EXCELENTÍSSIMO SENHOR DESEMBARGADOR PRESIDENTE DO EGRÉGIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

                                                         O PROCURADOR-GERAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO, no exercício da atribuição prevista no art. 116, inciso VI, da Lei Complementar Estadual n° 734, de 26 de novembro de 1993, e em conformidade com o disposto nos artigos 125, § 2°, e 129, inciso IV, da Constituição Federal, e artigos 74, inciso VI, e 90, inciso III, da Constituição do Estado de São Paulo, tendo em vista o contido no protocolado anexo (PGJ n° 150.414/07), vem, respeitosamente, promover, perante esse Colendo Tribunal de Justiça, a presente AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE da Lei n° 1.545, de 5 de setembro de 2006, do Município de Presidente Alves, pelos motivos e fundamentos a seguir expostos.

 

                                                         A Lei em questão “dispõe sobre a proibição de instalação de Penitenciárias, presídios, centros de detenção provisória, institutos penas agrícolas, cadeias e similares inclusive unidades da FEBEM, na zona urbana e/ou rural do município de Presidente Alves e adota outras providências”.

 

                                                         Este o teor da norma:

 

LEI 1.545/2006

 

O PRESIDENTE DA CÂMARA MUNICIPAL DE PRESIDENTE ALVES:

Faço saber que a Câmara Municipal aprovou e eu, nos termos do artigo 43, § 6º da Lei Orgânica Municipal, promulgo a seguinte Lei:

Autor: Vereador Reginaldo Moraes Anastácio

 

Dispõe sobre a proibição de instalação de Penitenciárias, presídios, centros de detenção provisória, institutos penais agrícolas, cadeias e similares, inclusive unidades da FEBEM, na zona urbana e/ou rural do município de Presidente Alves e adota outras providências.

 

Art.1º. Fica proibida a instalação e/ou construção de Penitenciárias, presídios, centros de detenção provisória, institutos penais agrícolas, cadeias e similares, inclusive unidades da FEBEM, e congêneres em todo o território do município de Presidente Alves.

 

Art. 2º. Fica o Poder Executivo Municipal proibido de celebrar convênio ou qualquer outro ato com o Governo do Estado de São Paulo e/ou Federal, que viole as vedações contidas no artigo 1º desta Lei.

 

Art. 3º. Fica o poder Executivo Municipal igualmente proibido de adquirir de terceiros ou ainda de efetuar qualquer desapropriação de imóveis, quer localizados no perímetro urbano, quer localizados na zona rural, visando a cessão ou doação ao Governo Estadual e/ou Federal com o objetivo de instalação de penitenciárias, presídios, centros de detenção provisória, cadeias e similares inclusive unidades da FEBEM, na zona urbana e/ou rural do município de Presidente Alves e adota outras providências.

 

Art. 4º. Esta lei revoga em todos os seus termos e efeitos a Lei n. 1527, de 02 de dezembro de 2005.

 

Art. 5º. Esta lei entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário.

Presidente Alves, 05 de setembro de 2006.

ANTONIO LOURIVAL DE SOUZA

Presidente da Câmara Municipal de Presidente Alves

 

                                                         A Lei n° 1.545. de 5 de setembro de 2006, todavia, é verticalmente incompatível com a Constituição do Estado de São Paulo, em especial com seus artigos 1°, 5°, 47, II e XIV, e 144.

 

                                                         Diretamente relacionada está diretamente relacionada com a adoção de regimes penitenciários, a lei de Presidente Alves trata de tema que é reservado à União e ao Estado pela Constituição Federal:

Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre:

I – direito tributário, financeiro, penitenciário, econômico e urbanístico.

 

                                                         Sobre a estrutura do Estado Federal, Reinhold Zippelius escreveu: “O Estado Federal é pois também uma reunião de Estados, mas organizada de tal maneira que o seu conjunto constitui igualmente um Estado em si mesmo. Esse conjunto das respectivas competências estatais no Estado Federal acha-se de tal modo distribuído entre os órgãos do Estado Federal e os dos diferentes países que o constituem, que o problema da hierarquia dessas competências fica sempre como que suspenso e em aberto. Por via de regra, as atribuições exclusivas dos Estados são repartidas segundo o critério das diferentes matérias. Assim, serão geralmente cometidas aos órgãos centrais as questões da política externa e aos Estados membros as questões de segurança e ordem pública interior. A competência legislativa pode também pertencer, segundo a índole das matérias de que se trata, já aos órgãos do poder central, já aos dos diversos países ou Estados. Ambos podem, porém, colaborar também na feitura das leis, ficando aos órgãos centrais a promulgação e aos outros, os das regiões, a execução delas” (apud Celso Bastos e Ives Gandra Martins, Comentários à Constituição do Brasil, Saraiva: São Paulo, 3° vol., tomo I, p. 107.).

 

                                                         Diferentemente, no particular, do federalismo alemão – que também inspirou os constituintes pátrios –, em que a ordem federal central edita leis sobre quase todos os temas, mas quem as executa são os estados, no Brasil quem executa as leis advindas da competência legislativa privativa é, em regra, o próprio ente que a detém.

