Excelentíssimo
Senhor Desembargador Presidente do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São
Paulo.
O
Procurador-Geral de Justiça, no exercício da atribuição prevista no art. 116,
inciso VI, da Lei Complementar Estadual n.º 734, de 26 de novembro de 1993 (Lei
Orgânica do Ministério Público de São Paulo), e em conformidade com o disposto
nos arts. 125, § 2.º, e 129, inciso IV, da Lei Maior, e arts. 74, inciso VI, e
90, inciso III, da Constituição Estadual, com base nos elementos de convicção
existentes no incluso protocolado (PGJ n. 140.740/07), vem perante esse Egrégio
Tribunal de Justiça promover a presente
AÇÃO DIRETA DE
INCONSTITUCIONALIDADE
com pedido de liminar, do
art. 79 da Lei Municipal n. 968, de 23 de setembro de 1991, do município de
Gastão Vidigal, pelos motivos e fundamentos a seguir expostos:
O
art. 79 da Lei Municipal n. 968, de 23 de setembro de 1991, dispõe sobre a
gratificação por regime especial de trabalho, nos seguintes termos:
“Artigo 79 –
A gratificação por regime especial de trabalho será devido ao servidor que, por
determinação da autoridade competente, de cada poder ou dirigente superior de
entidade, concordar em permanecer todo o tempo à disposição do serviço público,
podendo, neste caso, ser convocado a trabalhar a qualquer momento, durante as
24 (vinte e quatro) horas do dia.
§ 1º – O
percentual da gratificação será estabelecido no ato que determinar o regime
especial de trabalho e não será superior a 50% (cinqüenta por cento) do
vencimento do servidor.
§ 2º – O
recebimento de gratificação por regime especial de trabalho exclui o direito ao
percebimento do adicional por serviços extraordinários”.
Como
se vê, o art. 79 da Lei Municipal n. 968, de 23 de setembro de 1991, ao dispor
sobre gratificação por regime especial de trabalho, por ato que determinar o
regime especial, permitiu ao Chefe do Executivo conceder gratificações a
qualquer servidor, sem nenhum critério para aferição do interesse público e
exigência do serviço (art. 128, CE), o que macula indelevelmente o princípio da
reserva legal, na medida em que o Prefeito ou a
“autoridade competente” de cada poder ou, ainda, o “dirigente superior de
entidade”, pode aumentar os vencimentos dos servidores por mero ato
administrativo.
Ademais,
registre-se que a forma aberta como foi disciplinada a questão, possibilitando
ao Prefeito Municipal ou à “autoridade competente” de
cada poder ou, ainda, ao “dirigente superior de entidade”, a concessão
de gratificação em até 50% dos vencimentos aos servidores, além de ser inconstitucional
por ofensa ao princípio de reserva legal e ao art. 128 da Lei Maior paulista,
também afronta os princípios da separação dos poderes, da indelegabilidade de
atribuições e da moralidade administrativa.
Enfim,
o questionado dispositivo legal afronta o art.
5º, “caput” e seu § 1º, o art. 19,
inciso III, o art. 24, § 2º, nº 1, o art.111, o art.128, o art.144 e o art. 297,
todos da Constituição do Estado de São Paulo, a seguir reproduzidos:
“Art. 5º -
São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o
Executivo e o Judiciário.
§ 1º - É
vedado a qualquer dos Poderes delegar atribuições.
Art. 19 –
Compete à Assembléia Legislativa, com a sanção do Governador, dispor sobre as
matérias de competência do Estado, ressalvadas as especificadas no artigo 20, e
especialmente sobre: (...)
III – criação
e extinção de cargos públicos e fixação
de vencimentos e vantagens.
Art. 24 -
......... (...)
§ 2º -
Compete, exclusivamente, ao Governador do Estado a iniciativa das leis que
disponham sobre: (...)
1- criação e
extinção de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e
autárquica, bem como a fixação da respectiva remuneração.
Art. 111 – A
administração pública direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes
do Estado, obedecerá aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade,
publicidade, razoabilidade, finalidade, motivação e interesse público.
Art. 128 – As
vantagens de qualquer natureza só poderão ser instituídas por lei e quando
atendam efetivamente ao interesse público e às exigências do serviço.
Art. 144 – Os
Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se
auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na
Constituição Federal e nesta Constituição.
