Excelentíssimo Senhor  Desembargador Presidente do Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo.

 

Ementa. 1) Art. 38, 39 e 45 e seu parágrafo 2º (cuja nova redação foi dada pela Lei Municipal n. 618, de 05 de dezembro de 2001), bem como, do Anexo II, (quanto aos cargos de provimento em comissão de Assessor Jurídico, Assistente Social, Diretor de Saúde e Assistência Social, Dentista, Engenheiro Civil, Engenheiro Agrônomo, Farmacêutico, Médico e Médico Veterinário), todos da Lei n. 509 de 11 de maio de 1995, do Município de Flora Rica 2) Possibilidade de criação de gratificações, por ato do Chefe do Executivo, dentre outros, pela prestação de serviços especiais, assiduidade, disciplina funcional e criação de cargos de provimento em comissão, com ausência dos requisitos constitucionais das características de  chefia, direção e assessoramento 3)Violação da reserva legal, da moralidade administrativa, da impessoalidade, e da razoabilidade (art.24 §2º n.1, art.111, art.128 e art.144 da Constituição do Estado) e Violação dos arts. 111, 115, II e V e 144, respectivamente, todos da Constituição do Estado de São Paulo. 4) Inconstitucionalidade constatada. 5) Ação Direta visando à declaração de inconstitucionalidade das normas legais impugnadas.

 

                                      O PROCURADOR-GERAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO, no exercício da atribuição prevista no art. 116, inciso VI, da Lei Complementar Estadual n.º 734/93 (Lei Orgânica do Ministério Público de São Paulo), e em conformidade com o disposto nos arts. 125, § 2.º, e 129, inciso IV, da Constituição Federal, e nos arts. 74, inciso VI, e 90, inciso III, da Constituição do Estado de São Paulo, com base nos elementos de informação constantes do incluso protocolado (PGJ n.º 17.937/07), vem, respeitosamente, perante esse EGRÉGIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA promover a presente AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE do  art. 38, 39 e 45 e seu parágrafo 2º (cuja nova redação foi dada pela Lei Municipal n. 618, de 05 de dezembro de 2001), bem como, do Anexo II, (quanto aos cargos de provimento em comissão de Assessor Jurídico, Assistente Social, Diretor de Saúde e Assistência Social, Dentista, Engenheiro Civil, Engenheiro Agrônomo, Farmacêutico, Médico e Médico Veterinário), todos da Lei n. 509 de 11 de maio de 1995, do Município de Flora Rica, bem assim de todos os anteriores atos normativos que contenham previsão  dos cargos ora impugnados, sempre de provimento em comissão  (para se evitar o efeito repristinatório), pelas razões e fundamentos a seguir expostos:

 

                                        Os dispositivos  impugnados da Lei Municipal n. 509, de 11 de maio de 1995, que “Dispõe sobre a reorganização Administrativa da Prefeitura Municipal de Flora Rica: Estrutura, Quadro de Pessoal, Plano de Cargos, Salários e dá outras providências”, cuja nova redação foi dada pela Lei n. 618, de 05 de dezembro de 2001,  apresentam a seguinte redação:

 

                                        “Art. 38 – As instituições de graus a título de promoção tem a finalidade de premiar pela gratificação por exercer outro cargo, gratificação pela prestação de serviços extraordinários, assiduidade, cargo de chefia, a disciplina funcional e a antiguidade no serviço municipal.

 

                                      Art. 39- Na composição dos graus, o servidor terá um acréscimo sobre a referência A a J de 05% (cinco por cento) e K a Z um acréscimo de 10% (dez por cento) cada quatro anos,  a partir do 5º  ano de sua admissão até atingir o grau máximo”

 

                                      Art. 45- O Chefe do Executivo Municipal concederá gratificação ou abono salarial por merecimento a todo servidor Público Municipal que desempenharem atividades que extrapolem as de seu cargo ou função, até o limite de 100% (cem por cento) do vencimento”.  

               

                                    (...)

 

                                      Parágrafo 2º - As gratificações estabelecidas neste e no artigo anterior serão incorporados através de Portaria do executivo, incluindo-se no salário base do Servidor público Municipal”.

