EXCELENTÍSSIMO SENHOR DESEMBARGADOR PRESIDENTE DO E. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

 

Protocolado nº 163.745/2009

Assunto: Inconstitucionalidade do art.4º, da Lei n. 3.336, de 27 de julho de 2001 e da Lei n. 3.340, de 24 de agosto de 2001, ambas do Município de Itapira.

 

Ementa: Art. 4º e seus parágrafos 1º e 2º, da Lei n. 3.336, de 27 de julho de 2001 e da Lei n. 3.340, de 24 de agosto de 2001, ambas do Município de Itapira, que dispõe sobre  hipótese de contratação por tempo determinado. Previsões que não se ajustam à regra do artigo 115, inc. X, da Constituição do Estado. Dispositivo constitucional que merece interpretação restritiva, por excepcionar a regra do concurso público. Pedido de declaração de inconstitucionalidade do dispositivo legal impugnado.

 

O Procurador-Geral de Justiça do Estado de São Paulo, no exercício da atribuição prevista no art. 116, inciso VI, da Lei Complementar Estadual nº 734, de 26 de novembro de 1993 (Lei Orgânica do Ministério Público de São Paulo), em conformidade com o disposto no art. 125, § 2º e art. 129, inciso IV da Constituição Federal, e ainda art. 74, inciso VI e art. 90, inciso III da Constituição do Estado de São Paulo, com amparo nas informações colhidas no incluso protocolado, vem, respeitosamente, perante esse Egrégio Tribunal de Justiça, promover a presente AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE do art. 4º e seus parágrafos 1º e 2º, da Lei n. 3.336, de 27 de julho de 2001 e da Lei n. 3.340, de 24 de agosto de 2001, ambas do Município de Itapira, pelos fundamentos a seguir expostos:

1. INTRODUÇÃO

Como exceção à regra geral que impõe à Administração a realização de concurso púbico para a contratação de servidores, o artigo 37, inc. IX, da Constituição da República e o artigo 115, inc. X, da Constituição do Estado de São Paulo permitem que a lei defina os casos de contratação por tempo determinado para atender a necessidade temporária de excepcional interesse público.

A doutrina aponta três requisitos obrigatórios para a utilização dessa exceção, sob pena de inconstitucionalidade, por se tratar, na expressão de Pinto Ferreira[1], de uma “válvula de escape” para a exigência do concurso público: (a) excepcional interesse público; (b) temporariedade da contratação; e (c) hipóteses expressamente previstas em lei.

No caso dos autos, o Município de Itapira editou a Lei n. 3.336, de 27 de julho de 2001, que “dispõe sobre o funcionamento da Guarda Municipal- Classe Especial e dá outras providências” que trata da contratação de 77 (setenta e sete) efetivos da Guarda Municipal Classe Especial nos termos da Lei Municipal n. 2.062, de 23 de janeiro de 1989, que trata de contratações para atender a necessidade temporária de excepcional interesse público, que serão submetidos ao regime de Consolidação das Leis do Trabalho CLT, com funções específicas a serem definidas em regulamento.

Consideramos, entretanto, que as previsões do art. 4º e seus parágrafos não se adequam à moldura constitucional.

Art. 4º - Os atuais Guardas Municipais, ou os que vierem a ser admitidos, poderão ser designados para o exercício de funções típicas da Classe Especial, preenchidos os requisitos estabelecidos, hipóteses em que poderão fazer jus até o limite da gratificação prevista nesta Lei”

A Lei n. 3.340, de 24 de agosto de 2001, por sua vez, acresceu os §§1º e 2º ao art. 4º, da Lei n. 3.336/2001, que apresentam a seguinte redação:

“Art. 1º - O art. 4º da Lei n. 3.336, de 27 de julho de 2001, é acrescido dos seguintes parágrafos:

“Art. 4º .........

§1º - Ocorrendo a hipótese prevista neste artigo, poderão ser contratados Guardas em caráter temporário, nos termos da Lei n. 2.062, de 29 de janeiro de 1989, para suprir as lacunas decorrentes da designação da Guardas Municipais para o exercício de funções da Classe Especial.

§2º - O prazo da contratação prevista ao parágrafo anterior ficará restrito ao tempo em que perdurar a designação dos Guardas Municipais para o exercício de funções da Guarda Especial”.

Art. 2º - Esta lei entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário”.