Art. 297 –
São também aplicáveis no Estado, no que couber, os artigos das Emendas à
Constituição Federal que não integram o corpo do texto constitucional, bem como
as alterações efetuadas no texto da Constituição Federal que causem implicações
no âmbito estadual, ainda que não contempladas expressamente pela Constituição
do Estado” (artigo introduzido pela
EC n. 21, de 14.02.2006).
DA VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA RESERVA LEGAL
Da
leitura das disposições constitucionais acima transcritas, verifica-se ser
princípio orientador da Administração Pública direta a obediência irrestrita
aos princípios da legalidade, independência e harmonia entre os Poderes do
Estado e a indelegabilidade das funções constitucionalmente confiadas a cada
órgão de soberania.
Com
efeito, a lei é uma regra jurídica abstrata e geral, pois se destina a regular
uma generalidade de pessoas inseridas em certa situação fática. E toda
atividade administrativa, destinada ao atendimento do bem-comum, pauta-se pela
sujeição do administrador público aos ditames legais, não podendo
desobedecê-los, desviar-se deles ou exceder em seu cumprimento. A liberdade de
ação administrativa se encontra limitada pelo princípio da legalidade, em razão
da garantia aos administrados contra abuso ou excesso de poder[1].
O
dever de cumprimento da lei vincula o administrador, que não tem permissão
para, de acordo com seu arbítrio ou livre vontade, administrar a coisa pública,
sob o risco de ser responsabilizado por improbidade administrativa pois “Administração legítima só é aquela que se
reveste de legalidade e probidade administrativas, no sentido de que tanto
atende às exigências da lei como se conforma com os preceitos da instituição
pública”[2].
Como
bem salientado por Celso Antonio Bandeira de Mello, “em administração não há liberdade de querer (....) a regra é a ausência
de autonomia de vontade”[3].
Pode
a lei, em alguns casos, fixar a liberdade do administrador em atuar, dentro dos
limites que estipula e segundo os critérios de conveniência e oportunidade –
que é a discricionariedade – a qual
não se confunde com o agir em desconformidade com a lei ou mesmo sem nenhum
parâmetro legal – arbitrariedade – pautado pela própria vontade. Ao tratar do
assunto, citando e comentando MONTESQUIEU,
Marcelo Caetano[4]
registra que a doutrina do filósofo francês e de outros intérpretes de sua tese
inscrita no Livro XI do tratado De
l’esprit dês lois, tem num de seus
principais desideratos “encontrar uma
fórmula prática de desconcentrar a autoridade, repartindo-a por vários órgãos
de maneira a acautelar e proteger a liberdade individual contra o arbítrio de
um governante onipotente”.
Em
razão da repartição de Poderes – rígida determinação das funções do Poder
Executivo e do Poder Legislativo, adotada pela Constituição, para evitar-se o
confronto e, principalmente a sobreposição de um Poder ao outro – é possível
verificar as atribuições de cada um dos Poderes, sem olvidar que, muitas vezes,
essas funções residem exatamente em garantir
o equilíbrio dos órgãos do Estado, com o objetivo concreto de impedir a
concentração e o exercício despótico do poder.
Tanto
por isso que o Estado de Direito moderno não aceita a atuação livre dos Poderes
ou órgãos de soberania constituídos, pois se caracteriza pela supremacia da
vontade de seus cidadãos, manifestada por seus representantes e pela atuação
dos Poderes com o respeito às suas atribuições[5].
Aqui há que se mencionar, inclusive, o
respeito aos limites impostos da atuação administrativa e à primazia da lei.
Pode
a Constituição destinar a disciplina sobre certo objeto para tratamento legal,
seja indicando qual órgão fará a disciplina, seja determinando que o legislador
deve disciplinar, exaustivamente, a matéria reservada. É o que a doutrina
denomina de reserva legal.
Segundo
José Celso de Mello Filho, “o princípio da reserva legal decorre de
cláusula constitucional que discrimina as matérias cuja nomeação só pode ser
disciplinada, válida e eficazmente, mediante lei formal. O constituinte, ao
enunciar a exigência de reserva legal, opera uma separação de matérias,
selecionando e indicando aquelas que, por sua natureza, só devam ser tratadas e
desenvolvidas por lei formal. A aplicação do princípio da reserva legal importa
submeter determinadas categorias temáticas ao domínio normativo da lei. Isso
significa que, onde incidir referido princípio, ficará necessariamente
excluída, salvo disposição constitucional em contrário, qualquer possibilidade
de ingerência normativa do Poder Executivo”[6].
