EXCELENTÍSSIMO
SENHOR DESEMBARGADOR PRESIDENTE DO E. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO
PAULO
Protocolado nº 148.967/09
Assunto: Inconstitucionalidade da Lei Municipal nº 2.957, de 20 de outubro de 2.009, do Município de Itapeva.
Ementa: Ação direta de inconstitucionalidade. Lei Municipal nº 2.957/09, do Município de Itapeva. Alteração do Código de Postura. Abstenção de exigência do LVCB (Laudo de Vistoria do Corpo de Bombeiros) para concessão de licença para funcionamento de estabelecimentos industriais, comerciais, prestadores de serviços e demais entidades correlatas. Violação dos arts. 19 "caput"; 130, §2º; 142; e 144; da Constituição do Estado de São Paulo.
O Procurador-Geral de Justiça do Estado de São Paulo, no exercício da atribuição prevista no art. 116, inciso VI da Lei Complementar Estadual nº 734, de 26 de novembro de 1993 (Lei Orgânica do Ministério Público de São Paulo), em conformidade com o disposto no art. 125, § 2º e art. 129, inciso IV da Constituição Federal, e ainda art. 74, inciso VI e art. 90, inciso III da Constituição do Estado de São Paulo, com amparo nas informações colhidas no incluso protocolado, vem, respeitosamente, perante esse Egrégio Tribunal de Justiça, promover a presente AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE da Lei Municipal nº 2.957, de 20 de outubro de 2.009, do Município de Itapeva, pelos fundamentos a seguir expostos.
I – DO ATO NORMATIVO
IMPUGNADO
"Artigo 1º. No Capítulo VI - Da Licença de Funcionamento - Seção I - Dos Estabelecimentos em Geral, ficam revogados em seu inteiro teor o Artigo 73 e Parágrafo único, o Artigo 84 e o inciso II do artigo 96.
Artigo 73. REVOGADO
Parágrafo Único. REVOGADO
Artigo 96. Preservadas as condições de higiene e de segurança do público e do prédio e, em especial a prevenção a violência deverá ser mantido no mínimo, dois seguranças particulares devidamente identificados e habilitados e dois funcionários por turno de trabalho, obedecidos os seguintes requisitos dos órgãos competentes da municipalidade:
II. REVOGADO"
Os referidos dispositivos legais revogados pela impugnada Lei dispunham da seguinte forma:
"Art. 73. Para a certificação das condições exigidas nos incisos I a III do Parágrafo Único do art. 72 o Município exigirá do interessado a apresentação do protocolo requerendo a elaboração de laudo técnico de órgãos públicos ou particulares especializados, tais como AVCB - Auto de Vistoria do Corpo de Bombeiros ou Plano de Proteção Radiológica, entre outros que se façam necessários.
Infração: média
Parágrafo Único. Tendo o interessado a posse do laudo e não cumprindo as suas exigências, o município não renovará no exercício seguinte, a licença concedida.
Art.
Infração: grave
Art. 96. Preservadas as condições de higiene e de segurança do público e do prédio e, em especial a prevenção à violência, deverão ser mantidos, no mínimo, dois seguranças particulares devidamente identificados e habilitados e dois funcionários por turno de trabalho, obedecidos os seguintes requisitos dos órgãos competentes da municipalidade: (caput mantido)
Inciso II - Laudo de vistoria do Corpo de Bombeiros (dispositivo revogado)".
II – DO DIREITO
A Lei Municipal nº 2.957, de 10 de outubro de 2.009, de Itapeva, ao revogar os artigos 73, "caput" e seu parágrafo único, artigo 84 e o inc. II do art. 96, da Lei Municipal nº 2.651/07, afrontou os arts. 19 "caput"; 130, §2º; 142; e 144; da Constituição do Estado de São Paulo.
Como é pacífico,
o Município não possui poder constituinte. Sua autonomia para dispor sobre
todos os aspectos relacionados com a organização político-administrativa local
não equivale ao “poder constituinte” conferido ao Estado-membro da
Federação. Neste sentido, HELY LOPES MEIRELLES preleciona que “a
autonomia não é poder originário. É prerrogativa política concedida e limitada
pela Constituição Federal. Tanto os Estados-membros como os Municípios têm a
sua autonomia garantida constitucionalmente, não como um poder de auto-governo
decorrente da Soberania Nacional, mas como um direito público subjetivo de
organizar o seu governo e prover a sua administração, nos limites que a Lei
Maior lhes traça” (Cf. “Direito
Municipal Brasileiro”,
Malheiros, São Paulo, 9.ª ed., p.84).
Seguindo esta
mesma linha de entendimento, PINTO FERREIRA pontifica que: “fala-se
freqüentemente em Constituição municipal e constituinte municipal. Porém, os
municípios não estão investidos de um poder constituinte nem têm Constituições,
mas sim leis orgânicas” (Cf.
“Comentários à Constituição Brasileira”, São Paulo, Saraiva, 2º v., p. 267), na forma do art. 29 da
Constituição Federal.
