Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

 

 

 

 

 

 

 

                            O Procurador-Geral de Justiça, no exercício da atribuição prevista no art. 116, inciso VI, da Lei Complementar Estadual n.º 734, de 26 de novembro de 1993 (Lei Orgânica do Ministério Público de São Paulo), e em conformidade com o disposto nos arts. 125, § 2.º, e 129, inciso IV, da Lei Maior, e arts. 74, inciso VI, e 90, inciso III, da Constituição Estadual, com base nos elementos de convicção existentes no incluso protocolado (PGJ n. 140.740/07), vem perante esse Egrégio Tribunal de Justiça promover a presente

 

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE

 

com pedido de liminar, do art. 79 da Lei Municipal n. 968, de 23 de setembro de 1991, do município de Gastão Vidigal, pelos motivos e fundamentos a seguir expostos:

 

 

 

                            O art. 79 da Lei Municipal n. 968, de 23 de setembro de 1991, dispõe sobre a gratificação por regime especial de trabalho, nos seguintes termos:

“Artigo 79 – A gratificação por regime especial de trabalho será devido ao servidor que, por determinação da autoridade competente, de cada poder ou dirigente superior de entidade, concordar em permanecer todo o tempo à disposição do serviço público, podendo, neste caso, ser convocado a trabalhar a qualquer momento, durante as 24 (vinte e quatro) horas do dia.

§ 1º – O percentual da gratificação será estabelecido no ato que determinar o regime especial de trabalho e não será superior a 50% (cinqüenta por cento) do vencimento do servidor.

§ 2º – O recebimento de gratificação por regime especial de trabalho exclui o direito ao percebimento do adicional por serviços extraordinários”.

 

                            Como se vê, o art. 79 da Lei Municipal n. 968, de 23 de setembro de 1991, ao dispor sobre gratificação por regime especial de trabalho, por ato que determinar o regime especial, permitiu ao Chefe do Executivo conceder gratificações a qualquer servidor, sem nenhum critério para aferição do interesse público e exigência do serviço (art. 128, CE), o que macula indelevelmente o princípio da reserva legal, na medida em que o Prefeito ou a “autoridade competente” de cada poder ou, ainda, o “dirigente superior de entidade”, pode aumentar os vencimentos dos servidores por mero ato administrativo.

                            Ademais, registre-se que a forma aberta como foi disciplinada a questão, possibilitando ao Prefeito Municipal ou à “autoridade competente” de cada poder ou, ainda, ao “dirigente superior de entidade”, a concessão de gratificação em até 50% dos vencimentos aos servidores, além de ser inconstitucional por ofensa ao princípio de reserva legal e ao art. 128 da Lei Maior paulista, também afronta os princípios da separação dos poderes, da indelegabilidade de atribuições e da moralidade administrativa.

                            Enfim, o questionado dispositivo legal afronta o art. 5º, “caput” e seu § 1º, o art. 19, inciso III, o art. 24, § 2º, nº 1, o art.111, o art.128, o art.144 e o art. 297, todos da Constituição do Estado de São Paulo, a seguir reproduzidos:

“Art. 5º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

§ 1º - É vedado a qualquer dos Poderes delegar atribuições.

Art. 19 – Compete à Assembléia Legislativa, com a sanção do Governador, dispor sobre as matérias de competência do Estado, ressalvadas as especificadas no artigo 20, e especialmente sobre: (...)

III – criação e extinção de cargos públicos e fixação de vencimentos e vantagens.

Art. 24 - ......... (...)

§ 2º - Compete, exclusivamente, ao Governador do Estado a iniciativa das leis que disponham sobre: (...)

1- criação e extinção de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica, bem como a fixação da respectiva remuneração.

Art. 111 – A administração pública direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes do Estado, obedecerá aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, razoabilidade, finalidade, motivação e interesse público.

Art. 128 – As vantagens de qualquer natureza só poderão ser instituídas por lei e quando atendam efetivamente ao interesse público e às exigências do serviço.

Art. 144 – Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.

Art. 297 – São também aplicáveis no Estado, no que couber, os artigos das Emendas à Constituição Federal que não integram o corpo do texto constitucional, bem como as alterações efetuadas no texto da Constituição Federal que causem implicações no âmbito estadual, ainda que não contempladas expressamente pela Constituição do Estado” (artigo introduzido pela EC n. 21, de 14.02.2006).