Na
verdade, a reserva legal “comporta non solo la presenza della legge nella
materia riservata, ma impone che essa abia un determinato contenuto, in modo da
ridurre e restringere le scelte discrezionali dell’esecutivo e in genere
dell´autorità chiamata a darne applicazione”[7].
Assim,
certos temas, porque essenciais para a vida social, são destinados à
regulamentação pela lei, que é um instrumento de proteção destes mesmos
direitos, diante da manifestação, representada, da vontade popular. E este
instrumento pode ser utilizado com a participação de diversos órgãos, a uns
definindo a iniciativa, a outros o restante do processo legislativo, ora a
exclusividade ou mesmo a concorrência de atividades. Nas palavras de Manuel Afonso Vaz, “no fundo, a reserva
da lei significava a exigência de que as matérias impostas ao Poder (Monarca),
por razões de Sociedade (de vontade popular), competissem à Representação
popular (Parlamento), o que não obstava a que matérias de governo continuassem
a se matérias de Governo (Monarca)” (ob. cit., p. 338).
Ao
discorrer sobre os poderes e as funções do Estado, Marcelo Caetano[8],
assinala que “da idéia da colaboração
entre órgãos, a cada um dos quais em princípio estaria confiado o desempenho
exclusivo de certa função do Estado, passou-se à da divisão dos poderes, ou,
mais rigorosamente, à divisão de cada função por vários órgãos distintos, de
maneira a ser necessário o concurso e a colaboração deles para a prática de
qualquer ato fundamental da vida do Estado. É assim que a função legislativa,
por exemplo, pode ser dividida entre o Governo a quem se atribua a iniciativa
das leis, o Parlamento que as discuta e vote e o Chefe de Estado que as
sancione ou promulgue com direito de veto”.
Deste
modo, ainda que iniciado o processo legislativo pelo Chefe do Poder Executivo,
há algumas matérias subtraídas ao arbítrio parlamentar, para sua conversão em
lei; esse é mecanismo pelo qual a vontade dos cidadãos se concretiza através
dos seus legítimos representantes.
É
inegável que a atuação dos Poderes não limita a chamada reserva da lei, assim
entendida como um “espaço de expressão política da Representação popular,
constituindo matérias subtraídas ao arbítrio do Monarca, porque a se são
matérias de lei” (Manuel Afonso Vaz, ob. cit., p. 137), assegurando os direitos
fundamentais e permitindo a participação democrática.
Isto porque interessa ao
Estado de Direito moderno o respeito a certas matérias que devem ser
regulamentadas exclusivamente por lei, excluindo o poder do administrador, seja
por limitar a discricionariedade, seja para evitar o arbítrio, circunscrevendo
a atividade normativa do Poder Executivo (Federico Sorrentino, Manuale cit., p.
143).
O
objetivo da reserva legal é, portanto, delimitar a atividade dos Poderes
constituídos, destinando certos temas para a
disciplina legal – isto é, uma reserva material ou orgânica da lei – e
não para a regulamentação do Chefe do Poder Executivo.
Neste
passo, a separação dos poderes é elemento do Estado de Direito, um
princípio-valor que extrapola o direito posto, sendo que este deve se conformar
com os princípios jurídicos fundamentais.
A
reserva de lei pode ser relativa no caso de haver um campo deixado pelo
legislador na possibilidade de haver discricionariedade do administrador, ou
pode ser absoluta, quando esta
possibilidade não existe, restando ao administrador apenas a execução da
lei (Federico Sorrentino, Manuale cit., pp. 144-145). Nessa mesma linha, José
Celso de Mello Filho (ob. e loc.cits.) preceitua que “há duas modalidades de
reserva de lei: (a) reserva
absoluta, que não admite disciplinação normativa da matéria, senão mediante lei
formal, (b) reserva relativa, que
legitima, observados os limites e as condições fixadas previamente em lei, a
intervenção normativa do Poder Executivo.”
A
fixação de vencimentos e vantagens para os servidores públicos deve ser
efetivada por lei, de iniciativa reservada ao Chefe do Poder Executivo e
participação do Poder Legislativo, na forma prevista nos artigos 19, inciso
III, e 24, § 2º, 1, da Constituição do Estado de São Paulo.
A
previsão desta dupla participação consubstancia evidência do princípio da
separação dos Poderes, exigindo que a
totalidade do tema referente à fixação de gratificação seja realizado pelos
dois Poderes. Não se pode admitir a inércia voluntário, ou mesmo a
proibição de atuar de um dos Poderes em favor de outro que, ao contrário de
desenvolver dupla atividade, estará concretizando ofensa ao princípio da
indelegabilidade de atribuições.
