EXCELENTÍSSIMO SENHOR DESEMBARGADOR PRESIDENTE DO E. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

Protocolado nº 160.303/11

Assunto: Inconstitucionalidade da Lei nº 5.020, de 25 outubro de 2010, do Município de Mogi Mirim.

 

Ementa: Ação Direta de Inconstitucionalidade em face da Lei nº 5.020, de 25 de outubro de 2010, do Município de Mogi Mirim, que “institui o Programa de Revitalização do Complexo José Geraldo de Franco Ortiz- Lavapés”.  Criação de atribuições a órgãos e agentes públicos municipais. Matéria de iniciativa reservada ao Executivo (CE, art. 24, § 2.º, 1). O planejamento, a organização, a direção e a prestação de serviços públicos inserem-se na órbita de atribuições tipicamente administrativas do Executivo. Caracterizada a usurpação de atribuições do Prefeito pela Câmara, com repercussão direta na independência e harmonia entre os Poderes (CE, art. 5.º). Violação dos arts. 5º, 25, 47, II, 144 e 176, I da Constituição do Estado de São Paulo. Precedentes do TJ/SP.

O Procurador-Geral de Justiça do Estado de São Paulo, no exercício da atribuição prevista no art. 116, inciso VI, da Lei Complementar Estadual nº 734, de 26 de novembro de 1993 (Lei Orgânica do Ministério Público de São Paulo), em conformidade com o disposto no art. 125, § 2º, e no art. 129, inciso IV, da Constituição Federal, e ainda nos arts. 74, inciso VI, e 90, inciso III, da Constituição do Estado de São Paulo, com amparo nas informações colhidas no incluso protocolado, vem, respeitosamente, perante esse Egrégio Tribunal de Justiça, promover a presente AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE da Lei nº 5.020, de 25 de outubro de 2010, do Município de Mogi Mirim, pelos fundamentos a seguir expostos.

I – DO ATO NORMATIVO IMPUGNADO

A Lei nº 5.020, de 25 de outubro de 2010, do Município de Mogi Mirim, que “institui o Programa de Revitalização do Complexo José Geraldo de Franco Ortiz- Lavapés”, apresenta a seguinte redação:

“Art.1º - Fica instituído o Programa de Revitalização do Complexo José Geraldo de Franco Ortiz-Lavapés.

 Art. 2º - O Programa ora instituído inclui:

a) - o desassoreamento do lago;

b) - instalação e manutenção de iluminação de boa qualidade para segurança dos munícipes;

c) - instalação e manutenção de bancos de assento;

d) – instalação e manutenção de lixeiras a cada 50 (cinquenta) metros;

e) delimitação, demarcação e sinalização da ciclovia;

f) recuperação e manutenção da área de passeio e pista de corrida/caminhada;

g) sinalização indicativa de distância percorrida na pista de corrida/caminhada;

h) reconstrução e manutenção da plataforma sobre o lago (píer);

i) instalação e manutenção de aparelhos de ginástica;

j) atualização e manutenção periódica da sinalização para os pedestres, ciclistas e automotivos;

k) instalação de luzes coloridas na fonte de água (aspersor);

l) iluminação adequada dos campos de futebol;

m) instalação e manutenção de playground;

n) instalação de quiosques;

o) plantio e conservação de novas espécies de árvores bem como identificação de cada exemplar;

p) reforma e manutenção das quadras poliesportivas;

q) recuperação do mini zôo;

r) ampliação da área de estacionamento de automotores;

s) criação de bicicletas;

t) construção de banheiros públicos.

Art. 3º - Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação, sendo revogadas as disposições em contrário”.

 

II – DO DIREITO

A lei impugnada institui o Programa de Revitalização do Complexo José Geraldo de Franco Ortiz-Lavapés, através do qual a Administração Municipal deverá proceder às determinações constantes dos incisos do art. 2º.