De fato, o
poder constituinte decorrente, conferido aos Estados-membros da Federação, não
foi estendido aos Municípios pela Lei Suprema. Enquanto os Estados organizam-se e regem-se pelas Constituições que adotarem
(art. 25, caput), os Municípios são
regidos por simples leis orgânicas (art. 29, caput).
A distinção é
evidente. Os Estados-membros da Federação foram investidos de poder constituinte decorrente e, no
exercício de tal poder, desde que respeitados os princípios e os balizamentos
constitucionais da Lei Fundamental, podem estabelecer as bases da organização
de seus poderes, de seus órgãos e, enfim, de sua estrutura político-administrativa.
Em tal sentido, cada Assembléia Legislativa atuou não apenas como órgão do Poder Legislativo no exercício de suas
funções normais e precípuas, mas investida de um poder superior que lhe
conferiu, nos limites previamente definidos pela Carta Magna, a liberdade de
construir essas bases e essa estrutura.
Aos
Municípios, contudo, não foi outorgado tal poder. Ao votar, aprovar e promulgar
leis, a Câmara de Vereadores exerce apenas a normal e precípua função
legislativa, característica do Poder que representa, em cujo âmbito deve atuar,
de modo a ser-lhe vedado estabelecer – em desrespeito ao exercício das também
normais e precípuas funções do Executivo – as bases da organização dos poderes
municipais, de seus órgãos e de sua estrutura político-administrativa.
Tem-se, assim,
que a Carta Federal estabeleceu, com nitidez, a distinção entre as autonomias
estaduais e municipais. A capacidade normativa do Município não pode ser
exercida senão no espaço conferido pela ordem constitucional (federal e
estadual). E, para sê-lo validamente, deve estar conformada dentro da área que
lhe foi deferida, respeitados os princípios e normas que, em nível
constitucional, delimitam as atribuições, funções e prerrogativas de cada Poder
e de seus órgãos.
Vistos estes
aspectos de ordem geral, é induvidoso que os corpos de bombeiros integram as
forças de segurança pública, exatamente como se extrai do artigo 144, § 5.º, da
Constituição da República. E esses corpos de bombeiros, assim como os demais
órgãos constitucionalmente encarregados da segurança pública, devem ser
disciplinados por Lei (artigo 144, § 7.º, da CF).
Essa
disciplina depende de Lei Federal ou Estadual, porque cabe precisamente à União e aos Estados legislar sobre
segurança pública. É que a Constituição do Estado de São Paulo, seguindo
disposição da Carta Política Federal (artigo 144, § 8.º), deixou bastante claro
que os Municípios não podem ir além de constituir guarda municipal destinada à
proteção dos bens, serviços e instalações pertencentes ao Poder Público
Municipal (artigo 147). Mesmo a criação de “corpos de bombeiros voluntários” é
dependente de Lei estadual, respeitada a legislação federal (art. 148 da
Constituição paulista); e, por sua vez, a organização da Polícia Militar – à
qual pertencem os corpos de bombeiros – é regida por Lei Complementar Estadual
(Constituição paulista, art. 23, parágrafo único, item 6).
A bem da
verdade, mesmo anteriormente à edição da Constituição em vigor já se discutia a
possibilidade de os Municípios contarem com seus próprios serviços de segurança
pública. Entretanto, em todas as ocasiões a hipótese foi rechaçada, tanto que –
conforme bem anotado por JOSÉ AFONSO DA SILVA – os constituintes de 1988
“recusaram várias propostas no sentido de instituir alguma forma de polícia
municipal. Com isso, os Municípios não ficaram com nenhuma específica
responsabilidade pela segurança pública. Ficaram com a responsabilidade por ela
na medida em que sendo entidade estatal não pode eximir-se de ajuda aos Estados
no cumprimento dessa função. Contudo, não se lhes autorizou a instituição de
órgão policial de segurança e menos ainda de polícia judiciária” (Cf. “Curso de Direito Constitucional Positivo”, Malheiros, 25.ª ed., p. 652).
Vê-se,
portanto, que, ao deixar de exigir o
LVCB (Laudo de Vistoria do Corpo de Bombeiros):
a) para
verificação (§único do art. 72 da Lei nº 2.651/07):
I- da adequação
da edificação e das instalações às normas da legislação, inclusive sanitária,
de acessibilidade e segurança, em função do uso pretendido;
II- da observância
das restrições impostas por lei;
III - se a
atividade a ser exercida no local não oferece risco de comprometimento das boas
condições do meio ambiente, da segurança patrimonial e integridade das pessoas,
do trânsito, da higiene, da saúde pública, do sossego e do silêncio nos
horários determinados por lei, dos bons costumes e da moralidade pública;
b) dos
estabelecimentos que trabalhem com produtos inflamáveis ou carburantes (art. 84
da Lei n. 2.651/07);
c) dos
estabelecimentos comerciais, de que trata o art. 96, da Lei n. 2.651/07;
para a obtenção de alvará de funcionamento, a Lei
de Itapeva foi muito além do que a Constituição entendeu ser a participação dos
Municípios na questão de segurança pública.