Os atos normativos em questão contrariam, como se verá, os artigos 111; 115, incisos II e X; e 144 da Constituição do Estado de São Paulo.

2. FUNDAMENTAÇÃO

As disposições normativas impugnadas são verticalmente incompatíveis com a Constituição do Estado de São Paulo, especialmente com os seus artigos 111; 115, incisos II e X; e 144, verbis:

Art. 111 – A administração pública direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes do Estado, obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, razoabilidade, finalidade, motivação, interesse público e eficiência.

Art. 115 – Para a organização da administração pública direta e indireta, inclusive as fundações instituídas ou mantidas por qualquer dos Poderes do Estado, é obrigatório o cumprimento das seguintes normas:

(...)    

II – a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia, em concurso público de provas ou de provas e títulos, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão, declarado em lei, de livre nomeação e exoneração;

(...)    

X – a lei estabelecerá os casos de contratação por tempo determinado, para atender a necessidade temporária de excepcional interesse público;

Art. 144 – Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.

Na sistemática vigente, a regra para a contratação de pessoal no serviço público é a realização de concurso, sendo exceções os casos que seguem: (a) cargos em comissão (art. 37, II, da CF; art. 115, II, da Constituição Paulista); (b) contratação em caso de necessidade temporária de excepcional interesse público (art. 37, IX da CF; art.115, X, da Constituição Paulista); e (c) provimento originário de cargos pelo quinto constitucional nos Tribunais Superiores e Tribunais de Contas (art. 73, 94, 101, 104, 111-A, 123 da CF).

De acordo com o inciso IX do art. 37 da CF (reproduzido no art. 115, X, da Constituição Paulista), “a lei estabelecerá os casos de contratação por tempo determinado para atender a necessidade temporária de excepcional interesse público”.

Para que se tenha como legítima a contratação de servidores em caráter temporário, extraem-se do preceito constitucional os seguintes pressupostos: (a) a existência de lei editada pelo ente federativo prevendo as hipóteses de contratação sem concurso; (b) que o contrato seja por prazo determinado; (c) que haja necessidade verdadeiramente temporária; (d) que esteja identificado o excepcional interesse público.

A respeito do tema, Adilson de Abreu Dallari explica:

“A lei deve indicar, como casos de contratação temporária aquelas situações de excepcional interesse público referidas na Constituição, como, por exemplo, a ocorrência de calamidade pública, execução de serviços essencialmente transitórios, a necessidade de implantação imediata de um novo serviço, a manutenção de serviços que possam ser sensivelmente prejudicados em decorrência de demissão ou exoneração de seus executantes, etc. (...) Evidentemente, deverão ser estabelecidos prazos máximos de contratação, conforme as circunstâncias, estabelecendo-se, de plano, a proibição de prorrogação do contrato e a nova contratação da mesma pessoa, ainda que para outra função. Também deve ser estipulado o processo de seleção do pessoal a ser contratado, já que a temporariedade não justifica sejam postergados os princípios da isonomia, da impessoalidade e da moralidade.” (Regime constitucional dos servidores públicos, 2ª ed., 2ª tir., São Paulo, RT, 1992, p.126).

É Hely Lopes Meirelles, no entanto, quem nos alerta acerca do maior pecado que leis da espécie podem conter – a abstração ou a previsão de hipóteses vagas – que conduz ao arbítrio do Chefe do Poder Executivo:

“Essas leis deverão atender aos princípios da razoabilidade e da moralidade. Não podem prever hipóteses abrangentes e genéricas, nem deixar sem definição, ou em aberto, os casos de contratação. Dessa forma, só podem prever casos que efetivamente justifiquem a contratação. Esta, à evidência, somente poderá ser feita sem processo seletivo quando o interesse público assim o permitir” (Direito administrativo brasileiro, 33ª ed., São Paulo, Malheiros, 2007, p.440, g.n.).

E, de fato, no caso, as situações previstas no art. 4º e seus parágrafos 1º e 2º, da Lei n. 3.336/2001 são incompatíveis com a disciplina de contratação por tempo determinado para o atendimento de necessidade temporária de excepcional interesse público.

Referidas previsões colidem com a Constituição do Estado porque não evidenciam a situação de excepcionalidade que autoriza a contratação de pessoal.

