EXCELENTÍSSIMO
SENHOR DESEMBARGADOR PRESIDENTE DO E. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO
PAULO
Protocolado nº 166.028/10
Assunto: Inconstitucionalidade do art. 2º, § 2º, da Lei nº 1.983, de 26 de março de 2001 e Decreto nº 3.264/03, do Município de Itápolis.
Ementa: Reajuste salarial do servidor público municipal. Delegação de atribuição ao Poder Executivo. Ausência de legislação específica. Inconstitucionalidade configurada.
O Procurador-Geral de Justiça do Estado de São Paulo, no exercício da atribuição prevista no art. 116, inciso VI, da Lei Complementar Estadual nº 734, de 26 de novembro de 1993 (Lei Orgânica do Ministério Público de São Paulo), em conformidade com o disposto no art.125, § 2º e no art. 129, inciso IV da Constituição Federal, e ainda no art. 74, inciso VI e no art. 90, inciso III da Constituição do Estado de São Paulo, com amparo nas informações colhidas no incluso protocolado, vem, respeitosamente, perante esse Egrégio Tribunal de Justiça, promover a presente AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE do art. 2º, § 2º, da Lei nº 1.983, de 26 de março de 2001 e do Decreto nº 3.264/03, do Município de Itápolis, pelos fundamentos a seguir expostos.
DOS ATOS NORMATIVOS
IMPUGNADOS.
A Lei nº 1.983, de 26 de março de 2001, do Município de Itápolis, no que interessa, assim dispõe:
“Art. 2º: Os cargos mencionados no Anexo I, ficam classificados e enquadrados no tocante a referências e valores nos termos do Anexo II e III desta lei.
Parágrafo 1º - A majoração da tabela de referências e valores depende de autorização legislativa específica, excetuando-se o previsto no parágrafo seguinte.
Parágrafo 2º - O Executivo poderá, anualmente, fazer a atualização monetária dos valores fixados, tomando por base índices oficiais de inflação.” (g.n.)
O Decreto nº 3.264, de 24 de junho de 2003, por seu
turno, reza:
Artigo 1º - A Tabela de Referência do Anexo III - C da Lei
nº 1983/2001, em razão da atualização monetária autorizada no parágrafo 2º do
artigo 2º da lei citada, fica estabelecida nos termos do anexo a este decreto,
com os novos valores ali constantes.
Artigo 2º - A nova tabela aplica-se a partir do mês de
junho de 2003.
Artigo 3º - Os subsídios pagos aos agentes políticos ficam
atualizados monetariamente pelo menor índice aplicado na correção da tabela.
No entanto, o art. 2º, parág. 2º, da Lei n. 1983/01 e o
Decreto nº 3.264/03, são verticalmente incompatíveis com a Constituição do Estado de São Paulo; houve afronta aos artigos 5º,
§1º, 115, inc. XI e 144 da Constituição bandeirante, com as seguintes disposições:
“Art. 5º - São Poderes do
Estado, independentes e harmônicos
entre si, o Legislativo, o Executivo
e o Judiciário.
§ 1º- É vedado a qualquer dos Poderes delegar atribuições.
Art. 144 - Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por Lei Orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.
Art. 115 - Para a organização da administração pública direta e indireta, inclusive fundações instituídas ou mantidas por qualquer dos Poderes do Estado, é obrigatório o cumprimento das seguintes normas:
(...)
XI- a revisão geral anual da remuneração dos servidores públicos, sem distinção de índices entre servidores públicos civis e militares, far-se-á sempre na mesma data e por lei específica, observada a iniciativa privativa em cada caso;"
Da mesma forma, o art. 37, inc. X da Constituição
Federal, assim dispõe:
"Art. 37: A
administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos
Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de
legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao
seguinte:
(...)
X- a remuneração dos
servidores públicos e o subsídio de que trata o §4º do art. 39 somente poderão
ser fixados ou alterados por lei
específica, observada a iniciativa privativa em cada caso, assegurada
revisão geral anual, sempre na mesma data e sem distinção de índices; (g.n.)
