Excelentíssimo Senhor Doutor Desembargador Presidente do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo

 

 

 

 

 

 

 

Protocolado nº 152.164/08

Assunto: Inconstitucionalidade dos artigos 1º e 2º, §1º, da Lei n. 1.573, de 02 de julho de 1998, dos artigos 23 e 218 da Lei n. 1.587, de 02 de setembro de 1998, e, por arrastamento, dos artigos 21 e 22, da Lei n. 888, de 12 de dezembro de 1978, todas do Município de Valentim Gentil.

 

Ementa: Leis do Município de Valentim Gentil. Inconstitucionalidade. 1) Substituição do Regime Jurídico Único Celetista dos servidores públicos do Município, bem como de suas autarquias e fundações públicas, pelo Regime Estatutário. 2) Transformação de empregos públicos e funções comissionadas em cargos públicos, ocasionando o seu provimento derivado, sem a realização de concurso público, com evidente desprestígio aos princípios da moralidade, impessoalidade, razoabilidade e interesse público. 3) Previsão legal do instituto da “transferência”, que permite que servidor público estável, admitido para um determinado cargo de provimento efetivo, passe para um outro de igual denominação, pertencente a quadro de pessoal diverso, sem submissão à prévia aprovação em concurso público de provas e títulos 4) Violação aos artigos 111, 115, II, 144 e 297 da Constituição Estadual.

 

 

               O Procurador-Geral de Justiça do Estado de São Paulo, no exercício da atribuição prevista no art. 116, VI da Lei Complementar Estadual n. 734, de 26 de novembro de 1993 (Lei Orgânica do Ministério Público de São Paulo), em conformidade com o disposto no art.125, § 2º e art. 129, IV da Constituição Federal, e ainda art. 74, VI e art. 90, III da Constituição do Estado de São Paulo, com amparo nas informações colhidas no incluso protocolado, vem, respeitosamente, perante esse Egrégio Tribunal de Justiça, promover a presente AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE dos artigos 1º e 2º, §1º, da Lei n. 1.573, de 02 de julho de 1998, dos artigos 23 e 218 da Lei n. 1.587, de 02 de setembro de 1998, e, por arrastamento, dos artigos 21 e 22, da Lei n. 888, de 12 de dezembro de 1978, todas do Município de Valentim Gentil, pelos fundamentos a seguir expostos:

 

I – Os Atos Normativos Impugnados

1.            A Lei do Município de Valentim Gentil n. 1.314, de 28 de novembro de 1990, versava sobre o regime jurídico único dos servidores públicos do Município de Valentim Gentil, das autarquias e fundações municipais. Estabelecia seu artigo 1º, in verbis:

“Art. 1º. O regime jurídico único dos servidores públicos do Município de Valentim Gentil, bem como de suas autarquias e fundações públicas, é a Consolidação das Leis do Trabalho – CLT, instituído por esta lei.”

2.            Posteriormente, veio a lume a Lei Municipal n. 1.573, de 02 de julho de 1998, com a seguinte redação no que interessa:

“Art. 1º. Fica instituído o Regime Jurídico Único de Trabalho dos servidores públicos dos Poderes do Município de Valentim Gentil, bem como de suas autarquias e fundações, adotando-se o Regime Estatutário.

Parágrafo único. Até que o Chefe do Executivo Municipal encaminhe à apreciação da Câmara Municipal, projeto de lei dispondo sobre o Estatuto dos Servidores Públicos, o Regime Estatutário de que trata esta lei será regido provisoriamente pelas disposições da Lei Municipal n. 888, de 12 de dezembro de 1978.

Art. 2º. Ficam submetidos ao Regime Jurídico Único de Trabalho desta lei, na qualidade de servidores públicos, os servidores dos Poderes do Município, inclusive os de suas autarquias e fundações, até aqui regidos pela Consolidação das Leis do Trabalho – CLT, aprovada pelo Decreto-Lei Federal nº 5.452, de 1º de maio de 1943.

