EXCELENTÍSSIMO SENHOR DESEMBARGADOR PRESIDENTE DO E. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

Protocolado nº 17.037/09

Assunto: Inconstitucionalidade da Lei nº 841, de 11 de dezembro de 2008, do Município de Bertioga.

 

Ementa: Ação direta de inconstitucionalidade proposta pelo PGJ da Lei nº 841, de 11 de dezembro de 2008, do Município de Bertioga, que “define a estrutura administrativa e o quadro funcional da Câmara Municipal de Bertioga”. Cabendo à Câmara Municipal dispor sobre sua organização e a estrutura de seus cargos, viola-se o princípio da separação dos poderes com a submissão da norma à sanção do Chefe do Poder Executivo. Inconstitucionalidade formal reconhecida. Lei que cria cargos de provimento em comissão, aos quais, nada obstante sua denominação, não se relacionam funções de direção, chefia e assessoramento e são mais numerosos do que os cargos de provimento efetivo. Inconstitucionalidade material reconhecida. Pedido para a declaração de inconstitucionalidade por ofensa aos arts. 5º, caput; 19, caput; 20, inc. III; 111; 115, inc. I e II; e 144 da Constituição do Estado.

O Procurador-Geral de Justiça do Estado de São Paulo, no exercício da atribuição prevista no art. 116, inciso VI da Lei Complementar Estadual nº 734, de 26 de novembro de 1993 (Lei Orgânica do Ministério Público de São Paulo), em conformidade com o disposto no art.125, § 2º e art. 129, inciso IV da Constituição Federal, e ainda art. 74, inciso VI e art. 90, inciso III da Constituição do Estado de São Paulo, com amparo nas informações colhidas no incluso protocolado, vem, respeitosamente, perante esse Egrégio Tribunal de Justiça, promover a presente AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE da Lei nº 841, de 11 de dezembro de 2008, do Município de Bertioga, que “define a estrutura administrativa e o quadro funcional da Câmara Municipal de Bertioga”, pelos fundamentos a seguir expostos.

O advogado Dr. (...) OAB nº 161.020/SP, representou pelo eventual ajuizamento de ação direta de inconstitucionalidade da Lei nº 841, de 11 de dezembro de 2008, do Município de Bertioga/SP, que “define a estrutura administrativa e o quadro funcional da Câmara Municipal de Bertioga”.

Segundo o representante, a lei em epígrafe aumentou o número de cargos de provimento em comissão na Câmara Municipal, de modo que cada vereador poderá recrutar cinco assessores e o presidente sete.

Constata-se no texto que os cargos de provimento comissionado constam do Anexo II da lei questionada e são os seguintes: Secretário Geral (1 vaga); Assessor Jurídico (1 vaga); Assessor de Imprensa (1 vaga); Chefe de Gabinete (9 vagas); Assessor Parlamentar I (9 vagas); Assessor Parlamentar IV (3 vagas); e Assessor Parlamentar II (28 vagas). As funções desses cargos foram definidas no Anexo III, consoante se verifica a fls. 16.

Após examinar a aludida representação e a documentação constante dos autos, esta Procuradoria-Geral de Justiça pôde constatar que a Lei nº 841, de 11 de dezembro de 2008, do Município de Bertioga/SP, que “define a estrutura administrativa e o quadro funcional da Câmara Municipal de Bertioga”, contem inconstitucionalidades de ordem formal e material, como será demonstrado adiante.

Com efeito, a lei impugnada é incompatível com a Carta Paulista, mormente com os seus arts. 5.º, ‘caput’, 19, ‘caput’, 20, inciso III, 111, 115, incisos I e II, e 144, os quais assim dispõem:

“Art. 5.º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

Art. 19 – Compete à Assembléia Legislativa, com a sanção do Governador, dispor sobre todas as matérias de competência do Estado, ressalvadas as especificadas no art. 20, e especialmente sobre:

Art. 20 – Compete exclusivamente à Assembléia Legislativa:

I - ...

II - ...

III – dispor sobre a organização de sua Secretaria, funcionamento, polícia, criação, transformação ou extinção dos cargos, empregos e funções de seus serviços e a iniciativa de lei para fixação da respectiva remuneração, observados os parâmetros estabelecidos na lei de diretrizes orçamentárias.

Art. 111 - A administração pública direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes do Estado, obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, razoabilidade, finalidade, motivação e interesse público.

Art. 115 - Para a organização da administração pública direta e indireta, inclusive as fundações instituídas ou mantidas por qualquer dos Poderes do Estado, é obrigatório o cumprimento das seguintes normas:

I - os cargos, empregos e funções públicas são acessíveis aos brasileiros que preencham os requisitos estabelecidos em lei;

II - a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia, em concurso público de provas ou de provas e títulos, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão, declarado em lei, de livre nomeação e exoneração;

Art. 144 - Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por Lei Orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.”