Em que pesem os elevados propósitos que inspiraram o Vereador, autor do projeto, a lei promulgada é verticalmente incompatível com a Constituição do Estado de São Paulo, especialmente com os seus arts. 5.º, 25, 47, II, 144 e 176, I, os quais dispõem o seguinte:

“Art. 5.º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

Art. 24 – A iniciativa A iniciativa das leis complementares e ordinárias cabe a qualquer membro ou comissão da Assembléia Legislativa, ao Governador do Estado, ao Tribunal de Justiça, ao Procurador-Geral de Justiça e aos cidadãos, na forma e nos casos previstos nesta Constituição.

(...)

§ 2º - Compete, exclusivamente, ao Governador do Estado a iniciativa das leis que disponham sobre:

1 - criação e extinção de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica, bem como a fixação da respectiva remuneração;

Art. 25 – Nenhum projeto de lei que implique a criação ou o aumento de despesa pública será sancionado sem que dele conste a indicação dos recursos disponíveis, próprios para atender aos novos encargos.

Art. 47 – Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas nesta Constituição:

II – exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior da administração estadual;

Art. 144 – Os Municípios, com autonomia, política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.

Art. 176- São vedados:

I - O início de programas, projetos e atividades não incluídos na lei orçamentária anual.”

Nos entes políticos da Federação, dividem-se as funções de governo: o Executivo foi incumbido da tarefa de administrar, segundo a legislação vigente, por força do postulado da legalidade, enquanto que o Legislativo ficou responsável pela edição das normas genéricas e abstratas, as quais compõem a base normativa para as atividades de gestão.

Essa repartição de funções decorre da incorporação à Constituição brasileira do princípio da independência e harmonia entre os Poderes (art. 2.º), preconizado por Montesquieu, e que visa a impedir a concentração de poderes num único órgão ou agente, o que a experiência revelou conduzir ao absolutismo.

A tarefa de administrar o Município, a cargo do Executivo, engloba as atividades de planejamento, organização e direção dos serviços públicos, o que abrange, efetivamente, a concepção de programas, como o da espécie em análise.

Por intermédio da lei em análise, a Câmara institui um programa e cria obrigações, onerando a Administração. Embora elogiável a preocupação do Legislativo local com o tema, a iniciativa não tem como prosperar na ordem constitucional vigente, uma vez que a norma disciplina atos que são próprios da função executiva.

Isto porque, a revitalização do Complexo José Geraldo de Franco Ortiz-Lavapés constitui inegavelmente serviço público municipal (CF, art. 30, V). Nessa linha de raciocínio, HELY LOPES MEIRELLES adverte que: “A competência do Município para organizar e manter serviços públicos locais está reconhecida constitucionalmente, como um dos princípios asseguradores de sua autonomia administrativa (art. 30).”(Cf. Direito Administrativo Brasileiro, RT, São Paulo, 16.ª ed., 2.ª tiragem, p. 298)      

Desta feita o legislador está instituindo serviço público.

Não há dúvida, porém, que a criação e a forma de prestação de serviços públicos são matérias de preponderante interesse do Poder Executivo, já que é a esse Poder que cabe a responsabilidade, perante a sociedade, pela eficiência do serviço. Sendo assim, a iniciativa do processo legislativo para criação e funcionamento de serviços públicos é privativa do Poder Executivo, pois, como assinala Manoel Gonçalves Ferreira Filho “o aspecto fundamental da iniciativa reservada está em resguardar a seu titular a decisão de propor direito novo em matérias confiadas à sua especial atenção, ou de seu interesse preponderante” (Do Processo Legislativo, São Paulo, Saraiva, p. 204).

Por esse motivo, a Constituição Estadual, em dispositivo que repete o artigo 61, § 1º, II, e, da Constituição Federal, conferiu ao Governador do Estado a iniciativa privativa das leis que disponham sobre as atribuições da administração pública e, consequentemente, sobre os serviços públicos por ela prestados, direta ou indiretamente. Trata-se de questão relativa ao processo legislativo, cujos princípios são de observância obrigatória pelos Municípios, em face do artigo 144, da Constituição do Estado, tal como tem decidido o C. Supremo Tribunal Federal:

“O modelo estruturador do processo legislativo, tal como delineado em seus aspectos fundamentais pela Constituição da República - inclusive no que se refere às hipóteses de iniciativa do processo de formação das leis - impõe-se, enquanto padrão normativo de compulsório atendimento, à incondicional observância dos Estados-Membros. Precedentes: RTJ 146/388 - RTJ 150/482” (ADIn nº 1434-0, medida liminar, relator Ministro Celso de Mello, DJU nº 227, p. 45684).

