Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente do Egrégio
Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.
O PROCURADOR-GERAL
DE JUSTIÇA, no exercício da
atribuição prevista no artigo 116, inciso VI, da Lei Complementar n.º 734, de
26 de novembro de 1993, e em conformidade com o disposto nos artigos 125, § 2º, e 129, inciso IV, da
Constituição Federal e artigo 74, inciso VI, e 90, inciso III, da Constituição
Estadual, vem, respeitosamente, promover perante esse Colendo Tribunal de
Justiça a presente AÇÃO DIRETA DE
INCONSTITUCIONALIDADE, postulando a inconstitucionalidade da Lei
Municipal n.º 1.946, de 28 de junho de 2006, Anexo II – Assessor
Administrativo, bem assim de todos os anteriores atos
normativos que contenham previsão dos cargos
ora impugnados, sempre de provimento em comissão (para se evitar o efeito repristinatório), da Câmara
Municipal de Ariranha.
A
lei municipal em questão, manteve 03 (três) cargos de Assessor Administrativo, de provimento em comissão, fls. 60/61.
O art.
1º do Decreto n. 2.311, de 21 de agosto
de 2006, que dispõe sobre atribuição de cargo estabelece:
“ARTIGO 1º - Fica Definido pelo
presente Decreto, as atribuições do seguinte
Cargo do Quadro de Pessoal do Município:
Assessor Administrativo
Atribuições – Assessorar
o Prefeito nas diversas áreas da Administração favorecendo um melhor
intercâmbio entre os diversos setores e órgãos administrativos, sugerindo
providências e encaminhando as determinações do Prefeito aos diversos setores,
cooperando com as respectivas diretorias
em suas áreas de atuação, bem como outras atribuições diretamente ligadas ao
Gabinete do Prefeito”.
Contudo,
houve afronta aos artigos 111 e
115, II e V e 144, da Constituição do Estado de São Paulo. De fato,
assim dispõem as referidas normas
constitucionais:
'Art.
111 - A administração pública
direta, indireta ou funcional, de
qualquer dos
Poderes
do Estado, obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, razoabilidade, finalidade, motivação, interesse
público e eficiência.
Art.
115 - Para a organização da administração pública direta e indireta, inclusive
as fundações instituídas ou mantidas por qualquer dos Poderes do Estado, é
obrigatório o cumprimento das seguintes normas:
II
- a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia, em
concurso público de provas ou de provas e títulos, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão, declarado em lei, de
livre nomeação e exoneração (...)
V – As funções de confiança,
exercidas exclusivamente por servidores
ocupantes de cargo efetivo, e os cargos em comissão, a serem preenchidos por servidores
de carreira nos casos,
condições
e percentuais mínimos previstos em lei,
destinam-se apenas às atribuições de direção,
chefia e assessoramento (...)’
Art. 144 - Os Municípios, com
autonomia política, legislativa, administrativa e financeira
se auto-organizarão por Lei Orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na
Constituição Federal e nesta Constituição.”
A Constituição em vigor consagrou
o Município como entidade federativa indispensável ao nosso sistema federativo,
integrando-o na organização político-administrativa e garantindo-lhe plena autonomia, como se observa da análise
dos arts. 1.º, 18, 29, 30 e 34, VI, “c” da CF (Cf. Alexandre de Moraes, in
“Direito Constitucional”, Atlas, 7.ª ed., p. 261).
Essa
autonomia consagrada aos Municípios
não tem caráter absoluto e soberano, muito pelo contrário, encontra limites nos
princípios emanados dos poderes públicos e dos pactos fundamentais, que
instituíram a soberania de
um povo (Cf. De
Plácido e Silva, “Vocabulário Jurídico”, Forense, Rio de Janeiro, Volume I,
1984, p. 251), sendo definida por José Afonso da Silva como “a capacidade ou
poder de gerir os próprios negócios, dentro de um círculo prefixado por
entidade superior”, que no caso é a Constituição (Cf. “Curso de Direito
Constitucional Positivo”, Malheiros Editores, São Paulo, 8.ª ed., 1992, p.
545).
A
autonomia municipal se assenta em
quatro capacidades básicas: (a)
auto-organização, mediante a elaboração de lei orgânica própria, (b) autogoverno, pela eletividade do
Prefeito e dos Vereadores as respectivas Câmaras Municipais, (c) autolegislação, mediante competência
de elaboração de leis municipais sobre áreas que são reservadas à sua
competência exclusiva e suplementar, (d)
auto-administração ou administração própria, para manter e prestar os serviços
de interesse local (Cf. José Afonso da Silva, ob. cit., p. 546).
Nessas
quatro capacidades, encontram-se caracterizadas a autonomia política
(capacidades de
auto-organização e autogoverno), a autonomia normativa
(capacidade de fazer leis próprias sobre matéria de sua competência), a autonomia administrativa
(administração própria e organização dos serviços locais) e a autonomia
financeira (capacidade de decretação de seus tributos e aplicação de suas
rendas, que é uma característica da auto-administração) (ob. e loc. cits).