 

DA VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA RESERVA LEGAL

                            Da leitura das disposições constitucionais acima transcritas, verifica-se ser princípio orientador da Administração Pública direta a obediência irrestrita aos princípios da legalidade, independência e harmonia entre os Poderes do Estado e a indelegabilidade das funções constitucionalmente confiadas a cada órgão de soberania.

                            Com efeito, a lei é uma regra jurídica abstrata e geral, pois se destina a regular uma generalidade de pessoas inseridas em certa situação fática. E toda atividade administrativa, destinada ao atendimento do bem-comum, pauta-se pela sujeição do administrador público aos ditames legais, não podendo desobedecê-los, desviar-se deles ou exceder em seu cumprimento. A liberdade de ação administrativa se encontra limitada pelo princípio da legalidade, em razão da garantia aos administrados contra abuso ou excesso de poder[1].

                            O dever de cumprimento da lei vincula o administrador, que não tem permissão para, de acordo com seu arbítrio ou livre vontade, administrar a coisa pública, sob o risco de ser responsabilizado por improbidade administrativa pois “Administração legítima só é aquela que se reveste de legalidade e probidade administrativas, no sentido de que tanto atende às exigências da lei como se conforma com os preceitos da instituição pública[2].

                            Como bem salientado por Celso Antonio Bandeira de Mello, “em administração não há liberdade de querer (....) a regra é a ausência de autonomia de vontade[3].

                            Pode a lei, em alguns casos, fixar a liberdade do administrador em atuar, dentro dos limites que estipula e segundo os critérios de conveniência e oportunidade – que é a discricionariedade – a qual não se confunde com o agir em desconformidade com a lei ou mesmo sem nenhum parâmetro legal – arbitrariedade – pautado pela própria vontade. Ao tratar do assunto, citando e comentando MONTESQUIEU, Marcelo Caetano[4] registra que a doutrina do filósofo francês e de outros intérpretes de sua tese inscrita no Livro XI do tratado De l’esprit dês lois,  tem num de seus principais desideratos “encontrar uma fórmula prática de desconcentrar a autoridade, repartindo-a por vários órgãos de maneira a acautelar e proteger a liberdade individual contra o arbítrio de um governante onipotente”. 

                            Em razão da repartição de Poderes – rígida determinação das funções do Poder Executivo e do Poder Legislativo, adotada pela Constituição, para evitar-se o confronto e, principalmente a sobreposição de um Poder ao outro – é possível verificar as atribuições de cada um dos Poderes, sem olvidar que, muitas vezes, essas funções residem exatamente em garantir  o equilíbrio dos órgãos do Estado, com o objetivo concreto de impedir a concentração e o exercício despótico do poder.

                            Tanto por isso que o Estado de Direito moderno não aceita a atuação livre dos Poderes ou órgãos de soberania constituídos, pois se caracteriza pela supremacia da vontade de seus cidadãos, manifestada por seus representantes e pela atuação dos Poderes com o respeito às suas atribuições[5]. Aqui há que se mencionar, inclusive, o respeito aos limites impostos da atuação administrativa e à primazia da lei.

                            Pode a Constituição destinar a disciplina sobre certo objeto para tratamento legal, seja indicando qual órgão fará a disciplina, seja determinando que o legislador deve disciplinar, exaustivamente, a matéria reservada. É o que a doutrina denomina de reserva legal.

                            Segundo José Celso de Mello Filho, “o princípio da reserva legal decorre de cláusula constitucional que discrimina as matérias cuja nomeação só pode ser disciplinada, válida e eficazmente, mediante lei formal. O constituinte, ao enunciar a exigência de reserva legal, opera uma separação de matérias, selecionando e indicando aquelas que, por sua natureza, só devam ser tratadas e desenvolvidas por lei formal. A aplicação do princípio da reserva legal importa submeter determinadas categorias temáticas ao domínio normativo da lei. Isso significa que, onde incidir referido princípio, ficará necessariamente excluída, salvo disposição constitucional em contrário, qualquer possibilidade de ingerência normativa do Poder Executivo[6].

                            Na verdade, a reserva legal “comporta non solo la presenza della legge nella materia riservata, ma impone che essa abia un determinato contenuto, in modo da ridurre e restringere le scelte discrezionali dell’esecutivo e in genere dell´autorità chiamata a darne applicazione”[7].

