EXCELENTÍSSIMO SENHOR DESEMBARGADOR PRESIDENTE DO E. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

 

Protocolado n. 134.313/2010

Assunto: Inconstitucionalidade do art. 162 da Lei Orgânica Municipal de Jacareí e, por arrastamento, das Leis Complementares Municipais n. 2, 4, 11, 14, 25 e 69, que regulamentaram o art. 162

 

 

 

 

Ementa:

1. Art. 162 da Lei Orgânica Municipal de Jacareí que criou, no âmbito do Município, a Conferência e o Conselho Municipal de Saúde.

2. Lei verticalmente incompatível com a regra da iniciativa reservada e com o princípio da independência e harmonia entre os Poderes.

3. Inconstitucionalidade formal subjetiva pelo vício de iniciativa e pela ofensa ao Princípio da Separação e da Harmonia entre os Poderes.

4. Inconstitucionalidade por ofensa ao art. 25 da Constituição Estadual, decorrente da falta de indicação de recursos.

5. Violação aos arts. 5º, 25, 47, II, XI, XIV e XIX, 111 e 144.

6. Ação direta ajuizada.

 

O Procurador-Geral de Justiça do Estado de São Paulo, no exercício da atribuição prevista no art. 116, inciso VI da Lei Complementar Estadual nº 734, de 26 de novembro de 1993 (Lei Orgânica do Ministério Público de São Paulo), em conformidade com o disposto no art. 125, § 2º e no art. 129, inciso IV da Constituição Federal, e ainda no art. 74, inciso VI e no art. 90, inciso III da Constituição do Estado de São Paulo, com amparo nas informações colhidas no incluso protocolado (PT n. 50.536/09), vem, respeitosamente, perante esse Egrégio Tribunal de Justiça, promover a presente AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE em face do art. 162 da Lei Orgânica Municipal de Jacareí e, por arrastamento, das Leis Complementares Municipais n. 2, 4, 11, 14, 25 e 69, que regulamentaram o art. 162, pelos fundamentos a seguir expostos.

Dos diplomas normativos impugnados

O art. 162 da Lei Orgânica Municipal de Jacareí criou, no âmbito do Município, a Conferência e o Conselho Municipal de Saúde.

O dispositivo legal impugnado assim dispõe:

“Artigo 162 - Ficam criados no âmbito do Município a Conferência e o Conselho Municipal de Saúde, instâncias colegiadas e de caráter deliberativo, a serem disciplinadas em lei complementar, com as normas de funcionamento definidas em regulamento próprio, cujos principais objetivos são:

I - a Conferência Municipal de Saúde, constituída de representantes de vários segmentos sociais, reunir-se-á a cada quatro anos para avaliar a situação do Município e sugerir diretrizes básicas da política municipal de saúde.

II - o Conselho Municipal de Saúde, constituído de representantes dos usuários, prestadores de serviço e trabalhadores em saúde, atuará em caráter permanente e deliberativo na formulação e no controle da execução da política de saúde, nos aspectos técnicos, econômicos e financeiros.

- “caput” e inciso II com redações alteradas pela Emenda nº 6, de 05 de agosto de 1991

- artigo renumerado (antigo artigo 159) pela Emenda nº 26, de 30 de setembro de 1994

- redação do inciso I alterada pela Emenda nº 51, de 9 de novembro de 2005”.

A Lei Complementar n. 2, de 21 de dezembro de 1990, reproduzida a fls. 35/40 do protocolado que acompanha a presente ação direta, dispõe sobre o Conselho Municipal de Saúde- COMUS, a Conferência Municipal de Saúde e cria o Fundo Municipal de Saúde. Foi alterada, posteriormente, pela Lei Complementar n. 4, de 12 de novembro de 1991, pela Lei Complementar n. 11, de 20 de maio de 1993, pela Lei Complementar n. 14, de 4 de outubro de 1993, pela Lei Complementar n. 25, de 22 de julho de 1997 e pela Lei Complementar n. 69, de 30 de dezembro de 2008.

 

Vício formal: reserva de iniciativa

Da violação ao princípio da separação de poderes

O Poder Legislativo Municipal não tem legitimidade para deflagrar processo legislativo para criar e organizar os Conselhos Municipais.

Trata-se, no caso, de atribuição privativa do Chefe do Poder Executivo, de tal forma que o Poder Legislativo invadiu a sua esfera de competência, a quem cabe a iniciativa dos projetos de lei que disponham sobre tais matérias.