 

                                                         Não pode utilizar-se o Município da competência do art. 30 da Constituição da República, que menciona o “interesse local”, ausente aqui:

Art. 30. Compete aos Municípios:

I – legislar sobre assuntos de interesse local;

II – suplementar a legislação federal e a estadual no que couber (...)

 

                                                         É que, como ensina com a habitual autoridade Hely Lopes Meirelles, o tema deve ser tratado assim: “estabelecida essa premissa é que se deve partir em busca dos assuntos da competência municipal, a fim de selecionar os que são e os que não são de seu interesse local, isto é, aqueles que predominantemente interessam à atividade local. Seria fastidiosa –e inútil, por incompleta– a apresentação de um elenco casuístico de assuntos de interesse local, do Município, porque a atividade municipal, embora restrita ao território da Comuna, é multifária nos seus aspectos e variável na sua apresentação, em cada localidade. Acresce, ainda, notar a existência de matérias que se sujeitam, simultaneamente, à regulamentação pelas três ordens estatais, dada sua repercussão no âmbito federal, estadual e municipal. Exemplos típicos dessa categoria são o trânsito e a saúde pública, sobre os quais dispõem a União (regras gerais: Código Nacional de Trânsito, Código Nacional de Saúde Pública), os Estados (regulamentação: Regulamento Geral de Trânsito, Código Sanitário Estadual), e o Município (serviços locais: estacionamento, circulação, sinalização etc.; regulamentos, sanitários municipais). Isso porque sobre cada faceta do assunto há um interesse predominante de uma das três entidades governamentais. Quando essa predominância toca ao Município, a ele cabe regulamentar a matéria, como assunto de seu interesse local. Dentre os assuntos vedados ao Município, por não se enquadrarem no conceito de interesse local, é de se assinalar, a titulo exemplificativo, a atividade jurídica, a segurança nacional, o serviço postal, a energia em geral, a informática, o sistema, monetário, as telecomunicações e outros mais, que, por sua própria natureza e fins, transcendem o âmbito local” (Direito Municipal Brasileiro, São Paulo: Malheiros, 12ª ed., p. 135).

 

                                                         Seria mesmo possível que os autores da Constituição do Estado, no exercício do Poder Constituinte Decorrente, repetissem, enfadonhamente, as normas de reprodução obrigatória da Constituição da República. Preferiram, contudo – acertadamente –, a fórmula sintética do artigo 144, determinando, como não poderia deixar de ser, que os princípios estabelecidos na Constituição Federal (somente princípios, não regras) devessem ser observados obrigatoriamente pelos Municípios. Não foi outra a saída encontrada pelos Constituintes nacionais, por exemplo com o artigo 25 da Constituição da República, a determinar que os Estados se organizem segundo os princípios da Constituição da República, sem explicitá-los, também enfadonhamente. Assim:

Art. 25. Os. Estados, organizam-se e regem-se pelas Constituições e leis que adotarem, observados os princípios desta Constituição.

 

                                                         Há nítida correspondência entre este dispositivo e o artigo 144 da Constituição do Estado de São Paulo (Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto organizarão por Lei Orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição).

 

                                                         Não era necessário que se repetissem, um a um, na Constituição da República, os princípios a serem observados pelos constituintes dos estados. Sabe-se que o princípio federativo, adotado no artigo 1° da Constituição do Estado de São Paulo, é, “a rigor, um grande sistema de repartição de competências”, sendo esta “a chave da estrutura do poder federal” ou “a grande questão do federalismo”, e ainda “um problema tipicamente do estado federal” (Raul Machado Horta e Durand, cit. por Fernanda Dias Menezes de Almeida,  Competências na Constituição de 1988, São Paulo: Atlas, 1991).

 

                                                         A doutrina já resolveu a questão dos princípios que os Estados devem observar (o que obviamente se aplica aos Municípios, já agora por força do art. 144 da Constituição do Estado). Ao comentar sobre o conteúdo do artigo 25 da Constituição da República, a direcionar as competências dos Estados (como o artigo 144 da Constituição do Estado condiciona as competências dos Municípios), Manoel Gonçalves Ferreira Filho se refere à existência das “regras de preordenação institucional”, “regras de extensão normativa” e “regras de subordinação normativa”, inseridas na Constituição da República, vinculantes para os demais entes políticos, nestes termos: “ainda cerceiam a autonomia dos Estados regras de subordinação normativa. São estas as que, presentes na própria Constituição Federal e direcionadas por ela a todos os entes federativos (União, Estados, Municípios), predefinem o conteúdo da legislação que será editada por eles. E isto, ou orientando positivamente tal conteúdo (mandando que sigam determinada linha), ou negativamente (proibindo que adote certas normas ou soluções).” (Comentários à Constituição Brasileira de 1988, São Paulo: Saraiva, 1997, vol. I, p. 197).

 

                                                         Claro que a simples falta de repetição explícita dos princípios da Constituição da República não significa que os Municípios fiquem livres para –então em uma curiosa situação– dispor de mais poderes constituintes que o Estado (já que não se discute que, quanto a este, seu Poder Constituinte Decorrente é limitado).