                            Assim, certos temas, porque essenciais para a vida social, são destinados à regulamentação pela lei, que é um instrumento de proteção destes mesmos direitos, diante da manifestação, representada, da vontade popular. E este instrumento pode ser utilizado com a participação de diversos órgãos, a uns definindo a iniciativa, a outros o restante do processo legislativo, ora a exclusividade ou mesmo a concorrência de atividades. Nas palavras de Manuel Afonso Vaz, “no fundo, a reserva da lei significava a exigência de que as matérias impostas ao Poder (Monarca), por razões de Sociedade (de vontade popular), competissem à Representação popular (Parlamento), o que não obstava a que matérias de governo continuassem a se matérias de Governo (Monarca)” (ob. cit., p. 338).

                            Ao discorrer sobre os poderes e as funções do Estado, Marcelo Caetano[8], assinala que “da idéia da colaboração entre órgãos, a cada um dos quais em princípio estaria confiado o desempenho exclusivo de certa função do Estado, passou-se à da divisão dos poderes, ou, mais rigorosamente, à divisão de cada função por vários órgãos distintos, de maneira a ser necessário o concurso e a colaboração deles para a prática de qualquer ato fundamental da vida do Estado. É assim que a função legislativa, por exemplo, pode ser dividida entre o Governo a quem se atribua a iniciativa das leis, o Parlamento que as discuta e vote e o Chefe de Estado que as sancione ou promulgue com direito de veto”.

                            Deste modo, ainda que iniciado o processo legislativo pelo Chefe do Poder Executivo, há algumas matérias subtraídas ao arbítrio parlamentar, para sua conversão em lei; esse é mecanismo pelo qual a vontade dos cidadãos se concretiza através dos seus legítimos representantes.

                            É inegável que a atuação dos Poderes não limita a chamada reserva da lei, assim entendida como um “espaço de expressão política da Representação popular, constituindo matérias subtraídas ao arbítrio do Monarca, porque a se são matérias de lei” (Manuel Afonso Vaz, ob. cit., p. 137), assegurando os direitos fundamentais e permitindo a participação democrática.

                            Isto porque interessa ao Estado de Direito moderno o respeito a certas matérias que devem ser regulamentadas exclusivamente por lei, excluindo o poder do administrador, seja por limitar a discricionariedade, seja para evitar o arbítrio, circunscrevendo a atividade normativa do Poder Executivo (Federico Sorrentino, Manuale cit., p. 143).

                            O objetivo da reserva legal é, portanto, delimitar a atividade dos Poderes constituídos, destinando certos temas para a  disciplina legal – isto é, uma reserva material ou orgânica da lei – e não para a regulamentação do Chefe do Poder Executivo.

                            Neste passo, a separação dos poderes é elemento do Estado de Direito, um princípio-valor que extrapola o direito posto, sendo que este deve se conformar com os princípios jurídicos fundamentais.

                            A reserva de lei pode ser relativa no caso de haver um campo deixado pelo legislador na possibilidade de haver discricionariedade do administrador, ou pode ser absoluta, quando esta  possibilidade não existe, restando ao administrador apenas a execução da lei (Federico Sorrentino, Manuale cit., pp. 144-145). Nessa mesma linha, José Celso de Mello Filho (ob. e loc.cits.) preceitua que “há duas modalidades de reserva de lei: (a) reserva absoluta, que não admite disciplinação normativa da matéria, senão mediante lei formal, (b) reserva relativa, que legitima, observados os limites e as condições fixadas previamente em lei, a intervenção normativa do Poder Executivo.”

                            A fixação de vencimentos e vantagens para os servidores públicos deve ser efetivada por lei, de iniciativa reservada ao Chefe do Poder Executivo e participação do Poder Legislativo, na forma prevista nos artigos 19, inciso III, e 24, § 2º, 1, da Constituição do Estado de São Paulo.

                            A previsão desta dupla participação consubstancia evidência do princípio da separação dos Poderes, exigindo que a totalidade do tema referente à fixação de gratificação seja realizado pelos dois Poderes. Não se pode admitir a inércia voluntário, ou mesmo a proibição de atuar de um dos Poderes em favor de outro que, ao contrário de desenvolver dupla atividade, estará concretizando ofensa ao princípio da indelegabilidade de atribuições.