Com isto, tem-se que a Câmara Municipal delegou inconstitucionalmente a tarefa de legislar a respeito da
remuneração do servidor público municipal para um só órgão, unipessoal, o
Executivo, malferindo o art. 5.º da Constituição do Estado de São Paulo. E o Prefeito Municipal, disto se valendo,
editou o Decreto Municipal n. 3.264/03, dispondo sobre a atualização monetária
da Tabela de Referência, que produziu reflexos diretamente na remuneração do
servidor público municipal, restando desta forma, pelos mesmos motivos, contaminado
pela inconstitucionalidade que macula a norma em que se apóia (art. 2º, §2º, da
Lei nº 1.983, de 26 de março de 2001).
Como diz J. J. Gomes
Canotilho:
"Acontece, não raras vezes, que a lei 'reenvia ou remete' para decreto-lei, decretos, resoluções,
portarias etc, a concretização ou especificação dos pormenores da sua
concretização e aplicação ("através de regulamentos regulará a presente
lei"). As remissões da lei para outros instrumentos legais, regulamentares
ou até meramente administrativos, suscita problemas de conformidade
constitucional com os princípios
democrático e de Estado de direito. Quando o ato da remissão tem a mesma
hierarquia e emana da mesma entidade, a remissão dinâmica não levanta
problemas de maior. Ela já levanta problemas constitucionais quando, por
exemplo, uma lei remete para regulamentos ou atos pararegulamentares. Neste caso, a administração pode arrogar-se
um poder paraconstitucional e apócrifo, convertendo-se o
destinatário da remissão em sujeito da remissão. Perante o perigo desta inversão
de competências, com violação do princípio democrático e do princípio do Estado
de direito, há que salientar:
(l) uma remissão não pode ser feita em condições mais benévolas do que
aquelas que vigoram para as próprias autorizações legislativas (...) a remissão
não pode permitir a definição das relações entre o Estado e os cidadãos através
de regulamentos e, muito menos, através de actos “pararegulamentares” (comandos
administrativos, instruções, circulares, despachos interprerativos)
administrativos transformando estes em fontes de normação primária;
(3) a remissão para actos
pararegulamentares ou comandos administrativos só pode ter efeitos meramente
internos". ('Direito
Constitucional e Teoria da Constituição', p. 716, Almedina, Coimbra, 4.ª ed.).
O princípio da reserva de lei, consoante adverte
JORGE MIRANDA ("Manual de Direito
Constitucional",
tomoV/217-220, item n. 62, 2a ed., 2000, Coimbra Editora) - traduz postulado revestido
de função excludente, de caráter negativo (que veda, nas matérias a ela sujeitas, como sucede no caso ora em exame, quaisquer intervenções,
a título primário, de órgãos estatais não-legislativos), e cuja incidência também reforça,
positivamente, o princípio que impõe,
à administração e à jurisdição, a necessária submissão aos
comandos fundados em norma legal, de tal modo que, conforme acentua o ilustre Professor da
Universidade de Lisboa, "quaisquer intervenções - tenham conteúdo normativo ou não normativo -
de órgãos administrativos ou jurisdicionais só podem dar-se a título
secundário, derivado ou executivo, nunca com critérios próprios ou
autônomos de decisão".