Assim,
por força da autonomia administrativa de que foram dotadas, as entidades
municipais são livres para organizar os seus próprios serviços, segundo suas
conveniências locais. E, na organização desses serviços públicos, a
Administração cria cargos e funções,
institui classes e carreiras, faz provimentos e lotações, estabelece
vencimentos e vantagens e delimita os deveres e direitos de seus servidores
(Cf. Hely Lopes Meirelles, in “Direito Municipal Brasileiro”, Malheiros
Editores, São Paulo, 1996, 8.ª edição, p. 420).
Contudo, a liberdade conferida aos
Municípios para organizar
os seus próprios serviços não é ampla e
ilimitada; ela se subordina às seguintes regras fundamentais
e impostergáveis: (a) a que exige
que essa organização se faça por lei; (b)
a que prevê a competência exclusiva da entidade ou Poder interessado; e (c) a
que impõe a observância das normas constitucionais federais pertinentes ao
servidor público (ob. e loc. cits.)
Feitas
essas observações iniciais, verifica-se neste caso que a Câmara Municipal de Ariranha,
manteve a criação dos 03 (três) cargos de Assessor Administrativo de provimento em comissão para o exercício de
funções estritamente técnicas ou profissionais, próprias dos cargos de
provimento efetivo. São funções que denotam a natureza profissional do vínculo
entre seus agentes e a Administração Pública e que, por essa razão, só poderiam
ser preenchidas por concurso público.
Segundo
RUY CIRNE LIMA (“Princípios de
Direito Administrativo, RT, 6.ª ed., p. 162), o funcionário público
profissional se peculiariza por quatro característicos básicos, a saber:
(a) natureza técnica ou prática do serviço prestado; (b)
retribuição de cunho profissional; (c) vinculação jurídica à Administração
Direta; (d) caráter permanente dessa vinculação.
Desse modo, nitidamente
diferenciado dos cargos que reclamam provimento em comissão, as funções
profissionais devem ser exercidas em caráter permanente, ou seja, pelo quadro
estável de servidores públicos municipais, os quais, em conformidade com o
disposto no art. 115, inciso II, da Constituição do Estado de São Paulo, só
podem ser arregimentados por concurso público de provas ou de provas e títulos.
Na
verdade, o cargo em comissão destina-se apenas às atribuições de “direção,
chefia e assessoramento” (CF., art. 37, inciso V, com a redação dada pela EC
n.º 19/98) e tem por finalidade propiciar ao governante o controle das
diretrizes políticas traçadas. Exige, portanto, das pessoas indicadas a titularizá-los, absoluta fidelidade à orientação fixada
pela autoridade nomeante. Em outras palavras, o cargo de
provimento em comissão está diretamente ligado ao dever de lealdade à linha
fixada pelo agente político superior.
Daí
por que a exceção contida na parte final do inciso II, do artigo 115, da
Constituição do Estado de São Paulo - “ressalvadas
as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e
exoneração” -, que, no ponto, reproduz a dicção do artigo 37, inciso II, da
Constituição da República, tem alcance limitado à situações excepcionais,
relativas aos cargos cuja natureza especial justifique a dispensa de concurso
público.
Torna-se
evidente, portanto, que a limitação apontada não tem caráter puramente formal,
de simples e incriteriosa indicação legal de cargos de provimento em comissão,
que pudesse afastar o princípio constitucional da igual acessibilidade aos cargos públicos.
Bem
a propósito, ao estudar com profundidade esse assunto, o jurista MARCIO CAMMAROSANO deixou
anotado que o princípio democrático implica no princípio da
igualdade “e este no princípio da igual
acessibilidade dos cargos públicos, com o que se resguarda também o princípio
da probidade administrativa” (Cf.
“Provimento de Cargos Públicos no Direito Brasileiro”, Revista dos Tribunais,
São Paulo, 1.ª ed., p. 45).
Assim,
para que a lei criadora de um cargo em comissão não venha a se constituir em
burla ao princípio constitucional arrolado, enunciado expressamente pelo artigo
37, incisos I e II, da Constituição da República, deverá observar
criteriosamente a natureza das funções a serem desempenhadas, pois, no dizer de
CELSO ANTONIO BANDEIRA DE MELLO (O
Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade, Editora Revista dos Tribunais, 1.ª
edição, pág. 49), “impende que exista
uma adequação racional entre o tratamento diferençado construído e a razão
diferencial que lhe serviu de supedâneo”.
Afinado
a esse mesmo entendimento, HELY LOPES
MEIRELLES (“Direito Administrativo Brasileiro”, Malheiros,
18.ª ed., p. 378) adverte sobre pronunciamento do Supremo
Tribunal Federal no sentido de que “a
criação de cargo em comissão em moldes artificiais e não condizentes com as
praxes de nosso ordenamento jurídico e administrativo, só pode ser encarada
como inaceitável esvaziamento da exigência constitucional de concurso”.