                            No caso em tela, o dispositivo legal questionado, ainda que indiretamente, excluiu a participação necessária do Poder Legislativo para a concessão da gratificação, concentrando esta atividade apenas no Poder Executivo, dando-lhe amplos poderes para decidir sobre matéria que o constituinte reservou com exclusividade à disciplina normativa da lei formal.

                            Mas não é só. Qualquer vantagem a ser estabelecida para o servidor público deve preencher os requisitos dispostos no binômio interesse público – exigências do serviço, conforme preceituado pelo artigo 128 da Carta Paulista, para que se esteja atuando com indispensável probidade administrativa, fixando todos os parâmetros, exaustivamente, na lei. Não há campo residual de concessão de benefício fundado em outro critério que não seja o acima indicado, equilibrando dois interesses, vale dizer, “a liberdade de ação, que deve caracterizar as atividades administrativas... e as maiores garantias para os administrados, que precisam proteger-se contra os possíveis abusos da administração” (José Cretella Júnior, Tratado cit., p. 18).

                            O art. 79 da Lei Municipal n. 968, de 23 de setembro de 1991, permite, diversamente da finalidade da instituição do benefício, que a qualquer pretexto o servidor receba vantagem, segundo a vontade do Prefeito, da “autoridade competente” de cada poder ou, ainda, do “dirigente superior de entidade”, e em percentual por ele arbitrado, sem qualquer parâmetro legal, excluindo o Poder Legislativo.

                            Conclui-se, assim, que permitir uma atuação livre do Chefe do Poder Executivo ou de outras autoridades na concessão de gratificações configura nítida ofensa aos artigos 5º caput e § 1º, 19, inciso III, 24, § 2º, nº1, 111 e 128, todos da Constituição do Estado de São Paulo, de observância obrigatória pelos Municípios, por força do disposto nos artigos 144 e 297, da mesma Carta Estadual, este último introduzido pela EC n. 21, de 14.02.2006.

                            A idéia de legalidade nos atos da Administração, contemplada nos dispositivos acima referidos, da Constituição do Estado, tem lastro também no art.37 caput, e no respectivo inciso X da CF/88 (red. EC 19/98), pelo qual “a remuneração dos servidores públicos e o subsídio de que trata o §4º do art.39 somente poderão ser fixados ou alterados por lei específica, observada a iniciativa privativa em cada caso, assegurada a revisão geral anual, sempre na mesma data e sem distinção de índices”.

                            A propósito da reserva de lei em matéria de remuneração de servidores públicos já se pronunciou o Pretório Excelso:

                            Em tema de remuneração dos servidores públicos, estabelece a Constituição o princípio da reserva de lei. É dizer, em tema de remuneração dos servidores públicos, nada será feito senão mediante lei, lei específica. CF, art. 37, X, art. 51, IV, art. 52, XIII. Inconstitucionalidade formal do Ato Conjunto n. 01, de 5-11-2004, das Mesas do Senado Federal e da Câmara dos Deputados. Cautelar deferida." (ADI 3.369-MC, Rel. Min. Carlos Velloso, julgamento em 16-12-04, DJ de 1º-2-05)

                            Este também é o entendimento da doutrina, anotando Hely Lopes Meirelles que “(...) Os vencimentos – padrão e vantagens - só por lei específica (reserva legal específica) podem ser fixados ou alterados (art.37, X), segundo as conveniências e possibilidades da Administração” (Direito administrativo brasileiro, 33ªed., São Paulo, Malheiros, 2007, p.483; atualização de Eurico de Andrade Azevedo, Délcio Balestero Aleixo, e José Emmanuel Burle Filho). No mesmo sentido são as ponderações de Celso Antônio Bandeira de Mello, Curso de direito administrativo, 12ª ed., 2ª tir., São Paulo, Malheiros, 2000, p.239.

                            Assim, ao permitir que a fixação de vantagens decorra não de lei, mas de ato administrativo do próprio Poder Executivo, o Legislador Municipal delegou função indelegável – de legislar -, violando o princípio da reserva legal que vigora nessa matéria.

 

DA VIOLAÇÃO DA MORALIDADE ADMINISTRATIVA

                            O art. 79 da Lei Municipal n. 968, de 23 de setembro de 1991, do município de Gastão Vidigal também viola o princípio da moralidade administrativa, previsto no art. 111 da Constituição do Estado, aplicável aos Municípios por força do art. 144 da Carta Paulista.