E este E. Tribunal de Justiça já decidiu, no célebre
caso das 'Operações Interligadas' (ADin n.º 045.352.0/5-00), que:
Ação Direta de
Inconstitucionalidade. Carência de ação afastada - Viabilidade do controle de
constitucionalidade de lei municipal em face da Constituição Estadual que
repete comando da Carta Republicana - Lei n° 11.773/95, do Município de São
Em
torno do tema, o Supremo Tribunal Federal prestigia a prevalência da reserva
legal na remuneração dos servidores públicos e sua indelegabilidade:
“O tema concernente à disciplina jurídica da remuneração funcional submete-se ao postulado constitucional da reserva absoluta de lei, vedando-se, em conseqüência, a intervenção de outros atos estatais revestidos de menor positividade jurídica, emanados de fontes normativas que se revelem estranhas, quanto à sua origem institucional, ao âmbito de atuação do Poder Legislativo, notadamente quando se tratar de imposições restritivas ou de fixação de limitações quantitativas ao estipêndio devido aos agentes públicos em geral. - O princípio constitucional da reserva de lei formal traduz limitação ao exercício das atividades administrativas e jurisdicionais do Estado. A reserva de lei - analisada sob tal perspectiva - constitui postulado revestido de função excludente, de caráter negativo, pois veda, nas matérias a ela sujeitas, quaisquer intervenções normativas, a título primário, de órgãos estatais não-legislativos. Essa cláusula constitucional, por sua vez, projeta-se em uma dimensão positiva, eis que a sua incidência reforça o princípio, que, fundado na autoridade da Constituição, impõe, à administração e à jurisdição, a necessária submissão aos comandos estatais emanados, exclusivamente, do legislador. Não cabe, ao Poder Executivo, em tema regido pelo postulado da reserva de lei, atuar na anômala (e inconstitucional) condição de legislador, para, em assim agindo, proceder à imposição de seus próprios critérios, afastando, desse modo, os fatores que, no âmbito de nosso sistema constitucional, só podem ser legitimamente definidos pelo Parlamento. É que, se tal fosse possível, o Poder Executivo passaria a desempenhar atribuição que lhe é institucionalmente estranha (a de legislador), usurpando, desse modo, no contexto de um sistema de poderes essencialmente limitados, competência que não lhe pertence, com evidente transgressão ao princípio constitucional da separação de poderes” (STF, ADI-MC 2.075-RJ, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, 07-02-2001, v.u., DJ 27-06-2003, p. 28).
“Em tema de remuneração dos servidores públicos, estabelece a Constituição o princípio da reserva de lei. É dizer, em tema de remuneração dos servidores públicos, nada será feito senão mediante lei, lei específica. CF, art. 37, X, art. 51, IV, art. 52, XIII. Inconstitucionalidade formal do Ato Conjunto n. 01, de 5-11-2004, das Mesas do Senado Federal e da Câmara dos Deputados” (STF, ADI 3.369-MC, Rel. Min. Carlos Velloso, 16-12-2004, DJ 01-02-2005).
“Ação direta de inconstitucionalidade. Resoluções n.ºs 26, de
22/12/94; 15, de 23/10/97, e 16, de 30/10/97, todas do Tribunal de Justiça do
Estado do Espírito Santo, havendo a primeira criado a gratificação de
representação, correspondente a 40% do valor global atribuído a diversos
cargos, estendendo-a, inclusive, aos inativos
que se aposentaram em cargos de
igual denominação ou equivalente. 2. Alegação de ofensa a funções privativas
dos Poderes Legislativo e Executivo. 3. Medida cautelar deferida e suspensa,
com eficácia ex nunc, a eficácia das
Resoluções impugnadas. 4. Procedência da alegação de ofensa a funções
privativas dos Poderes Legislativo e Executivo, eis que há necessidade de lei
em sentido formal para a criação de vantagens pecuniárias a servidores do Poder
Judiciário.
Perfilhando
esta orientação, merece destaque recente julgamento deste egrégio Tribunal de
Justiça cuja ementa é a seguinte:
“Ação Direta de Inconstitucionalidade – Ato normativo municipal que confere ao Chefe do Poder Executivo a possibilidade de, mediante portaria e a seu alvedrio, conceder gratificações de 20 e até 100% sobre os vencimentos dos servidores – Violação da cláusula da reserva legal, visto que somente por lei, em sentido formal, podem ser fixadas gratificações e vantagens – Precedente do Colendo Supremo Tribunal Federal – Preceito normativo que, ademais, vulnera a moralidade, o princípio da impessoalidade e da razoabilidade – Ofensa aos artigos 5º, 24, § 2º, nº 1, 111, 115, XI, todos da Constituição Estadual, aplicáveis aos Municípios ex vi o artigo 144 da mesma Carta – Inconstitucionalidade do § 1º do artigo 5º da Lei nº 3.122 do Município de Cruzeiro reconhecida – Inconstitucionalidade também do § 2º do mesmo preceito por arrastamento – Ação procedente” (TJSP, ADI 169.057-0/3-00, Órgão Especial, Rel. Des. A. C. Mathias Coltro, 28-01-2009, v.u.).