Por isso, apenas o Prefeito Municipal tem iniciativa para deflagrar processo legislativo para aprovação de lei com o conteúdo da que se pretende ver declarada como inconstitucional, sob pena de indevida interferência de um Poder sobre o outro.

A Constituição Estadual estabelece, em seu art. 5º, que:

São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

Por sua vez, o art. 47, incisos II, XIV e XVII, da Carta Constitucional paulista veicula princípio de observância obrigatória aos municípios:

Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas nesta Constituição:

II - exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior da administração estadual;

XI - iniciar o processo legislativo, na forma e nos casos previstos nesta Constituição;

XIV - praticar os demais atos de administração, nos limites da competência do Executivo;

XIX - dispor, mediante decreto, sobre:

a) organização e funcionamento da administração estadual, quando não implicar aumento de despesa, nem criação ou extinção de órgãos públicos;

As normas que tratam da reserva de iniciativa, longe de normas de direito estrito, ou de exceção, refletem com sutileza as nuances e a evolução do principio da separação de poderes. As regras de fixação de competência para a iniciativa do processo legislativo têm como corolário o princípio da separação dos poderes, que nada mais é do que o mecanismo jurídico que serve à organização do Estado, definindo órgãos, estabelecendo competências e marcando as relações recíprocas entre esses mesmos órgãos.

Ao Poder Legislativo, como se sabe, é vedada a administração da cidade, tarefa que incumbe, no Município, ao Prefeito, ou ao que, modernamente, chama-se de 'Governo', que tem na lei um dos seus mais relevantes instrumentos. O poder de iniciativa neste campo - administração da cidade - é do Executivo (melhor, do 'Governo'), participando o Poder Legislativo, quando assim determinar a Constituição, apenas a qualidade de aprovar-desaprovar os atos. A hipótese é de administração ordinária, cabendo ao Legislativo apenas o estabelecimento de normas gerais, diretrizes globais, jamais atos pontuais e específicos.

Para Hely Lopes Meirelles, após dizer que “todo o patrimônio municipal fica sob a administração do prefeito”:

“A atribuição típica e predominante da Câmara é a normativa, isto é, a de regular a administração do Município e a conduta dos munícipes no que afeta aos interesses locais. A Câmara não administra o Município; estabelece, apenas, normas de administração. Não executa obras e serviços públicos; dispõe, unicamente, sobre sua execução. Não compõe nem dirige o funcionalismo da Prefeitura; edita, tão-somente, preceitos para sua organização e direção. Não arrecada nem aplica as rendas locais; apenas institui ou altera tributos e autoriza sua arrecadação e aplicação. Não governa o Município; mas regula e controla a atuação governamental do Executivo, personalizado no prefeito.

Eis aí a distinção marcante entre a missão normativa da Câmara e a função executiva do prefeito; o Legislativo delibera e atua com caráter regulatório, genérico e abstrato; o Executivo consubstancia os mandamentos da norma legislativa em atos específicos e concretos de administração”.

A lei sindicada na presente ação, de iniciativa parlamentar, não contém proposição geral e abstrata e, bem analisada, representa ingerência nas prerrogativas do Prefeito Municipal ao vincular, de forma ilegal, a atuação de órgãos públicos municipais. De observar que há verdadeira instituição dos Conselhos Gestores por lei de iniciativa parlamentar.

Como já decidiu esse honrado Órgão Especial, em acórdão da lavra do eminente Desembargador MAURÍCIO FERREIRA LEITE, ao apreciar a Ação Direta de Inconstitucionalidade de Lei n. 146.174.0/9-00 (Julgamento: 19/03/2008), em caso similar, há violação ao princípio da separação de poderes quando a lei de iniciativa parlamentar não possui caráter genérico e abstrato:

“AÇÃO DIRETA DE INCOSNTITUCIONALIDADE - Lei Municipal n. 10.972/2006, de Ribeirão Preto - Legislação, de iniciativa parlamentar, que torna obrigatória a criação de um banco de dados informatizado a respeito dos casos de doenças respiratórias em todas as unidades de saúde do Município - Impossibilidade - Matéria de cunho eminentemente administrativo - Exercício da função executiva ordinária não pressupõe qualquer autorização. Função legislativa da Câmara dos Vereadores possui caráter genérico e abstrato - Ofensa ao princípio da separação dos poderes - Inexistência, ademais, de indicação dos recursos orçamentários para implantação da medida - Ação direta julgada procedente, para declarara inconstitucionalidade da norma”.