                            Em oportuna síntese, anota Maria Sylvia Zanella Di Pietro que “sempre que em matéria administrativa se verificar que o comportamento da Administração ou do administrado que com ela se relaciona juridicamente, embora em consonância com a lei, ofende a moral, os bons costumes, as regras de boa administração, os princípios de justiça e de equidade, a idéia comum de honestidade, estará havendo ofensa ao princípio da moralidade administrativa” (Direito Administrativo, 19ª ed., São Paulo, Atlas, 2006, p.94).

                            Não há dúvida de que, na hipótese, houve ofensa à moralidade administrativa. O legislador municipal optou por consagrar a liberdade mais ampla possível para que o Chefe do Executivo, por simples ato administrativo, possa determinar a fixação de gratificação de até 50% do valor de referência salarial respectivo.

                            Tamanha liberdade de ação administrativa, que não se confunde com discrição, identificando-se sim com o arbítrio, contraria a necessidade de respeito a valores imanentes à gestão de verbas públicas. Abre-se ensejo para favorecimentos que não se coadunam com a administração de recursos que, em última análise pertencem à própria sociedade local.

                            Tal solução fere uma concepção mais ampla de justiça e equidade, e por isso também ofende a moralidade administrativa, o que se evidencia ainda mais quando se constata que não há quaisquer critérios objetivos para que as aludidas gratificações sejam concedidas.

 

DA VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA IMPESSOALIDADE

                            O dispositivo impugnado colida, ademais, do princípio da impessoalidade, assentado no art. 111 da Constituição do Estado de São Paulo.

                            Como bem anotou Celso Antônio Bandeira de Mello, neste princípio “se traduz a idéia de que a Administração tem que tratar a todos os administrados sem discriminações, benéficas ou detrimentosas. Nem favoritismo nem perseguições são toleráveis. Simpatias ou animosidades pessoais, políticas ou ideológicas não podem interferir na atuação administrativa e muito menos interesses sectários, de facções ou grupos de qualquer espécie. O princípio em causa não é senão o próprio princípio da igualdade ou isonomia” (Curso de direito administrativo, 12ªed., 2ª tir., São Paulo, Malheiros, 2000, p.84).

                            No caso em exame, verifica-se a violação do princípio da impessoalidade. O absoluto subjetivismo na concessão ou revogação do benefício previsto no ato normativo - a denominada gratificação especial, demonstra que essa faculdade do administrador presta-se a servir como instrumento, para a instituição de benefícios indevidos àqueles que ostentam relações pessoais com o gestor público momentaneamente no posto de Chefe do Executivo.

                            A ausência de critérios objetivos para a fixação do benefício indica claramente a quebra do princípio da impessoalidade, que deve imperar no âmbito da Administração Pública.

 

DA VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA RAZOABILIDADE

                            Restou violado também o princípio da razoabilidade, que encontra assento no art.111 e no art.128 da Constituição do Estado de São Paulo.

                            Note-se que o art. 128 da Carta Paulista determina expressamente que “as vantagens de qualquer natureza só poderão ser instituídas por lei e quando atendam efetivamente ao interesse público e às exigências do serviço”.

                            O dispositivo legal questionado por meio da presente ação direta cria a possibilidade de fixação de gratificação especial para hipóteses absolutamente indefinidas.

                            Essa abertura de possibilidades sem qualquer indicação hipotética de real necessidade demonstra que a solução prevista na lei fere o princípio da razoabilidade, ao criar um ônus desnecessário, inapropriado, e descabido para a Administração Pública.

                            Não se pode afirmar que a fixação de gratificações, nestes termos, por atos administrativos, atenderá a necessidade de respeito ao interesse público e às exigências do serviço.

                            Como anota Diogo de Figueiredo Moreira Neto, o princípio da razoabilidade “visa a afastar o arbítrio que decorrerá da desadequação entre meios e fins”, tendo importância tanto quando da criação da norma como quando de sua aplicação. Ademais, prossegue o autor, “o princípio da proporcionalidade, uma vez admitido como um princípio substantivo autônomo, como é considerado na doutrina alemã do Direito Público, e não apenas com o sentido estrito contido no conceito de razoabilidade, prescreve, especificamente, o justo equilíbrio entre os sacrifícios e os benefícios resultantes da ação do Estado” (Curso de direito administrativo, 14ªed., Rio de Janeiro, Forense, 2006, p.101). Também nesse sentido Maria Sylvia Zanella Di Pietro (Direito administrativo, 19ªed., São Paulo, Atlas, 2006, p.95).