Refletindo sobre o tema, Celso Ribeiro Bastos concluiu que a lei integradora deve deixar clara que a situação de excepcionalidade resulta de circunstâncias imprevisíveis pela Administração (Comentários à Constituição do Brasil, São Paulo, Saraiva, 1992, 3º vol., tomo III, p. 98, grifei).

Sendo assim, impõe-se à Administração que não tenha ela mesma, por inércia, dado azo ao surgimento, por exemplo, de uma hipótese de urgência.

Para o autor citado, a “Constituição exclui a possibilidade de a lei definir casos de contratação voltados ao atendimento de funções não relevantes, embora necessárias. O texto distingue, pois, entre o que seja necessidade, mas de caráter restrito, muito provavelmente relacionado a aspectos burocráticos e administrativos, e aquela outra necessidade decorrente da satisfação de um interesse público de relevo, o que significa dizer uma potencialidade de repercutir profundamente nas conveniências da sociedade. Só esta última foi albergada pela Lei Maior” (ob. cit., p. 100).

A aplicação do art. 4º da Lei n. 3.336/2001 permite  a contratação  para atender  necessidade excepcional de efetivo para compor a Guarda Municipal Classe Especial, a qual não foi justificada na lei.

Permite, também, que os atuais Guardas Municipais possam ser designados para o exercício de funções típicas da Guarda Municipal – Classe Especial, hipótese em que poderão fazer jus até o limite da gratificação prevista no art. 5º desta lei.

Possibilita, ainda, que a contratação temporária dos Guardas Municipais perdure por tempo indeterminado, eis que o parágrafo 2º do art.4º, estabelece que o prazo da contratação ficará restrito ao tempo em que perdurar a designação dos Guardas Municipais para o exercício de funções da Guarda Especial, o que é inadmissível.

 Não se discute que o afastamento de servidores e sua substituição por outros do próprio quadro fazem parte da rotina administrativa.

É situação comum e absolutamente previsível ao Chefe do Poder Executivo, e que, por isso mesmo, não se contém na autorização constitucional do contrato temporário.

          A manutenção do efetivo da Guarda Municipal, que exerce atividade permanente, deve fazer parte da rotina administrativa, inclusive porque o exercício da função pressupõe servidor especializado e bem treinado.

Por isso, não é possível recorrer à exceção constitucional para contratação temporária de efetivo para a Guarda Municipal – Classe Especial, sem qualquer justificativa, como pretendeu o legislador municipal.

Não é demais lembrar que, nesse tema, a Constituição terá necessariamente interpretação restritiva, pois o parâmetro de controle expressa exceção à regra geral de acessibilidade aos cargos da Administração por concurso público:

“A Administração Pública direta e indireta. Admissão de pessoal. Obediência cogente à regra geral de concurso público para admissão de pessoal, excetuadas as hipóteses de investidura em cargos em comissão e contratação destinada a atender necessidade temporária e excepcional. Interpretação restritiva do artigo 37, IX, da Carta Federal. Precedentes. Atividades permanentes. Concurso Público” (ADI n. 890/DF, relator Ministro MAURÍCIO CORRÊA, j. 11/09/2003) – destaques nossos

 

Outro problema desse dispositivo reside no elevado grau de abstração que o caracteriza, tornando-o, em conseqüência, incompatível com o art. 115, inc. X, da Constituição Bandeirante.

Eis a deficiência a que se referiu Hely Lopes Meirelles na passagem já transcrita e que, em diversas ocasiões, levou esse Sodalício à declaração de inconstitucionalidade de leis municipais como esta.

À guisa de exemplo, tem-se o recentíssimo julgamento da ADI nº 155.524-0/8-00, do qual foi relator o em. Des. Maurício Ferreira Leite, na qual se sobressai, como fundamento, a repulsa à previsão genérica das hipóteses de contratação temporária.

Colhe-se no voto, acolhido à unanimidade pelos Desembargadores MARCO CÉSAR, MUNHOZ SOARES, SOUSA LIMA, CANGUÇU DE ALMEIDA, CELSO LIMONGI, PENTEADO NAVARRO, OSCARLINO MOELLER, PALMA BISSON, RIBEIRO DOS SANTOS, ARMANDO TOLEDO, A.C.MATHIAS COLTRO, JOSÉ SANTANA, MÁRIO DEVIENNE FERRAZ, JOSÉ REYNALDO, DEBATIN CARDOSO, PAULO TRAVAIN E DAMIÃO COGAN, a confirmação dessa assertiva:

“Analisando toda a questão, deve-se ter em mente que o ingresso direto no serviço público, independentemente de concurso, é absolutamente excepcional, sendo a contratação temporária uma dessas modalidades de acesso.