Como se sabe, a Constituição em vigor consagrou o Município como entidade federativa indispensável ao nosso sistema federativo, integrando-o à organização político-administrativa e garantindo-lhe plena autonomia, de conformidade com o disposto nos seus arts. 1.º, 18, 29, 30 e 34, inciso VI, alínea “c” (cf. ALEXANDRE DE MORAES, “Direito Constitucional”, 7ª. ed., São Paulo: Atlas, p. 261).

Entretanto, a autonomia consagrada aos Municípios não tem caráter absoluto e soberano, mas sim é limitada pelos “princípios emanados dos poderes públicos e dos pactos fundamentais, que instituíram a soberania de um povo” (DE PLACIDO E SILVA, “Vocabulário Jurídico”, vol. I, Rio de Janeiro: Forense, 1984, p. 251), obtendo de JOSE AFONSO DA SILVA a seguinte definição: “... é a capacidade ou poder de gerir os próprios negócios, dentro de um círculo prefixado por entidade superior”, que vem a ser a própria Constituição (“Curso de Direito Constitucional Positivo”, 8ª. ed., São Paulo: Malheiros,  p. 545).

Para o referido jurista, a autonomia municipal está assentada nas seguintes capacidades básicas: (a) auto-organização, mediante a elaboração de lei orgânica própria, (b) autogoverno, pela eletividade do Prefeito e também dos Vereadores, (c) autolegislação, mediante a edição de leis municipais sobre áreas que são reservadas à sua competência exclusiva e suplementar, e (d) auto-administração ou gestão própria, para manter e prestar os serviços locais (ob. cit., p. 546).

Logo, nessas quatro capacidades estão compreendidas a autonomia política (capacidades de auto-organização e autogoverno), a autonomia normativa (capacidade de fazer leis próprias sobre matéria de sua competência), a autonomia administrativa (administração própria e organização das atividades e serviços públicos locais) e a autonomia financeira (capacidade de decretação de seus tributos e aplicação de suas rendas, que é uma característica da auto-administração) (ob. e loc. cits.).                                              

Como consectário da autonomia administrativa de que foram dotados, os Municípios brasileiros dispõem de competência para organizar os seus próprios serviços, atendidas as conveniências locais, e, para tanto, “a Administração cria cargos e funções, institui classes e carreiras, faz provimentos e lotações, estabelece vencimentos e vantagens e delimita os deveres e direitos de seus servidores” (HELY LOPES MEIRELLES, “Direito Municipal Brasileiro”, 8ª. ed., São Paulo: Malheiros, p. 420).

Nada obstante, a autonomia consagrada aos Municípios para a organização dos seus próprios serviços não é ilimitada, encontrando-se sujeita às seguintes regras fundamentais e impostergáveis: (a) a que exige que essa organização se faça por lei; (b) a que prevê a competência exclusiva da entidade ou Poder interessado; e, finalmente, (c) a que impõe a observância das normas constitucionais federais pertinentes ao funcionalismo público (idem, ibidem).

A pretexto de agir nos estritos limites da autonomia administrativa consagrada pela vigente Constituição em favor dos Municípios, a Câmara de Vereadores de Bertioga cunhou a Lei nº 841/2008, daquele Município, que apresenta grave vício formal, decorrente da participação do Executivo no processo legislativo, a despeito de a lei em comento tratar de matéria de competência exclusiva do Legislativo, de conformidade com o disposto nos arts. 19, ‘caput’, e 20, inciso III, da Constituição do Estado de São Paulo.

Deveras, no seu art. 19, ‘caput’, a Carta Política Estadual reza que: “Compete à Assembléia Legislativa, com a sanção do Governador, dispor sobre todas as matérias de competência do Estado, ressalvadas aquelas previstas no seu art. 20 (‘... a organização de sua Secretaria, funcionamento, polícia, criação, transformação ou extinção dos cargos, empregos e funções de seus serviços e a iniciativa de lei para fixação da respectiva remuneração, observados os parâmetros estabelecidos na lei de diretrizes orçamentárias’), porquanto se referem a assuntos que são de alçada exclusiva da Assembléia Legislativa.

A participação do Executivo em etapa do processo legislativo que resultou na edição da Lei n.º 841/2008 não pode ser considerada indiferente ao ordenamento jurídico-constitucional; na prática, isto significa que a Câmara renunciou a sua prerrogativa de dispor livremente sobre matéria que é de sua exclusiva competência, num grave atentado ao princípio da independência e harmonia entre os Poderes, consagrado no art. 5.º, ‘caput’, da Constituição Paulista, lembrando sempre que, conforme advertência de HELY LOPES MEIRELLES (“Direito Municipal Brasileiro”, 9ª. ed., São Paulo: Malheiros, p. 530), a nenhum poder é dado renunciar às prerrogativas institucionais, inerentes a sua função, tampouco aquiescer com que outro poder as exerça.