No
caso em tela, o dispositivo legal questionado, ainda que indiretamente, excluiu
a participação necessária do Poder Legislativo para a concessão da
gratificação, concentrando esta atividade apenas no Poder Executivo, dando-lhe
amplos poderes para decidir sobre matéria que o constituinte reservou com
exclusividade à disciplina normativa da lei formal.
Mas
não é só. Qualquer vantagem a ser estabelecida para o servidor público deve
preencher os requisitos dispostos no binômio interesse público – exigências do
serviço, conforme preceituado pelo artigo 128 da Carta Paulista, para que se
esteja atuando com indispensável probidade administrativa, fixando todos os
parâmetros, exaustivamente, na lei. Não há campo residual de concessão de
benefício fundado em outro critério que não seja o acima indicado, equilibrando
dois interesses, vale dizer, “a liberdade
de ação, que deve caracterizar as atividades administrativas... e as
maiores garantias para os administrados, que precisam proteger-se contra os
possíveis abusos da administração” (José Cretella Júnior, Tratado cit., p. 18).
O
art. 79 da Lei Municipal n. 968, de 23 de setembro de 1991, permite,
diversamente da finalidade da instituição do benefício, que a qualquer pretexto
o servidor receba vantagem, segundo a vontade do Prefeito, da “autoridade competente” de cada poder ou, ainda, do
“dirigente superior de entidade”, e em percentual por ele arbitrado, sem
qualquer parâmetro legal, excluindo o Poder Legislativo.
Conclui-se,
assim, que permitir uma atuação livre do Chefe do Poder Executivo ou de outras
autoridades na concessão de gratificações configura nítida ofensa aos artigos
5º caput e § 1º, 19, inciso III, 24,
§ 2º, nº1, 111 e 128, todos da Constituição do Estado de São Paulo, de
observância obrigatória pelos Municípios, por força do disposto nos artigos 144
e 297, da mesma Carta Estadual, este último introduzido pela EC n. 21, de
14.02.2006.
A idéia de legalidade nos atos da Administração,
contemplada nos dispositivos acima referidos, da Constituição do Estado, tem
lastro também no art.37 caput, e no respectivo inciso X da CF/88 (red.
EC 19/98), pelo qual “a remuneração dos servidores públicos e o subsídio de
que trata o §4º do art.39 somente poderão ser fixados ou alterados por lei
específica, observada a iniciativa privativa em cada caso, assegurada a revisão
geral anual, sempre na mesma data e sem distinção de índices”.
A propósito da reserva de lei em matéria de remuneração de
servidores públicos já se pronunciou o Pretório Excelso:
“Em tema de remuneração dos servidores públicos, estabelece
a Constituição o princípio da reserva de lei. É dizer, em tema de remuneração
dos servidores públicos, nada será feito senão mediante lei, lei específica.
CF, art. 37, X, art. 51, IV, art. 52, XIII. Inconstitucionalidade formal do Ato
Conjunto n. 01, de 5-11-2004, das Mesas do Senado Federal e da Câmara dos
Deputados. Cautelar deferida." (ADI
3.369-MC, Rel. Min. Carlos Velloso, julgamento em 16-12-04, DJ de 1º-2-05)
Este também é o entendimento da doutrina, anotando Hely Lopes
Meirelles que “(...) Os vencimentos – padrão e vantagens - só por lei
específica (reserva legal específica) podem ser fixados ou alterados (art.37,
X), segundo as conveniências e possibilidades da Administração” (Direito
administrativo brasileiro, 33ªed., São Paulo, Malheiros, 2007, p.483;
atualização de Eurico de Andrade Azevedo, Délcio Balestero Aleixo, e José
Emmanuel Burle Filho). No mesmo sentido são as ponderações de Celso Antônio
Bandeira de Mello, Curso de direito administrativo, 12ª ed., 2ª tir.,
São Paulo, Malheiros, 2000, p.239.
Assim, ao permitir que a fixação de vantagens decorra não
de lei, mas de ato administrativo do próprio Poder Executivo, o Legislador
Municipal delegou função indelegável – de legislar -, violando o princípio da
reserva legal que vigora nessa matéria.
DA VIOLAÇÃO DA MORALIDADE ADMINISTRATIVA
O art. 79 da Lei Municipal n. 968, de 23 de setembro
de 1991, do município de Gastão Vidigal também viola
o princípio da moralidade administrativa, previsto no art. 111 da Constituição
do Estado, aplicável aos Municípios por força do art. 144 da Carta Paulista.