§1º. Os empregos ocupados pelos servidores incluídos no regime instituído por esta lei, bem como as funções em comissão exercidas por pessoas não integrantes dos quadros de empregos permanentes dos órgãos da Administração Pública, ficam transformados em cargos, na data de sua publicação, até o advento da nova reestruturação administrativa dos Poderes do Município.”

3.            Cabe referir que essa Lei, em seu art. 6º, revogou, expressamente, a Lei Municipal n. 1.314/90, in verbis:

“Art. 6º. Fica revogada a Lei Municipal n. 1.314, de 28 de novembro de 1990, bem como as demais disposições em contrário.”

4.            De outra parte, os artigos 23 e 218 da Lei n. 1.587, de 02 de setembro de 1998 (que dispõe sobre o Estatuto dos Servidores Públicos dos Poderes do Município de Valentim Gentil, das autarquias e das fundações públicas municipais), prescrevem:

“Art. 23. Transferência é a passagem do servidor estável de cargo efetivo para outro de igual denominação, pertencente a quadro de pessoal diverso, de órgão ou instituição do mesmo poder.

§1°. A transferência ocorrerá de ofício ou a pedido do servidor, atendido o interesse do serviço, mediante o preenchimento de vaga.

§2º. Será admitida a transferência de servidor ocupante de cargo de quadro em extinção para igual situação em quadro de outro órgão ou entidade.

(...)

Art. 218. Ficam submetidos ao estatuto instituído por esta lei, na qualidade de servidores públicos, os servidores dos Poderes do Município, das autarquias, e das fundações públicas, regidos pela Lei n. 1.573, de 02 de julho de 1998, exceto os contratados por prazo determinado, submetidos à lei própria e aos quais este se aplica subsidiariamente.”

 

5.            Referida Lei Municipal de 1998, revogou, expressamente, em seu artigo 221, a Lei n. 888, de 12 de dezembro de 1978, que, em seus artigos 21 e 22, também tratava do instituto da “transferência”, in verbis:

“Art. 21. O funcionário poderá ser transferido de uma carreira para outra da mesma denominação, ou de cargo isolado de mesma natureza.

§1º. A transferência far-se-á:

I – a pedido do funcionário, atendido a conveniência do serviço;

II – de “officio”, no interesse da administração.

§2º. Equivale a nomeação, dependendo sua efetivação da observância dos requisitos desta lei (artigos 11 e 19), a trasnferência de funcionário:

I – de uma carreira para outra de denominação diversa;

II – de um cargo isolado para cargo de carreira.

Art. 22. A transferência de que trata o artigo 21, §1º, far-se-á para cargo de igual vencimento ou remuneração, e somente será concedida ao funcionário que contar no mínimo com um ano de efetivo exercício na classe ou no cargo isolado.

Parágrafo único. Nesse caso, a transferência para cargos de carreira obedecerá as seguintes condições:

I – se for a pedido, só poderá ser feita para a vaga a ser provida por merecimento;

II – não poderá exceder de um terço de cada classe; e

III – só poderá efetivar-se no mês seguinte ao das promoções.”

 

6.            Dessa forma, é possível ressaltar dois pontos principais na presente ação direta de inconstitucionalidade, quais sejam: (i) a transformação de empregos públicos e funções comissionadas em cargos públicos, bem como a adoção do regime estatutário, como Regime Jurídico Único de Trabalho dos servidores públicos dos Poderes do Município de Valentim Gentil, suas autarquias e fundações, em detrimento do regime anteriormente celetista; (ii) a previsão do instituto da transferência no Estatuto dos Servidores Públicos do Município de Valentim Gentil, permitindo o provimento derivado de cargos públicos.