O E. STF vem reiteradamente reconhecendo a inconstitucionalidade de leis de iniciativa parlamentar que criam órgãos administrativos. Confira-se:

"Lei do Estado de São Paulo. Criação de Conselho Estadual de Controle e Fiscalização do Sangue - COFISAN, órgão auxiliar da Secretaria de Estado da Saúde. Lei de iniciativa parlamentar. Vício de iniciativa. Inconstitucionalidade reconhecida. Projeto de lei que visa a criação e estruturação de órgão da administração pública: iniciativa do Chefe do Poder Executivo (art. 61, § 1º, II, e, CR/88). Princípio da simetria." (ADI 1.275, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, julgamento em 16-5-07, DJ de 8-6-07).

No mesmo sentido, ainda no E. STF, os seguintes precedentes: ADI 2.808, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgamento em 24-8-06, DJ de 17-11-06; ADI 603, Rel. Min. Eros Grau, julgamento em 17-8-06, DJ de 6-10-06; ADI 1.144, Rel. Min. Eros Grau, julgamento em 16-8-06, DJ de 8-9-06; ADI 1.391, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgamento em 9-5-02, DJ de 7-6-02.

Frise-se que, no presente caso, a lei não se limitou à generalidade, mas dispôs sobre a composição e a periodicidade das reuniões dos Conselhos, de tal forma que implantou e determinou a atuação de órgãos municipais e, ainda, gerando despesas.

Válida a esse propósito a advertência feita por Hely Lopes Meirelles, para quem “todo ato do Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art.2º c/c o art.31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15ªed., atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p.708 e 712).

Vício material: criação de despesa sem correspondente fonte de receita.

Anote-se também que a lei ora impugnada não indica a correspondente fonte de receita para fazer frente às despesas que dela decorrerão.

Por isso, há evidente afronta ao art. 25 da Lei Maior Paulista:

Artigo 25 - Nenhum projeto de lei que implique a criação ou o aumento de despesa pública será sancionado sem que dele conste a indicação dos recursos disponíveis, próprios para atender aos novos encargos.

Em tais situações, esse E. Tribunal tem reconhecido a inconstitucionalidade dos diplomas que incidem em vício dessa natureza, em função da violação ao disposto no art. 25 da Constituição Paulista, aplicável aos Municípios por força do art. 144 da referida Carta Estadual (Confiram-se os julgados proferidos nas ADIs. 18.628-0, 13.796-0, 38.249-0, 36.805.0/2, 38.977.0/0).

Face ao exposto, requer-se:

a) o recebimento da inicial e o regular processamento da presente ação direta até final julgamento;

b) a colheita das informações necessárias do Excelentíssimo Presidente da Câmara Municipal e do Excelentíssimo Prefeito Municipal, sobre as quais protesta por manifestação oportuna;

c) a oitiva do douto Procurador-Geral do Estado, nos termos do art. 90, § 2º, da Constituição Estadual;

d) ao final, seja julgada procedente a presente ação, declarando-se a inconstitucionalidade do art. 162 da Lei Orgânica Municipal de Jacareí e, por arrastamento, das Leis Complementares Municipais n. 2, 4, 11, 14, 25 e 69, que regulamentaram o art. 162, por violação aos arts. 5º, 25, 47, incisos II, XI, XIV e XIX, 111 e 144, todos da Constituição Paulista.

São Paulo, 21 de março de 2011.

 

Fernando Grella Vieira

Procurador-Geral de Justiça

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Protocolado n. 134.313/2010

Assunto: Inconstitucionalidade do art. 162 da Lei Orgânica Municipal de Jacareí e, por arrastamento, das Leis Complementares Municipais n. 2, 4, 11, 14, 25 e 69, que regulamentaram o art. 162

 

 

 

 

1.    Distribua-se a petição inicial da ação direta de inconstitucionalidade.

2.    Oficie-se ao interessado, informando-lhe a propositura da ação, com cópia da petição inicial.

 

 

                    São Paulo, 21 de março de 2011.

 

 

 

 

Fernando Grella Vieira

Procurador-Geral de Justiça

 

 

 

 

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