E,
da mesma forma, já decidiu o Pretório Excelso que “a exigência constitucional
do concurso público não pode ser contornada pela criação arbitrária de cargos
em comissão para o exercício de funções que não pressuponham o vínculo de
confiança que explica o regime de livre nomeação e exoneração que os
caracteriza.” (STF, RTJ 156/793)
Nesse
contexto, não existe qualquer necessidade do estabelecimento de vínculo de
confiança para o exercício do cargo de “Assessor Administrativo”, mantido pela
Lei Complementar n. 1.946/2006, do Município de Ariranha, no Anexo II.
Na
esteira desse raciocínio, é inescusável que a parte final do inciso II do art.
115 da Constituição do Estado de São Paulo, tem alcance circunscrito a
situações em que o requisito da confiança seja predicado indispensável ao
exercício do cargo. De fato, como se trata de uma exceção à regra do concurso
público, a criação de cargos em comissão pressupõe o atendimento do interesse
público e só se justifica para o exercício de funções de “direção, chefia e
assessoramento”, em que seja necessário o estabelecimento de vínculo de
confiança entre a autoridade nomeante e o servidor nomeado. Fora desses parâmetros,
é inconstitucional qualquer tentativa de criação de cargos dessa natureza.
Os
cargos, cuja validade jurídico-constitucional ora se examina, não se apresentam
como cargos ou funções de administração superior, ou mesmo de “direção, chefia
e assessoramento”, que exija relação de confiança ou especial fidelidade às
diretrizes traçadas pela autoridade nomeante, mas sim de cargo comum, de
natureza profissional, que deve ser assumido em caráter permanente por servidores
aprovados em concurso.
Bem a propósito, ao
examinar iniciativa semelhante, o Órgão Especial desse Egrégio Tribunal de
Justiça (ADIn. n.º 11.939-0, relator Des. OLIVEIRA COSTA) entendeu por bem
declarar a inconstitucionalidade material de expressões de lei criadora de
cargos em comissão, cuja natureza não correspondia às características próprias
dessas funções.
O Supremo Tribunal Federal, ao julgar a ADI n.
3706/MS[1], e
apreciar caso semelhante, declarou a inconstitucionalidade de Lei Estadual que
criou cargo em comissão que tem atribuição meramente técnica:
“AÇÃO
DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI ESTADUAL QUE CRIA CARGOS
portanto, não possuem o caráter de assessoramento,
chefia ou direção exigido para tais cargos, nos termos do art. 37, V, da
Constituição Federal. Ação julgada procedente”.
Conclui-se, portanto, que a lei
municipal impugnada no ponto em que criou os cargos de provimento em comissão
em questão, que não dependem para o seu exercício do estabelecimento de
qualquer vínculo de confiança com a autoridade nomeante, são verticalmente
incompatíveis com os arts. 111 e 115, incisos II e V, da Constituição do Estado de São Paulo, cuja
observância é obrigatória pelos Municípios, por força do art. 144 dessa mesma
Carta, impondo-se, por conseguinte, a sua exclusão da ordem constitucional em
vigor.
DA SUSPENSÃO LIMINAR
Quando se
trata do controle normativo abstrato e desde que haja a cumulativa
satisfação dos requisitos concernentes
ao fumus boni juris e ao periculum
in mora, o poder geral de cautela autoriza a suspensão de eficácia da
criação
dos cargos mantidos
no Anexo II da Lei Municipal impugnada,
até o advento da decisão final. Os
cargos de provimento em comissão estão
lotados, gerando despesas para o Erário e causando, diariamente, situações de instabilidade
jurídica, tendo em vista a eiva
na criação dos mesmos.
Neste
caso, tais requisitos se fazem presentes, de modo que está translúcida a
conveniência de sustar, provisoriamente, a eficácia dos dispositivos
questionados. E não é difícil demonstrá-la eis que delineada a situação de risco.
Com
efeito, no contexto das ações diretas e da outorga de provimentos cautelares
para defesa da Constituição, o juízo de
conveniência é um critério relevante, que vem condicionando os
pronunciamentos mais recentes do Supremo Tribunal Federal, preordenados à
suspensão liminar de leis aparentemente inconstitucionais (cf. ADIN-MC 125, j.
15.2.90, DJU de 4.5.90, p. 3.693, rel. Min. Celso de Mello; ADIN-MC 568, RTJ
138/64; ADIN-MC 493, RTJ 142/52; ADIN-MC 540, DJU de 25.9.92, p. 16.182). Necessária,
pois, a Medida Cautelar, que se requer.
Ante o exposto, é a presente AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE,
para, com a juntada das informações
pertinentes do senhor Prefeito e da Câmara
de Vereadores de Ariranha, seja declarada a inconstitucionalidade da Lei
Complementar n. 1.946/2006, do Município de Ariranha, Anexo II, no tocante aos
03 (três) cargos de Assessor Administrativo, bem assim de todos os anteriores
atos normativos que contenham previsão do
cargo ora impugnado, sempre de provimento em comissão (para se evitar o efeito repristinatório), da Câmara
Municipal de Ariranha.
São
Paulo, 19 de maio de 2008.
FERNANDO GRELLA VIEIRA
Procurador-Geral de
Justiça