Como já decidido pelo Supremo Tribunal Federal, a contratação temporária não pode se dar para a seleção de pessoal para a prática de atividades permanentes do serviço público. Confira-se, neste sentido, a ementa da ADI 2987/SC, relator o Min Sepúlveda Pertence:

‘Servidor público: contratação temporária excepcional (CF, art. 37, IX): inconstitucionalidade de sua aplicação para a admissão de servidores para funções burocráticas ordinárias e permanentes.’

Também não se mostra possível a utilização desse instrumento de maneira genérica, sem descrição pormenorizada das condições para tanto, em especial a respeito do tempo determinado para tais contratações e das hipóteses específicas.

Para melhor compreensão da matéria, transcreve-se trecho de ementa da ADI 321 O/PR, rel. o Min Carlos Velloso, que aplica-se, de maneira perfeita, à situação aqui examinada:

‘... - A lei referida no inciso IX do art. 37, C.F., deverá estabelecer os casos de contratação temporária. No caso, as leis impugnadas instituem hipóteses abrangentes e genéricas de contratação temporária, não especificando a contingência fática que evidenciaria a situação de emergência, atribuindo ao chefe do Poder interessado na contratação estabelecer os casos de contratação. Inconstitucionalidade’.

Como visto, a legislação municipal destoa do permissivo constitucional e da interpretação a ele dado pela Corte Suprema, vez que não especifica as hipóteses e nem estabelece um prazo determinado  para essa contratação, motivo pelo

 

qual deve ser acolhido, neste ponto, o pedido ministerial”.

Aliás, a lei contém verdadeira contraditio in terminis, pois cargos existem para as atividades permanentes da Administração e não para realizações específicas para por cobro ao imprevisto. É por isso que Márcio Cammarosano definiu “cargo público como sendo o mais simples e indivisível plexo unitário de competências da organização central do Estado, criado por lei, ou também por decreto-lei, quando da União, com denominação própria e número certo, relativas ao exercício de atividades civis permanentes, a serem desenvolvidas por um agente sob relação de emprego de natureza estatutária” (Márcio Cammarosano, Provimento de cargos públicos no direito brasileiro, São Paulo, RT, 1984, p. 19 – g.n.).

CONCLUSÃO E PEDIDO

Por todo o exposto, evidencia-se a necessidade de reconhecimento da inconstitucionalidade do dispositivo legal apontado.

Assim, aguarda-se o recebimento e processamento da presente Ação Declaratória, para que ao final seja julgada procedente, reconhecendo-se a inconstitucionalidade do art. 4º e seus parágrafos 1º e 2º, da Lei n. 3.336, de 27 de julho de 2001 e da Lei n. 3.340, de 24 de agosto de 2001, ambas do Município de Itapira.

Requer-se ainda sejam requisitadas informações à Câmara Municipal e ao Prefeito Municipal, bem como posteriormente citado o Procurador-Geral do Estado para se manifestar sobre o ato normativo impugnado.

Posteriormente, aguarda-se vista para fins de manifestação final.

 

São Paulo, 23 de agosto de 2010.

 

                         Fernando Grella Vieira

                         Procurador-Geral de Justiça

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Protocolado nº 163.745/09

Interessado:  Subprocuradoria-Geral de Justiça Jurídica

Assunto: Inconstitucionalidade do art.4º, da Lei n. 3.336, de 27 de julho de 2001 e da Lei n. 3.340, de 24 de agosto de 2001, ambas do Município de Itapira

 

 

 

 

 

 

1.    Distribua-se a petição inicial da ação direta de inconstitucionalidade, em face do art.4º, da Lei n. 3.336, de 27 de julho de 2001 e da Lei n. 3.340, de 24 de agosto de 2001, ambas do Município de Itapira, junto ao Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

2.    Oficie-se ao interessado, informando-lhe a propositura da ação, com cópia da petição inicial.

 

 

                    São Paulo, 23 de agosto de 2010.

 

 

 

 

Fernando Grella Vieira

Procurador-Geral de Justiça

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[1] Apud: MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil interpretada e legislação constitucional. 2ª. ed., São Paulo: Atlas, 2003, p. 853-854.