 

II – O parâmetro da fiscalização abstrata de constitucionalidade

7.            Os artigos 1º e 2º, §1º, da Lei n. 1.573, de 02 de julho de 1998, bem como os artigos 23 e 218 da Lei n. 1.587, de 02 de setembro de 1998, e os artigos 21 e 22, da Lei n. 888, de 12 de dezembro de 1978, todas do Município de Valentim Gentil, contrariam frontalmente a Constituição do Estado de São Paulo, a qual está subordinada a produção normativa municipal por força dos seguintes preceitos ante a previsão dos arts. 1º, 18, 29 e 31 da Constituição Federal:

“Art. 111. A administração pública direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes do Estado, obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, razoabilidade, finalidade, motivação, interesse público e eficiência.

(...)

Art. 115. Para a organização da administração pública direta e indireta, inclusive as fundações instituídas ou mantidas por qualquer dos Poderes do Estado, é obrigatório o cumprimento das seguintes normas:

(...)

II - a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia, em concurso público de provas ou de provas e títulos, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão, declarado em lei, de livre nomeação e exoneração;

(...)

Art. 144. Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.

(...)

Art. 297. São também aplicáveis no Estado, no que couber, os artigos das Emendas à Constituição Federal que não integram o corpo do texto constitucional, bem como as alterações efetuadas no texto da Constituição Federal que causem implicações no âmbito estadual, ainda que não contempladas expressamente pela Constituição do Estado”.

 

8.            A Lei do Município de Valentim Gentil n. 1.314/90 estabelecia, em seu artigo 1º, que o regime jurídico único dos servidores públicos do Município de Valentim Gentil, bem como suas autarquias e fundações públicas, era a Consolidação das Leis do Trabalho – CLT.

9.            Com o advento da Lei n. 1.573, de 02 de julho de 1998, tal regime jurídico foi substituído pelo regime estatutário (artigo 1º), submetendo todos os servidores públicos já em exercício no Município de Valentim Gentil a este novo regime.

10.          Ao tratar do regime jurídico dos servidores públicos, explica Odete Medauar que:

“Em matéria de servidores, regime jurídico significa o conjunto de normas referentes aos seus deveres, direitos e demais aspectos da sua vida funcional. Ao se mencionar regime jurídico dos servidores, cogita-se do modo como o ordenamento disciplina seus vínculos com o poder público, quanto a deveres, direitos e a vários aspectos da sua vida funcional” (Direito Administrativo Moderno. 7ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 294).

11.          Assim, ao substituir o regime jurídico dos servidores públicos em exercício no Município de Valentim Gentil, a Lei n. 1.573/98 passou a submetê-los a um regramento absolutamente distinto, com a atribuição de direitos cuja titularidade é exclusiva daqueles que ocupam cargos de provimento efetivo, devidamente preenchidos por meio da realização de concurso público.

12.          À guisa de exemplo, pode-se mencionar o direito à estabilidade. Trata-se do direito, adquirido nos termos do artigo 41 da Constituição Federal, de não ser desligado senão em virtude de sentença judicial transitada em julgado, processo administrativo em que lhe seja assegurada ampla defesa, ou mediante procedimento de avaliação periódica de desempenho, na forma de lei complementar, assegurada ampla defesa (Celso Antônio Bandeira de Mello. Curso de Direito Administrativo. 16ª ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 265). Esse direito, integrante do regime estatutário, passaria a ser aplicado àqueles que foram contratados sob o regime celetista, o que demonstra a completa incompatibilidade do artigo 1º da Lei n. 1.573/98, com a ordem constitucional.

13.          Por sua vez, o artigo 2º, §1º, desse mesmo diploma legal, promoveu a transformação dos empregos públicos e das funções em comissão exercidas por pessoas não integrantes dos quadros de empregos permanentes dos órgãos da Administração Pública, em cargos públicos, com o conseqüente provimento derivado destes.

14.          Cargo público é o lugar e o conjunto de atribuições e responsabilidades determinadas na estrutura organizacional, com denominação própria, criado por lei, sujeito à remuneração e à subordinação hierárquica, provido por uma pessoa, na forma da lei, para o exercício de uma específica função permanente conferida a um servidor.