Trata-se de
norma que não se limita a fixar regras para a concessão de licença de
funcionamento de estabelecimentos em geral (comerciais, industriais,
prestadores de serviços e atividades diversas). Exorbitando de sua competência,
o Município de Itapeva editou Lei capaz de interferir nas atribuições de defesa
civil reservadas ao Corpo de Bombeiros, que é, repita-se, órgão de segurança do
Estado. Concretamente, ficaram dispensados de vistoria pelo Corpo de Bombeiros
os estabelecimentos retro aludidos, em expressivo número, fato que expõe a
vida, a saúde, o patrimônio e a segurança da pessoa humana a perigo.
Vale lembrar,
a propósito, que as atividades de defesa civil[1] devem
necessariamente ser integradas, nos três níveis de Governo (Federal, Estadual e
Municipal), e que os corpos de bombeiros militares foram incumbidos pela
Carta Política em vigor da execução de atividades de defesa civil, não
se compreendendo assim que o Corpo de Bombeiros seja excluído do processo que
visa a atestar a regularidade dos estabelecimentos industriais, comerciais e
prestadores de servidos e demais entidades correlatas.
Reclama, pois,
o interesse público a participação do Corpo de Bombeiros nestas circunstâncias,
mais precisamente para prevenção e combate a incêndios,
tornando-se, assim, temerária a iniciativa de impedi-lo de exercer atividades
que são próprias de sua função, por força de expressa previsão legal, quais
sejam a de vistoriar os imóveis e a de emitir atestado indicando a conformidade
da construção com as leis pertinentes.
Só para
ilustrar a gravidade da situação e o risco de se manter a situação atual, em
caso de incêndio de grandes proporções, o Corpo de Bombeiros é acionado e tem
dificuldades para ter acesso ao imóvel, ou mesmo para a obtenção de água,
porque normas básicas de segurança e prevenção de incêndios – como por exemplo
o posicionamento das portas e dos hidrantes, a distância dos imóveis vizinhos –
não foram respeitadas e, mesmo assim, o projeto de construção ou reforma foi
aprovado pela Prefeitura sem a emissão prévia do atestado de vistoria dos bombeiros.
Em síntese, a
segurança pública é de competência das polícias estaduais, afastada qualquer
participação dos Municípios nessa atividade, máxime para suprimir-lhes
atribuição de defesa civil. Neste caso, há afronta expressa aos artigos 19, “caput”, 139, § 2.º, 142 e 144 da Constituição do Estado de São Paulo:
o primeiro atribui à competência da Assembléia Legislativa Estadual, com a
sanção do Governador, as matérias de competência do Estado; o segundo e o
terceiro atribuem ao Corpo de Bombeiros a execução de atividades de defesa
civil e o último condiciona o exercício da autonomia Municipal aos princípios
estabelecidos nas Cartas Federal e Estadual.
Pedido
liminar
A legislação em exame deve ser liminarmente
retirada do ordenamento jurídico. Para tanto, observo que o “fumus
boni juris” consiste na flagrante violação da Constituição Estadual:
cuida-se de Lei que afronta veementemente a competência legislativa estadual, o
que certamente levará ao acolhimento do pedido. Também está presente o “periculum in mora”, na medida em que a aplicação
imediata da norma poderá, ao evitar a atuação do Corpo de Bombeiros em certos
âmbitos da defesa civil, pôr em risco a segurança pessoal e patrimonial
daqueles que estiverem ao abrigo ou nas circunvizinhanças de estabelecimentos
industriais, comerciais, prestadores de serviços e demais entidades correlatas,
cujo funcionamento for aprovado no Município de Itapeva.
Face
ao exposto, requerendo o recebimento e o processamento da presente ação para
que, ao final, seja julgada procedente, declarando-se a inconstitucionalidade da
Lei Municipal nº 2.957, de 10 de outubro de 2.009, do Município de Itapeva.
Requer-se ainda sejam requisitadas informações à Câmara Municipal e ao Prefeito Municipal, bem como posteriormente citado o Procurador-Geral do Estado para se manifestar sobre o ato normativo impugnado, protestando por nova vista, posteriormente, para manifestação final.
São Paulo, 21 de janeiro de 2010.
Fernando Grella Vieira
Procurador-Geral de Justiça
fjyd
Protocolado nº 148.967/09
Interessado: 1ª Promotoria de Justiça de Itapeva
Assunto: Inconstitucionalidade da Lei Municipal nº 2.957, de 20 de outubro de 2.009, do Município de Itapeva.
1.
Distribua-se a petição inicial da ação direta de inconstitucionalidade,
em face da Lei Municipal nº 2.957, de 20 de outubro de 2.009, do Município de
Itapeva, junto ao Egrégio
Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.
2.
Oficie-se ao interessado, informando-lhe a propositura da ação, com
cópia da petição inicial.
FERNANDO GRELLA VIEIRA
Procurador-Geral de Justiça
fjyd
[1] É o conjunto
de medidas permanentes que visam: evitar, prevenir ou minimizar as
conseqüências dos eventos desastrosos e a socorrer e assistir as populações
atingidas, preservando seu moral, limitando os riscos de perdas materiais e
restabelecendo o bem-estar social (www.defesacivil.joinville.sc.gov.br).