Se a regra é impositiva para os Estados-membros, é induvidoso que também o é para os Municípios.

As normas de fixação de competência para a iniciativa do processo legislativo derivam do princípio da separação dos poderes, que nada mais é que o mecanismo jurídico que serve à organização do Estado, definindo órgãos, estabelecendo competências e marcando as relações recíprocas entre esses mesmos órgãos (Manoel Gonçalves Ferreira Filho, op. cit., pp. 111-112). Se essas normas não são atendidas, como no caso em exame, fica patente a inconstitucionalidade, em face de vício de iniciativa.

Sobre isso, ensinou Hely Lopes Meirelles que se “a Câmara, desatendendo à privatividade do Executivo para esses projetos, votar e aprovar leis sobre tais matérias, caberá ao Prefeito vetá-las, por inconstitucionais. Sancionadas e promulgadas que sejam, nem por isso se nos afigura que convalesçam de vício inicial, porque o Executivo não pode renunciar prerrogativas institucionais inerentes às suas funções, como não pode delegá-las aquiescer em que o Legislativo as exerça” (Direito Municipal Brasileiro, São Paulo, Malheiros, 7ª ed., pp. 544-545).

Ademais, se a Constituição atribuiu ao Poder Executivo a responsabilidade pela prestação dos serviços públicos, é evidente que, pela teoria dos poderes implícitos, a ele deve caber a iniciativa das leis que tratem sobre a matéria. Essa teoria dos poderes implícitos - implied powers - surgiu no voto de Marshall, proferido no leading case McCulloch versus Maryland, de 1819, afirmando que, quando o Governo recebe poderes no sentido de cumprir certas finalidades estatais, dispõe também, implicitamente, dos meios necessários de execução. “Se o governante tem atribuições para praticar certos atos, cabe-lhe igualmente exercer aquelas que possibilitem seu exercício” (Caio Mário da Silva Pereira, em “Pareceres do Consultor-Geral da República”, v. 68, pp. 99-100).

Daí porque o Legislativo Municipal não poderia subtrair do Prefeito o exame da conveniência e da oportunidade de criar um serviço público e fixar as regras para a sua prestação. Fazendo-o, ofendeu claramente o princípio da separação dos poderes (artigo 5º da Constituição Estadual), com a violação da iniciativa reservada do Executivo para desencadear o processo legislativo correspondente (artigo 24, § 2º, 1, c.c. artigo 47, II, da mesma Carta).

Com efeito, ao Executivo cumpre com exclusividade formular a opção política de prestar os serviços públicos diretamente ou delegá-los a particulares, como também celebrar convênios, acordos e parcerias com entes públicos e privados, não podendo, no exercício dessas atribuições, sofrer nenhum tipo de interferência estranha da Câmara.

Em casos semelhantes, esse E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo tem afastado a interferência do Poder Legislativo na definição de atividades e das ações concretas a cargo da Administração, destacando-se:

“Ao executivo haverá de caber sempre o exercício de atos que impliquem no gerir as atividades municipais. Terá, também, evidentemente, a iniciativa das leis que lhe propiciem a boa execução dos trabalhos que lhe são atribuídos. Quando a Câmara Municipal, o órgão meramente legislativo, pretende intervir na forma pela qual se dará esse gerenciamento, está a usurpar funções que são de incumbência do Prefeito” (Adin. n. 53.583-0, Rel. Dês. Fonseca Tavares; Adin n. 43.987, Rel. Dês. Oetter Guedes; Adin n. 38.977, Rel. Dês. Franciulli Netto; Adin n. 41.091, Rel. Dês. Paulo Shintate).

