, afinal, a ser declarada a inconstitucionalidade material do Decreto n. 2.900, de 27 de dezembro de 2006, do Município de Santana de Parnaíba, ante sua incompatibilidade com os arts. 111, 144, 160, § 1.º, e 163, incisos II, da Constituição do Estado de São Paulo.

 

São Paulo, 02 de outubro de 2008.

 

 

FERNANDO GRELLA VIEIRA

PROCURADOR-GERAL DE JUSTIÇA


Protocolado PGJ nº 134.073/2007

Interessado: Promotoria de Justiça de Barueri

Assunto: Inconstitucionalidade do Decreto nº 2.900, de 27 de dezembro de 2006, do Município de Santana de Parnaíba.

 

 

 

 

 

1.  Distribua-se a petição inicial da Ação Direta de Inconstitucionalidade, em face do Decreto nº 2.900, de 27 de dezembro de 2006, do Município de Santana de Parnaíba, junto ao Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

2.  Oficie-se ao interessado, informando-lhe a propositura da ação, com cópia da petição inicial.

 

 

São Paulo, 21 de outubro de 2008

 

 

 

FERNANDO GRELLA VIEIRA

Procurador-Geral de Justiça

 



[1] As normas constitucionais federais que estabelecem limitações ao poder de tributar (CF., art. 150 e segs.) são de observância obrigatória pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios e foram reproduzidas na Constituição do Estado de São Paulo,  mais precisamente no seu art. 159 e segs..