15.          Houve, no presente caso, uma verdadeira criação de cargos públicos, cujo provimento deve observância às normas constitucionais. Nesse sentido, pronunciou-se o Supremo Tribunal Federal na ADI n. 3.857 – CE, in verbis:

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI DO ESTADO DO CEARÁ. PROVIMENTO DERIVADO DE CARGOS. INCONSTITU-CIONALIDADE. OFENSA AO DISPOSTO NO ART. 37, II, DA CF. AÇÃO JULGADA PROCEDENTE. I - São inconstitucionais os artigos da Lei 13.778/2006, do Estado do Ceará que, a pretexto de reorganizar as carreiras de Auditor Adjunto do Tesouro Nacional, Técnico do Tesouro Estadual e Fiscal do Tesouro Estadual, ensejaram o provimento derivado de cargos. II - Dispositivos legais impugnados que afrontam o comando do art. 37, II, da Constituição Federal, o qual exige a realização de concurso público para provimento de cargos na Administração estatal. III - Embora sob o rótulo de reestruturação da carreira na Secretaria da Fazenda, procedeu-se, na realidade, à instituição de cargos públicos, cujo provimento deve obedecer aos ditames constitucionais. IV - Ação julgada procedente.” (STF – ADI n. 3.857 – Relator:  Min. RICARDO LEWANDOWSKI – Tribunal Pleno, j. 18.12.2008).

16.          Um dos princípios norteadores do provimento de cargos públicos reside na ampla acessibilidade e igualdade de condições a todos os interessados, respeitados os requisitos inerentes às atribuições de cada cargo. Acesso esse que se visa garantir com a obrigatória realização do concurso público, para que, sem que reste tangenciado o princípio da isonomia, preserve-se também a eficiência da máquina estatal, consubstanciada na escolha dos candidatos mais bem preparados para o desempenho das atribuições do cargo público, de acordo com os critérios previstos no edital respectivo.

17.          Ao comentar a exigência de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos para a investidura em cargo público, afirma Alexandre de Moraes que:

“Existe, assim, um verdadeiro direito de acesso aos cargos, empregos e funções públicas, sendo o cidadão e o estrangeiro, na forma da lei, verdadeiros agentes do poder, no sentido de ampla possibilidade de participação da administração pública” (Direito Constitucional. 7ª ed. São Paulo: Atlas, 2000, p. 314).

18.        Se o Município é dotado de autonomia normativa e administrativa, o exercício de suas competências deve observância às normas de observância compulsória constantes das Constituição Federal (artigo 29) e Estadual (artigo 144), em especial as que regulam a Administração Pública, como os artigos 111 e 115, II, da Constituição Estadual, que reproduz o caput e os incisos II do artigo 37 da Constituição Federal.

19.          Com efeito, o artigo 2º, §1º, da Lei n. 1.573/98, ao “transformar” empregos públicos e funções comissionadas em cargos público, permite, aos ocupantes daqueles, o preenchimento de destes, sem a necessária realização de concurso público de provas e títulos, em afronta direta aos ditames constitucionais.

20.          Ademais, ponto elementar relacionado à criação de cargos públicos é a necessidade de a lei específica – no sentido de reserva legal ou de lei em sentido formal, ou, ainda, de princípio da legalidade absoluta ou restrita, como ato normativo produzido no Poder Legislativo mediante o competente e respectivo processo – criá-los e descrever as correlatas atribuições. A criação do cargo público impõe a fixação de suas atribuições porque todo cargo pressupõe função previamente definida em lei (Maria Sylvia Zanella Di Pietro. Direito Administrativo. São Paulo: Atlas, 2006, p. 507; Odete Medauar. Direito Administrativo Moderno. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 287; Marçal Justen Filho. Curso de Direito Administrativo, São Paulo: Saraiva, 2005, p. 581).