Nota-se, por fim, que a lei gera aumento de despesa sem indicação da fonte e, destarte, colide com as disposições dos artigos 25 e 176, inc. I, da Constituição Bandeirante.

Sob esse aspecto, é de se notar que a instituição do programa de revitalização em questão, gera despesa para o Município que não está coberta pela lei orçamentária, o que se incompatibiliza com as disposições dos artigos 25 e 176, I, da Constituição do Estado.

Esse Sodalício, aliás, tem declarado a inconstitucionalidade de leis municipais que infringem esses comandos:

“LEI MUNICIPAL QUE, DEMAIS IMPÕE INDEVIDO AUMENTO DE DESPESA PÚBLICA SEM A INDICAÇÃO DOS RECURSOS DISPONÍVEIS, PRÓPRIOS PARA ATENDER AOS NOVOS ENCARGOS (CE, ART 25). COMPROMETENDO A ATUAÇÃO DO EXECUTIVO NA EXECUÇÃO DO ORÇAMENTO - ARTIGO 176, INCISO I, DA REFERIDA CONSTITUIÇÃO, QUE VEDA O INÍCIO DE PROGRAMAS. PROJETOS E ATIVIDADES NÃO INCLUÍDOS NA LEI ORÇAMENTÁRIA ANUAL” (ADIn 142.519-0/5-00, rel. Des. Mohamed Amaro, 15.8.2007).

III – DA LIMINAR

Presentes, na hipótese examinada, os pressupostos do fumus bonis iuris e do periculum in mora, a justificar a suspensão liminar da vigência e eficácia do ato normativo impugnado.

A razoável fundamentação jurídica decorre dos motivos expostos anteriormente, que indicam, de forma clara, que a lei impugnada na presente ação padece de vício de inconstitucionalidade.

O perigo da demora decorre especialmente da ideia de que, sem a imediata suspensão da vigência e eficácia do ato normativo impugnado, poderá haver indevida interferência nas atribuições do Chefe do Poder Executivo.

Assim, a imediata suspensão da eficácia do ato normativo, cuja inconstitucionalidade é palpável, evita qualquer desdobramento no plano dos fatos que possa significar, na prática, prejuízo concreto para o Poder Público Municipal, tanto no aspecto administrativo, como do ponto de vista do orçamento público.

IV – CONCLUSÃO

Posto isso, requer-se a concessão da liminar, para fins de suspensão imediata da eficácia da lei impugnada.

Além disso, evidenciada a necessidade de reconhecimento da inconstitucionalidade da lei aqui examinada, requer-se o recebimento e processamento da presente ação declaratória, para que ao final seja julgada procedente, reconhecendo-se a inconstitucionalidade da  Lei nº 5.020, de 25 de outubro de 2010, do Município de Mogi Mirim, que “institui o Programa de Revitalização do Complexo José Geraldo de Franco Ortiz-Lavapés”.

Requer-se ainda sejam requisitadas informações à Câmara Municipal e ao Prefeito Municipal de Mogi Mirim, bem como citado o Procurador-Geral do Estado para se manifestar sobre a legislação impugnada.

Posteriormente, aguarda-se vista para fins de manifestação final.

São Paulo, 10 de fevereiro de 2012.

                        Walter Paulo Sabella

                        Procurador-Geral de Justiça

                        em exercício

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Protocolado nº 160.303/11

Interessado: Promotoria de Justiça de Mogi Mirim

Assunto: Inconstitucionalidade da Lei nº 5.020, de 25 de outubro de 2010, do Município de Mogi Mirim.

 

 

 

 

1.     Distribua-se a petição inicial da ação direta de inconstitucionalidade, em face da Lei nº 5.020, de 25 de outubro de 2010, que “institui o Programa de Revitalização do Complexo José Geraldo de Franco Ortiz-Lavapés”.

2.     Oficie-se ao interessado, informando-lhe a propositura da ação, com cópia da petição inicial.

 

                   São Paulo, 10 de fevereiro de 2012.

 

 

Walter Paulo Sabella

Procurador-Geral de Justiça

em exercício

 

 

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