Em oportuna síntese, anota Maria Sylvia Zanella Di Pietro
que “sempre que em matéria administrativa se verificar que o comportamento
da Administração ou do administrado que com ela se relaciona juridicamente,
embora em consonância com a lei, ofende a moral, os bons costumes, as regras de
boa administração, os princípios de justiça e de equidade, a idéia comum de
honestidade, estará havendo ofensa ao princípio da moralidade administrativa”
(Direito Administrativo, 19ª ed., São Paulo, Atlas, 2006, p.94).
Não há dúvida de que, na hipótese, houve ofensa à
moralidade administrativa. O legislador municipal optou por consagrar a
liberdade mais ampla possível para que o Chefe do Executivo, por simples ato
administrativo, possa determinar a fixação de gratificação de até 50% do valor
de referência salarial respectivo.
Tamanha liberdade de ação administrativa, que não se
confunde com discrição, identificando-se sim com o arbítrio, contraria a
necessidade de respeito a valores imanentes à gestão de verbas públicas.
Abre-se ensejo para favorecimentos que não se coadunam com a administração de
recursos que, em última análise pertencem à própria sociedade local.
Tal solução fere uma concepção mais ampla de justiça e
equidade, e por isso também ofende a moralidade administrativa, o que se
evidencia ainda mais quando se constata que não há quaisquer critérios
objetivos para que as aludidas gratificações sejam concedidas.
DA VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA IMPESSOALIDADE
O
dispositivo impugnado colida, ademais, do princípio da impessoalidade,
assentado no art. 111 da Constituição do Estado de São Paulo.
Como bem anotou Celso Antônio Bandeira de Mello, neste
princípio “se traduz a idéia de que a Administração tem que tratar a todos
os administrados sem discriminações, benéficas ou detrimentosas. Nem
favoritismo nem perseguições são toleráveis. Simpatias ou animosidades
pessoais, políticas ou ideológicas não podem interferir na atuação
administrativa e muito menos interesses sectários, de facções ou grupos de
qualquer espécie. O princípio em causa não é senão o próprio princípio da
igualdade ou isonomia” (Curso de direito administrativo, 12ªed., 2ª
tir., São Paulo, Malheiros, 2000, p.84).
No caso em exame, verifica-se a violação do princípio da
impessoalidade. O absoluto subjetivismo na concessão ou revogação do benefício
previsto no ato normativo - a denominada gratificação especial, demonstra que
essa faculdade do administrador presta-se a servir como instrumento, para a
instituição de benefícios indevidos àqueles que ostentam relações pessoais com
o gestor público momentaneamente no posto de Chefe do Executivo.
A ausência de critérios objetivos para a fixação do benefício
indica claramente a quebra do princípio da impessoalidade, que deve imperar no
âmbito da Administração Pública.
DA VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA RAZOABILIDADE
Restou
violado também o princípio da razoabilidade, que encontra assento no art.111 e
no art.128 da Constituição do Estado de São Paulo.
Note-se que o art. 128 da Carta Paulista determina
expressamente que “as vantagens de qualquer natureza só poderão ser
instituídas por lei e quando atendam efetivamente ao interesse público e às
exigências do serviço”.
O
dispositivo legal questionado por meio da presente ação direta cria a possibilidade de fixação de gratificação especial
para hipóteses absolutamente indefinidas.
Essa abertura de possibilidades sem qualquer indicação
hipotética de real necessidade demonstra que a solução prevista na lei fere o
princípio da razoabilidade, ao criar um ônus desnecessário, inapropriado, e
descabido para a Administração Pública.
Não se pode afirmar que a fixação de gratificações, nestes
termos, por atos administrativos, atenderá a necessidade de respeito ao
interesse público e às exigências do serviço.
Como anota Diogo de Figueiredo Moreira Neto, o princípio da
razoabilidade “visa a afastar o arbítrio que decorrerá da desadequação entre
meios e fins”, tendo importância tanto quando da criação da norma como
quando de sua aplicação. Ademais, prossegue o autor, “o princípio da
proporcionalidade, uma vez admitido como um princípio substantivo autônomo,
como é considerado na doutrina alemã do Direito Público, e não apenas com o
sentido estrito contido no conceito de razoabilidade, prescreve,
especificamente, o justo equilíbrio entre os sacrifícios e os benefícios
resultantes da ação do Estado” (Curso de direito administrativo,
14ªed., Rio de Janeiro, Forense, 2006, p.101). Também nesse sentido Maria
Sylvia Zanella Di Pietro (Direito administrativo, 19ªed., São Paulo,
Atlas, 2006, p.95).