21.          Assim, na criação de cargos ou empregos públicos, é evidente a necessidade de a lei específica descrever as correlatas atribuições, consoante expõe lúcida doutrina:

“(...) não basta uma lei estabelecer, de modo simplista, que ‘fica criado o cargo de servidor público’. Exige-se que a lei promova a discriminação das competências e a inserção dessa posição jurídica no âmbito da organização administrativa, determinando as regras que dão identidade e diferenciam a referida posição jurídica” (Marçal Justen Filho. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 581).

 

22.          Somente a partir da descrição precisa das atribuições do cargo público será possível, a bem do funcionamento administrativo e dos direitos dos administrados, averiguar-se a completa licitude do exercício de suas funções pelo agente público. Trata-se de exigência relativa à competência do agente público para a prática de atos em nome da Administração Pública e, em especial, aqueles que tangenciam os direitos dos administrados.

23.          Verifica-se, no caso em tela, que a Lei n. 1.573/98, em seu artigo 2º, §1º, somente cria os cargos públicos, não havendo qualquer descrição de suas atribuições, o que inviabiliza até mesmo uma análise sobre a natureza dos cargos criados.

24.          Além disso, é necessário destacar que a natureza jurídica do vínculo que une o empregado ao Poder Público é diversa daquele que interliga este e os titulares de cargos públicos, conforme explica Celso Antônio Bandeira de Mello:

“A relação jurídica que interliga o Poder Público e os titulares de cargo público – ao contrário do que se passa com os empregados – não é de índole contratual, mas estatutária, institucional” (Curso de Direito Administrativo. 16ª ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 235).

25.          Dessa forma, mostra-se absolutamente descabida a conversão de empregos e funções comissionadas em cargos públicos, tendo em vista que isso afrontaria a própria natureza jurídica do liame estabelecido entre os sujeitos.

26.          Una-se a todo o exposto o fato de que a norma no artigo 1º desse mesmo diploma legal, ao estabelecer a incidência do regime estatutário sobre todos os servidores públicos do Município de Valentim Gentil, permite que servidores admitidos para empregos públicos e funções em comissão recebam benefícios aplicáveis apenas a servidores públicos stricto sensu, isto é, àqueles ocupantes de cargos públicos de provimento efetivo devidamente preenchidos mediante a realização de concurso público, tal como o já mencionado “direito à estabilidade”.

27.          Fica evidente, portanto, a inconstitucionalidade do dispositivo legal em questão, vez que, nas palavras de Celso Antônio Bandeira de Mello, “o regime estatutário só se aplica a ocupantes de cargos públicos” (Curso de Direito Administrativo. 16ª ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 238).  

28.          A regra do artigo 2º, §1º, da Lei n. 1.573/98, busca “camuflar” tal inconstitucionalidade por meio da adoção de outra norma contrária à ordem constitucional. Em outras palavras, tal dispositivo, converte os empregos e funções comissionadas em cargos públicos (o que já se demonstrou ser inconstitucional), para dar aparente legitimidade à aplicação do regime jurídico único estatutário, vez que este incidiria, a partir de então, sobre ocupantes de cargos públicos.

29.          No que tange ao artigo 23 da Lei n. 1.587/98 – Estatuto dos Servidores Públicos do Município de Valentim Gentil, das autarquias e das fundações públicas municipais – sua inconstitucionalidade é evidente.

30.          Cuida-se da transferência de servidor público estável admitido para um determinado cargo de provimento efetivo, para um diverso, sem submissão à prévia aprovação em concurso público de provas e títulos. Trata-se, portanto, de vedado provimento derivado de cargo público.