Decorre, daí, que a lei impugnada é formalmente inconstitucional porque o Poder Executivo participou do processo de sua formação, apesar de se referir a matéria que é de competência exclusiva da Câmara, tendo sido elaborada, portanto, em frontal desacordo com os arts. 5.º, 19, ‘caput’, e 20, inciso III, da Carta Paulista.

De outro giro, a análise do quadro de servidores da Câmara Municipal de Bertioga revela a existência de mais cargos de confiança do que empregos efetivos, numa autêntica subversão da ordem constitucional vigente, dado que, em regra, a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos e só excepcionalmente se admite a nomeação para cargo em comissão, de livre nomeação e exoneração.

Conclui-se, daí, que está bem caracterizado o abuso na criação de cargos de provimento em comissão, pela Lei Municipal n.º 841/2008, de Bertioga, por não ser possível converter a exceção (nomeação para cargos de confiança) em regra, existindo atualmente na Câmara de Vereadores de Bertioga, conforme descrito no Anexos I da lei questionada (fls. 12), 47 (quarenta e sete) cargos de provimento efetivo contra 52 (cinqüenta e dois) cargos de provimento comissionado.

A existência de cargos de confiança em número superior ao de empregos permanentes, no quadro de servidores da Câmara Municipal de Bertioga evidencia a contrariedade da norma à Constituição, mormente no que diz respeito à proporcionalidade e à moralidade administrativa, princípios que vêm expressamente consagrados no seu art. 111.

Recentemente, ao examinar propositura semelhante, o Supremo Tribunal Federal assentou que:

“Ementa: Agravo Interno. Ação Direta de Inconstitucionalidade. Ato normativo municipal. Princípio da proporcionalidade. Ofensa. Incompatibilidade entre o número de servidores efetivos e em cargos em comissão. I - Cabe ao Poder Judiciário verificar a regularidade dos atos normativos e de administração do Poder Público em relação às causas, aos motivos e à finalidade que os ensejam. II - Pelo princípio da proporcionalidade, há que ser guardada correlação entre o número de cargos efetivos e em comissão, de maneira que exista estrutura para atuação do Poder Legislativo local. III - Agravo improvido.” (STF – 1.ª Turma, RE[AgR] 365368/SC, Rel. Min. RICARDO LEWANDOWSKI, j. em 22/05/2007).

Há também abuso facilmente perceptível na criação arbitrária dos cargos de “Assessor Parlamentar I, IV e II”, de provimento em comissão, para o exercício de funções técnicas ou profissionais, como execução de estudos legislativos (embora a Câmara possua 18 cargos de “Técnico legislativo administrativo”) e tarefas burocráticas dos gabinetes.

De igual modo, os cargos públicos de “Assessor Jurídico” e “Assessor de Imprensa”, também previstos na lei sub judice, não correspondem a atribuições de ‘direção, chefia ou assessoramento’, a despeito da terminologia empregada no texto normativo. São funções estritamente burocráticas, técnicas ou profissionais e só poderiam ser ocupados por servidores previamente aprovados em concurso público de provas ou de provas e títulos.

Por todo o exposto, evidencia-se a necessidade de reconhecimento da inconstitucionalidade da norma aqui apontada.

Assim, aguarda-se o recebimento e processamento da presente Ação Declaratória, para que ao final seja julgada procedente, reconhecendo-se a inconstitucionalidade da Lei nº 841, de 11 de dezembro de 2008, do Município de Bertioga, que “define a estrutura administrativa e o quadro funcional da Câmara Municipal de Bertioga”.

Requer-se ainda sejam requisitadas informações à Câmara Municipal e ao Prefeito Municipal, bem como posteriormente citado o Procurador-Geral do Estado para se manifestar sobre o ato normativo impugnado.

Posteriormente, aguarda-se vista para fins de manifestação final.

 

São Paulo, 17 de março de 2009.

 

                        Fernando Grella Vieira

                        Procurador-Geral de Justiça

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Protocolado nº  17.037/09 - MP

Interessado:  Dr. (...)

Assunto: Inconstitucionalidade da Lei nº 841, de 11 de dezembro de 2008, do Município de Bertioga.

 

 

 

 

1.     Distribua-se a petição inicial da ação direta de inconstitucionalidade, em face da Lei nº 841, de 11 de dezembro de 2008, do Município de Bertioga, junto ao Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

2.     Oficie-se ao interessado, informando-lhe a propositura da ação, com cópia da petição inicial.

 

 

                   São Paulo, 17 de março de 2009.

 

 

 

 

Fernando Grella Vieira

Procurador-Geral de Justiça

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