 

                                                         Trata-se o artigo 144 da Constituição do Estado de norma de repetição obrigatória, vale dizer, “as normas centrais da Constituição Federal, tenham elas natureza de princípios constitucionais, de princípios estabelecidos ou de normas de preordenação, afetam a liberdade criadora do Poder Constituinte Estadual e acentuam o caráter derivado desse poder. Como conseqüência da subordinação à Constituição Federal, que é a matriz do ordenamento jurídico parcial dos Estados-membros, a atividade do constituinte estadual se exaure, em grande parte, na elaboração de normas de reprodução, mediante as quais faz o transporte da Constituição Federal para a Constituição do Estado das normas centrais, especialmente as situadas no campo das normas de preordenação. A tarefa do constituinte limita-se a inserir aquelas normas no ordenamento constitucional do estado, por um processo de transplantação. A norma de reprodução não é, para os fins da autonomia do Estado-membro, simples norma de imitação, freqüentemente encontrada na elaboração constitucional. As normas de imitação exprimem a cópia de técnicas ou de institutos, por influência da sugestão exercida pelo modelo superior. As normas de reprodução decorrem do caráter compulsório da norma constitucional superior, enquanto a norma de imitação traduz a adesão voluntária do constituinte a uma determinada disposição constitucional (Raul Machado Horta, Poder Constituinte do estado-membro, RDP 88/5).

 

                                                         Enfim, a repartição de competências é a “chave de abóbada” do sistema federal; conspurcada aquela se conspurca este. É o que ocorre no caso dos autos, com a violação, pelo Município, de princípios constitucionais sensíveis: a restrição imposta pelo Município de Presidente Alves, ao dizer respeito à própria política penitenciária, encontra obstáculo em competência constitucional da União e dos Estados-membros.

 

                                                         Há ainda a considerar que a lei em questão – derivada de projeto de iniciativa parlamentar – interfere no exercício de atividade tipicamente executiva Prefeito, ao criar restrições ao uso do próprio municipal. Assim, a par dos preceitos constitucionais já indicados, vê-se também a nítida violação do princípio da independência e harmonia entre os Poderes, consagrado no artigo 5° da Constituição Paulista, e em outros termos no artigo 47, incisos II e XIV, da mesma Carta Política.

 

DA SUSPENSÃO LIMINAR

 

                                                         Tendo em vista a vigência da lei, autêntica usurpação de competência legislativa, a impedir a instalação de estabelecimentos prisionais no município, necessária a liminar. Quando se trata do controle normativo abstrato e desde que haja a cumulativa satisfação dos requisitos concernentes ao fumus boni juris e ao periculum in mora, o poder geral de cautela autoriza a suspensão de eficácia de dispositivos legais impugnados, até o advento da decisão final.

 

                                                         Conforme se nota do “termo de declarações” juntado às fls. 26/27 do Protocolado anexado, o Executivo Estadual, pela Secretaria de Assuntos Penitenciários, está tomando providências administrativas visando a desapropriação de área, para construção de unidades prisionais em Presidente Alves, fato confirmado pelas cópias de documentos de fls. 29/31. A lei impedidora não pode se sobrepor às Constituições Estadual e Federal, causando nítido prejuízo à administração penitenciária do Estado de São Paulo, tema tão sensível quanto de difícil solução para todos.

 

                                                         Neste caso, os requisitos do perigo na demora e da fumaça do bom direito se fazem presentes, de modo que está translúcida a conveniência de sustar, provisoriamente, a eficácia dos dispositivos questionados. De resto, ainda que não houvesse essa singular situação de risco, restaria, ao menos, a excepcional conveniência da medida. Com efeito, no contexto das ações diretas e da outorga de provimentos cautelares para defesa da Constituição, o juízo de conveniência é um critério relevante, que vem condicionando os pronunciamentos mais recentes do Supremo Tribunal Federal, preordenados à suspensão liminar de leis aparentemente inconstitucionais (cf. ADIN-MC 125, j. 15.2.90, DJU de 4.5.90, p. 3.693, rel. Min. Celso de Mello; ADIN-MC 568, RTJ 138/64; ADIN-MC 493, RTJ 142/52; ADIN-MC 540, DJU de 25.9.92, p. 16.182).

 

                                                         É o que se requer.

 

PEDIDO FINAL

 

                                                         Com estes argumentos, requeiro se determine o processamento da presente ação, colhendo-se as informações pertinentes do Prefeito e da Câmara de Vereadores do Município de Presidente Alves, sobre as quais me pronunciarei oportunamente, vindo, ao final, a ser declarada a inconstitucionalidade da Lei n° 1.545, de 5 de setembro de 2006, do mesmo Município, adotando-se as providências necessárias à suspensão definitiva de seus efeitos.

 

                                                         Requeiro ainda a citação do Procurador Geral do Estado, nos termos do § 2º do artigo 90 da Constituição Estadual.

São Paulo, 10 de maio de 2008.

 

FERNANDO GRELLA VIEIRA

Procurador-Geral de Justiça