31.          A respeito do tema, ressalte-se os seguintes julgados do Supremo Tribunal Federal, in verbis:

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE - LEI ESTADUAL QUE PERMITE A INTEGRAÇÃO DE SERVIDOR PÚBLICO NO QUADRO DE PESSOAL DE AUTARQUIAS OU FUNDAÇÕES ESTADUAIS, INDEPENDENTEMENTE DE CONCURSO PÚBLICO (LEI COMPLEMENTAR Nº 67/92, ART. 56) - OFENSA AO ART. 37, II, DA CARTA FEDERAL - DESRESPEITO AO POSTULADO CONSTITUCIONAL DO CONCURSO PÚBLICO, ESSENCIAL À CONCRETIZAÇÃO DO PRINCÍPIO DA IGUALDADE - AÇÃO DIRETA JULGADA PROCEDENTE. O CONCURSO PÚBLICO REPRESENTA GARANTIA CONCRETIZADORA DO PRINCÍPIO DA IGUALDADE, QUE NÃO TOLERA TRATAMENTOS DISCRIMINATÓRIOS NEM LEGITIMA A CONCESSÃO DE PRIVILÉGIOS. - A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal - tendo presente a essencialidade do postulado inscrito no art. 37, II, da Carta Política - tem censurado a validade jurídico-constitucional de normas que autorizam, permitem ou viabilizam, independentemente de prévia aprovação em concurso público de provas ou de provas e títulos, o ingresso originário no serviço estatal ou o provimento em cargos administrativos diversos daqueles para os quais o servidor público foi admitido. Precedentes. - O respeito efetivo à exigência de prévia aprovação em concurso público qualifica-se, constitucionalmente, como paradigma de legitimação ético-jurídica da investidura de qualquer cidadão em cargos, funções ou empregos públicos, ressalvadas as hipóteses de nomeação para cargos em comissão (CF, art. 37, II). A razão subjacente ao postulado do concurso público traduz-se na necessidade essencial de o Estado conferir efetividade ao princípio constitucional de que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, vedando-se, desse modo, a prática inaceitável de o Poder Público conceder privilégios a alguns ou de dispensar tratamento discriminatório e arbitrário a outros. Precedentes. Doutrina”.

(STF – ADI n. 1350 – Relator Min. CELSO DE MELLO – Tribunal Pleno – j. 24.02.2005)

 

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. DISPOSITIVOS DAS LEIS COMPLEMENTARES 78/1993 E 90/1993 DO ESTADO DE SANTA CATARINA E DA RESOLUÇÃO 40/1992 DA ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA DO ESTADO DE SANTA CATARINA. Inadmissibilidade, à luz da Constituição de 1988, de formas derivadas de investidura em cargos públicos. Inconstitucionalidade de normas estaduais que prevêem hipóteses de progressão funcional por acesso, transposição (em modalidade individual, diversa das exceções admitidas pela jurisprudência do STF), enquadramento a partir de estabilidade não decorrente de investidura por concurso público, acesso por seleção interna, transferência entre quadros e enquadramento por correção de disfunção relativamente ao nível de escolaridade do servidor. Ação prejudicada em parte, em decorrência da revogação de dispositivos atacados. Ação procedente na parte restante, para se declarar a inconstitucionalidade do art. 12, caput e § 1º, § 2º e § 3º, da Lei Complementar estadual 78/1993 e do inciso II, § 2º e § 3º do art. 17 da Resolução 40/1992 da Assembléia Legislativa do Estado de Santa Catarina”.

(STF – ADI n. 951 – Relator: Min. JOAQUIM BARBOSA – Tribunal Pleno – j. 18.11.2004)

32.          Tal entendimento tornou-se ainda mais concreto com a edição da Súmula n. 685, cujo teor expressa que:

“É inconstitucional toda modalidade de provimento que propicie ao servidor investir-se, sem prévia aprovação em concurso público destinado ao seu provimento, em cargo que não integra a carreira na qual anteriormente investido”.

33.          Em suma, a espécie exibe ofensa ao princípio de moralidade administrativa que preordena a exigência constitucional de provimento originário de cargos ou empregos públicos isolados ou de carreira mediante prévia aprovação em concurso público e que, de outra parte, recebe o influxo do princípio da impessoalidade administrativa ao interditar toda a sorte de favorecimentos e privilégios na investidura no serviço público e nas funções públicas correlatas.