Essa atividade, como demonstrado, deve ser exercida pelo Legislativo, individualmente para cada fixação da remuneração do servidor público municipal, sob pena de se configurar a indesejável delegação de atribuição.
Registre-se que o Estado Democrático de Direito
impõe a repartição do poder e a fuga ao poder monolítico e absoluto. Não convém olvidar que, segundo uma tradição
célebre, um notável liberal inglês do século XIX, Lord Acton, afirmou: "Todo o poder tende a corromper, e o
poder absoluto corrompe absolutamente". [1]
Montesquieu afirmara, lembre-se, ser experiência
eterna que aquele que detém o poder é levado a dele abusar, e é preciso que
encontre limites. O poder absoluto é uma ameaça aos súditos.[2]
CONCLUSÃO E PEDIDO.
Por todo o exposto, evidencia-se a necessidade de reconhecimento da inconstitucionalidade das normas aqui apontadas.
Assim, aguarda-se o recebimento e processamento da presente Ação Declaratória, para que ao final seja julgada procedente, reconhecendo-se a inconstitucionalidade do art. 2º, § 2º, da Lei nº 1.983, de 26 de março de 2001 e do Decreto nº 3.264/03, do Município de Itápolis.
Requer-se ainda sejam requisitadas informações à Câmara Municipal e ao Prefeito Municipal, bem como posteriormente citado o Procurador-Geral do Estado para se manifestar sobre o ato normativo impugnado.
Posteriormente, aguarda-se vista para fins de manifestação final.
São Paulo, 11 de abril de 2011.
Procurador-Geral de Justiça
fjyd
Protocolado nº 166.028/10
Assunto: Inconstitucionalidade do art. 2º, § 2º, da Lei nº 1.983, de 26 de março de 2001 e Decreto nº 3.264/03, do Município de Itápolis.
1. Distribua-se a petição inicial da ação direta de inconstitucionalidade, em face do art. 2º, § 2º, da Lei nº 1.983, de 26 de março de 2001 e Decreto nº 3.264/03, do Município de Itápolis, junto ao Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.
2. Oficie-se ao interessado, informando-lhe a propositura da ação, com cópia da petição inicial.
São Paulo, 11 de abril de 2011.
Procurador-Geral de Justiça
fjyd
[1] Karl
Deutsch, Política e governo, UnB, 2.ª
ed., p. 226.
[2] Como expõe Maurice Duverger, 'in' Droit Constitutionnel et des Institutions
Politiques, p. 198 e ss.: "A idéia
mesma de uma limitação dos governantes é relativamente moderna. Na Antigüidade,
mesmo grega ou romana, a comunidade, o grupo, a 'cidade', estava em lugar
primeiro em relação ao indivíduo. A confusão
do poder político e do poder religioso destruiu toda a idéia de limitar
as prerrogativas dos governantes, investidos de um caráter clerical. É do cristianismo, como fundo, a idéia de
limitar os governantes. Em primeiro
lugar, porque sua concepção mesma do Homem, imagem refletida da Divindade, conduziu a dar ao indivíduo preeminência sobre o grupo. Em seguida, porque a
existência da Igreja Católica absolutizou a separação do poder político e do poder religioso. Quando se
formaram os Estados modernos, independentes do poder papal, a Igreja
esforçou-se por limitar as prerrogativas dos governantes, em nome da religião e
da moral, das quais ela se
proclamava a intérprete. Os teólogos da
Idade Média desenvolveram a idéia das «leis injustas» e forjaram a teoria da
resistência à opressão, primeira expressão de uma doutrina coerente com a
limitação dos governantes."