Em sede doutrinária, Gilmar Ferreira Mendes, examinando a
aplicação do princípio da proporcionalidade pelo Pretório Excelso, anotou “de
maneira inequívoca a possibilidade de se declarar a inconstitucionalidade da
lei em caso de sua dispensabilidade (inexigibilidade), inadequação (falta de
utilidade para o fim perseguido) ou de ausência de razoabilidade em sentido
estrito (desproporção entre o objetivo perseguido e o ônus imposto ao
atingido)” (cf. A proporcionalidade na jurisprudência do STF,
publicado em Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade,
São Paulo, Instituto Brasileiro de Direito Constitucional e Celso Bastos
Editor, 1998, p.83).
Na hipótese em exame, absolutamente dispensável a previsão
legal impugnada, pois a criação de vantagens pessoais para servidores exige a
edição de lei (strictu senso). Ademais, é inadequada a previsão
normativa, bem como desproporcional o ônus imposto ao interesse público, com
relação ao objetivo perseguido (dar ao Chefe do Executivo ou à autoridade
competente, de cada poder ou dirigente superior de entidade, ampla liberdade
para beneficiar servidores à sua livre escolha).
Daí a violação ao art. 111 e ao art. 128, ambos da
Constituição do Estado de São Paulo.
DO PEDIDO DE LIMINAR
Remanesce,
no presente caso, a necessidade da concessão de “MEDIDA LIMINAR”. Isso porque, quando se trata do controle normativo
abstrato, e uma vez verificada a cumulativa satisfação dos pressupostos legais
concernentes ao “fumus boni júris” e
ao “periculum in mora”, o poder geral
de cautela autoriza a suspensão da eficácia do ato normativo impugnado, até o
final julgamento da ação direta de inconstitucionalidade.
A
plausibilidade jurídica da tese exposta na inicial é evidente, não admitindo
maiores questionamentos, ante a adoção, por lei, de previsões e critérios
permanentes e nitidamente ofensivos a diversos princípios constitucionais.
E,
por outro lado, também está delineada a situação
de risco, caracterizadora do ‘periculum
in mora’, tanto mais porque está demonstrado nos autos que servidores
públicos vêm recebendo gratificações flagrantemente indevidas, o que se
constata, por exemplo, do documento de fls. 06/07.
Do
exposto, requeiro seja concedida liminarmente a suspensão dos efeitos do
dispositivo legal impugnado, e aguardo seja autorizado o processamento da
presente ação, colhendo-se as informações pertinentes do Prefeito e da Câmara
Municipal de Gastão Vidigal, sobre as quais me manifestarei oportunamente,
vindo, no final, a ser declarada a inconstitucionalidade material do art. 79 da
Lei Municipal n. 968, de 23 de setembro de 1991, devendo, após, ser oficiado
aos membros daquela Comuna solicitando a adoção das providências necessárias à
suspensão definitiva dos efeitos de sua execução.
São Paulo, 6 de maio de 2008.
FERNANDO GRELLA VIEIRA
Procurador-Geral de Justiça
[1] José Cretella Jr., “Tratado de Direito Administrativo”, Rio de Janeiro, Forense, 1996, v. I, p. 18.
[2] Hely Lopes Meirelles, Direito Administrativo Brasileiro, São Paulo, Malheiros, 1996, p. 83.
[3] “Ato Administrativo e Direitos dos Administrados”, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1981, p 13.
[4] DIREITO CONSTITUCIONAL – Direito Comparado - Teoria Geral do Estado e Da Constituição – As Constituições do Brasil. Forense: Rio de Janeiro, 1987, 2ª Ed., p. 243.
[5] Manuel Afonso Vaz, “Lei e Reserva da Lei”, Porto, 1992, p. 245.
[6] Constituição Federal Anotada, Saraiva, 2ª ed., p. 429.
[7] Federico Sorrentino, “Manuale di Diritto Pubblico”, Bologna, il Mulino, 1997, p. 145.
[8] DIREITO CONSTITUCIONAL – Direito Comparado - Teoria Geral do Estado e Da Constituição – As Constituições do Brasil. Forense: Rio de Janeiro, 1987, 2ª Ed. Pág.245.