                            Em sede doutrinária, Gilmar Ferreira Mendes, examinando a aplicação do princípio da proporcionalidade pelo Pretório Excelso, anotou “de maneira inequívoca a possibilidade de se declarar a inconstitucionalidade da lei em caso de sua dispensabilidade (inexigibilidade), inadequação (falta de utilidade para o fim perseguido) ou de ausência de razoabilidade em sentido estrito (desproporção entre o objetivo perseguido e o ônus imposto ao atingido)” (cf. A proporcionalidade na jurisprudência do STF, publicado em Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade, São Paulo, Instituto Brasileiro de Direito Constitucional e Celso Bastos Editor, 1998, p.83).

                            Na hipótese em exame, absolutamente dispensável a previsão legal impugnada, pois a criação de vantagens pessoais para servidores exige a edição de lei (strictu senso). Ademais, é inadequada a previsão normativa, bem como desproporcional o ônus imposto ao interesse público, com relação ao objetivo perseguido (dar ao Chefe do Executivo ou à autoridade competente, de cada poder ou dirigente superior de entidade, ampla liberdade para beneficiar servidores à sua livre escolha).

                            Daí a violação ao art. 111 e ao art. 128, ambos da Constituição do Estado de São Paulo.

 

DO PEDIDO DE LIMINAR

                            Remanesce, no presente caso, a necessidade da concessão de “MEDIDA LIMINAR”. Isso porque, quando se trata do controle normativo abstrato, e uma vez verificada a cumulativa satisfação dos pressupostos legais concernentes ao “fumus boni júris” e ao “periculum in mora”, o poder geral de cautela autoriza a suspensão da eficácia do ato normativo impugnado, até o final julgamento da ação direta de inconstitucionalidade.

                            A plausibilidade jurídica da tese exposta na inicial é evidente, não admitindo maiores questionamentos, ante a adoção, por lei, de previsões e critérios permanentes e nitidamente ofensivos a diversos princípios constitucionais.

                            E, por outro lado, também está delineada a situação de risco, caracterizadora do ‘periculum in mora’, tanto mais porque está demonstrado nos autos que servidores públicos vêm recebendo gratificações flagrantemente indevidas, o que se constata, por exemplo, do documento de fls. 06/07.

                            Do exposto, requeiro seja concedida liminarmente a suspensão dos efeitos do dispositivo legal impugnado, e aguardo seja autorizado o processamento da presente ação, colhendo-se as informações pertinentes do Prefeito e da Câmara Municipal de Gastão Vidigal, sobre as quais me manifestarei oportunamente, vindo, no final, a ser declarada a inconstitucionalidade material do art. 79 da Lei Municipal n. 968, de 23 de setembro de 1991, devendo, após, ser oficiado aos membros daquela Comuna solicitando a adoção das providências necessárias à suspensão definitiva dos efeitos de sua execução.

 

São Paulo, 6 de maio de 2008.

 

 

 

 

FERNANDO GRELLA VIEIRA

Procurador-Geral de Justiça



[1] José Cretella Jr., “Tratado de Direito Administrativo”, Rio de Janeiro, Forense, 1996, v. I, p. 18.

[2] Hely Lopes Meirelles, Direito Administrativo Brasileiro, São Paulo, Malheiros, 1996, p. 83.

[3] “Ato Administrativo e Direitos dos Administrados”, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1981, p 13.

[4] DIREITO CONSTITUCIONAL – Direito Comparado -  Teoria Geral do Estado e Da Constituição – As Constituições do Brasil. Forense: Rio de Janeiro, 1987, 2ª Ed., p. 243.

[5] Manuel Afonso Vaz, “Lei e Reserva da Lei”, Porto, 1992, p. 245.

[6] Constituição Federal Anotada, Saraiva, 2ª ed., p. 429.

[7] Federico Sorrentino, “Manuale di Diritto Pubblico”, Bologna, il Mulino, 1997, p. 145.

[8]  DIREITO CONSTITUCIONAL – Direito Comparado -  Teoria Geral do Estado e Da Constituição – As Constituições do Brasil. Forense: Rio de Janeiro, 1987, 2ª Ed. Pág.245.