34.          Cabe destacar, ainda, a inconstitucionalidade do artigo 218 da Lei n. 1.587/98, tendo em vista que tal dispositivo determina que seja aplicado o regime estatutário, por ela estabelecido, aos servidores dos Poderes do Município, das autarquias e das fundações públicas, regidos pela Lei n. 1.573/98, ou seja, aos servidores que ilicitamente proveram, de maneira derivada, os cargos públicos criados a partir da “transformação” de empregos públicos e funções comissionadas.

35.          Por fim, não se pode olvidar que, acaso acolhido o pedido da presente ação direta de inconstitucionalidade, os artigos 21 e 22 da Lei n. 888, de 12 de dezembro de 1978, que foram revogados pela Lei n. 1.587, de 02 de setembro de 1998, padecem de idêntico vício de constitucionalidade, e serão automaticamente restaurados, tornando, necessário, assim, que se reconheça sua inconstitucionalidade por arrastamento ou atração, sob pena de se instaurar situação mais gravosa que aquela que se busca combater.

36.          A respeito da inconstitucionalidade por arrastamento, tem-se que:

"(...) se em determinado processo de controle concentrado de constitucionalidade for julgada inconstitucional a norma principal, em futuro processo, outra norma dependente daquela que foi declarada inconstitucional em processo anterior - tendo em vista a relação de instrumentalidade que entre elas existe - também estará eivada pelo vício da inconstitucionalidade 'conseqüente', ou por 'arrastamento' ou por 'atração'" (Pedro Lenza. Direito Constitucional Esquematizado. 13ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 208).

37.          Segundo precedentes do Pretório Excelso é perfeitamente possível a declaração de inconstitucionalidade por arrastamento (cf., p. ex., STF, Pleno, ADI 1.144/RS, rel. Min. Eros Grau, DJU de 08/09/06, pág. 16; STF, Pleno, ADI 3.645/PR, rel. Min. Ellen Gracie, DJU de 01/09/06, pág. 16; STF, Pleno, ADI-QO 2.982/CE, rel. Min. Gilmar Mendes, LexSTF, 26/105; STF, Pleno, ADI 2.895/AL, rel. Min. Carlos Velloso, RTJ, 194/533; STF, Pleno, ADI 2.578/MG, rel. Min. Celso de Mello, DJUde 09/06/05, pág. 4).

38.          A declaração de inconstitucionalidade por arrastamento é possível, sempre que: a) o reconhecimento da inconstitucionalidade de determinado dispositivo legal torna despidos de eficácia e utilidade outros preceitos do mesmo diploma, ainda que não tenham sido impugnados; b) nos casos em que o efeito represtinatório restabelece dispositivos já revogados pela lei viciada que ostentem o mesmo vicio; c) quando há na lei dispositivos que não foram impugnados, mas guardam direta relação com aqueles cuja inconstitucionalidade é reconhecida.

39.          Restabelecidos os efeitos da lei revogada, dá-se o que se chama de efeito indesejado, já havendo assentado o Supremo Tribunal Federal que:

"A reentrada em vigor da norma revogada nem sempre é vantajosa. O efeito repristinatório produzido pela decisão do Supremo, em via de ação direta, pode dar origem ao problema da legitimidade da norma revivida. De fato, a norma reentrante pode padecer de inconstitucionalidade ainda mais grave que a do ato nulificado. Previne-se o problema com o estudo apurado das eventuais conseqüências que a decisão judicial haverá de produzir. O estudo deve ser levado a termo por ocasião da propositura, pelos legitimados ativos, de ação direta de inconstitucionalidade. Detectada a manifestação de eventual eficácia repristinatória indesejada, cumpre requerer igualmente, já na inicial da ação direta, a declaração da inconstitucionalidade, e, desde que possível, a do ato normativo ressuscitado." (ADIn 2.621-MC/DF, Rei. Min. Celso de Mello, j . em 1°.8.2002).

 

40.          Nesse contexto, a declaração de inconstitucionalidade por arrastamento, dos artigos 21 e 22 da Lei n. 888, de 12 de dezembro de 1978, é medida de rigor, pois referida Lei Municipal apresenta os mesmos vícios constitucionais que maculam a Lei n. 1.573, de 02 de julho de 1998, que lhe revogou.

41.          Portanto, os artigos 23 e 218 da Lei n. 1.587, de 02 de setembro de 1998, e, por arrastamento, os artigos 21 e 22, da Lei n. 888, de 12 de dezembro de 1978, bem como os artigos 1º e 2º, §1º, da Lei n. 1.573, de 02 de julho de 1998, todas do Município de Valentim Gentil, são inconstitucionais por violarem os artigos 111 e 115, inciso II, da Constituição Estadual, a cuja observância se encontram subordinados os Municípios por força de seus artigos 144 e 297.

 

III – Pedido liminar

42.          À saciedade demonstrado o fumus boni iuris, pela ponderabilidade do direito alegado, soma-se a ele o periculum in mora. A atual tessitura dos preceitos legais do Município de Valentim Gentil, apontados como violadores de princípios e regras da Constituição do Estado de São Paulo, é sinal, de per si, para suspensão de sua eficácia até final julgamento desta ação porque permitem o provimento derivado de cargos públicos, comprometendo as forças do erário.

43.          À luz deste perfil, requer-se a concessão de liminar para a suspensão da eficácia, até final e definitivo julgamento desta ação, do artigos 23 e 218 da Lei n. 1.587, de 02 de setembro de 1998, e, por arrastamento, dos artigos 21 e 22, da Lei n. 888, de 12 de dezembro de 1978, bem como dos artigos 1º e 2º, §1º, da Lei n. 1.573, de 02 de julho de 1998, todas do Município de Valentim Gentil.

IV – Pedido

44.          Face ao exposto, requerendo o recebimento e o processamento da presente ação para que, ao final, seja julgada procedente para declarar a inconstitucionalidade do artigos 23 e 218 da Lei n. 1.587, de 02 de setembro de 1998, e, por arrastamento, dos artigos 21 e 22, da Lei n. 888, de 12 de dezembro de 1978, bem como dos artigos 1º e 2º, §1º, da Lei n. 1.573, de 02 de julho de 1998, todas do Município de Valentim Gentil.

45.          Requer-se ainda sejam requisitadas informações à Câmara Municipal e ao Prefeito do Município de Valentim Gentil, bem como, em seguida, seja citado o Procurador-Geral do Estado para se manifestar sobre os atos normativos impugnados, protestando, posteriormente, nova vista para manifestação final.

 

São Paulo, 28 de janeiro de 2010.

 

Fernando Grella Vieira

Procurador-Geral de Justiça

 

WPMJ/mmk


 

Protocolado nº 152.164/08

Assunto: Inconstitucionalidade dos artigos 1º e 2º, §1º, da Lei nº 1.573, de 02 de julho de 1998, dos artigos 23 e 218 da Lei nº 1.587, de 02 de setembro de 1998, e, por arrastamento, dos artigos 21 e 22, da Lei nº 888, de 12 de dezembro de 1978, todas do Município de Valentim Gentil.

 

 

 

 

 

1.    Distribua-se a petição inicial da ação direta de inconstitucionalidade, em face dos artigos 1º e 2º, §1º, da Lei nº 1.573, de 02 de julho de 1998, dos artigos 23 e 218 da Lei nº 1.587, de 02 de setembro de 1998, e, por arrastamento, dos artigos 21 e 22, da Lei nº 888, de 12 de dezembro de 1978, todas do Município de Valentim Gentil, junto ao Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

2.    Oficie-se ao interessado, informando-lhe a propositura da ação, com cópia da petição inicial.

 

                    São Paulo, 9 de fevereiro de 2010.

 

 

 

 

Fernando Grella Vieira

Procurador-Geral de Justiça

 

 

 

 

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