 

                                      O Anexo II, da Lei Municipal n. 509 de 11 de maio de 1995, do Município de Flora Rica, por seu turno, apresenta dentre outros, os seguintes cargos de provimento em comissão:

 

 

                                      02  - Assessor Jurídico

                                      01-   Assistente Social

                                      01- Diretor de Saúde e Assistência Social

                                      05- Dentista

                                      01- Engenheiro Civil

                                      01- Engenheiro Agrônomo

                                      01- Farmacêutico

                                      07 – Médicos

                                      01- Médico Veterinário

 

                                      Tratam-se de dispositivos  verticalmente incompatíveis com a Constituição do Estado de São Paulo, como adiante se demonstrará.

 

                                      Os arts. 38 e 39 e o caput do art. 45, da Lei Municipal n. 509, de 11 de maio de 1995, do Município de Flora Rica, ao permitir que o Chefe do Poder Executivo Municipal atribua gratificações de  05% (cinco por cento) até 10% (dez por cento), sob o salário base do servidor municipal, em razão,  dentre outros, de assiduidade, disciplina funcional e antiguidade, bem como, a gratificação ou abono salarial, por merecimento até o limite de 100% (cem por cento) do vencimento, a todo servidor público municipal que desempenhar atividades que extrapolem as de seu cargo ou função, violam o princípio da reserva legal em matéria de fixação de remuneração e vantagens para servidores públicos, previsto no artigo 111 e no artigo 24, § 2º, nº 1, ambos da Constituição do Estado, aplicáveis aos Municípios por força do artigo 144 da Constituição Paulista.

 

                                      A idéia de legalidade nos atos da Administração, contemplada nos dispositivos acima referidos, da Constituição do Estado, tem lastro também no artigo 37 caput, e no respectivo inciso X da CF/88 (redação da EC 19/98), pelo qual a remuneração dos servidores públicos e o subsídio de que trata o § 4º do artigo 39 somente poderão ser fixados ou alterados por lei específica, observada a iniciativa privativa em cada caso, assegurada a revisão geral anual, sempre na mesma data e sem distinção de índices.

 

                                      A propósito da reserva de lei em matéria de remuneração de servidores públicos já se pronunciou o Pretório Excelso:

                                    Em tema de remuneração dos servidores públicos, estabelece a Constituição o princípio da reserva de lei. É dizer, em tema de remuneração dos servidores públicos, nada será feito senão mediante lei, lei específica. CF, art. 37, X, art. 51, IV, art. 52, XIII. Inconstitucionalidade formal do Ato Conjunto n. 01, de 5-11-2004, das Mesas do Senado Federal e da Câmara dos Deputados. Cautelar deferida (ADIn 3.369-MC, Rel. Min. Carlos Velloso, j. em 16-12-04, DJ de 1º-2-05).

 

                                      Este também é o entendimento da doutrina, anotando Hely Lopes Meirelles que “(...) os vencimentos –padrão e vantagens– só por lei específica (reserva legal específica) podem ser fixados ou alterados (art. 37, X), segundo as conveniências e possibilidades da Administração” (Direito administrativo brasileiro, São Paulo, Malheiros, 2007, p. 483). No mesmo sentido são as ponderações de Celso Antônio Bandeira de Mello, em Curso de direito administrativo, São Paulo, Malheiros, 2000, p. 239.

 

                                      Assim, ao permitir que a fixação de vantagens decorra não de lei, mas de ato administrativo do próprio Poder Executivo, o Legislador Municipal delegou função indelegável –de legislar–, violando o princípio da reserva legal que vigora nessa matéria.

 

                                      Os arts. 38, 39 e o 45 caput, da Lei Municipal n. 509, de 11 de maio de 1995, também violam o princípio da moralidade administrativa, previsto no artigo 111 da Constituição do Estado, aplicável aos Municípios por força do artigo 144 da Carta Paulista.

 

                                      Em oportuna síntese, anota Maria Sylvia Zanella Di Pietro que “sempre que em matéria administrativa se verificar que o comportamento da Administração ou do administrado que com ela se relaciona juridicamente, embora em consonância com a lei, ofende a moral, os bons costumes, as regras de boa administração, os princípios de justiça e de equidade, a idéia comum de honestidade, estará havendo ofensa ao princípio da moralidade administrativa” (Direito Administrativo,  São Paulo, Atlas, 2006, p. 94).

 

                                      Não há dúvida de que, na hipótese, houve ofensa à moralidade administrativa. O legislador municipal optou por consagrar a liberdade mais ampla possível para que o Chefe do Executivo, por simples ato administrativo, possa determinar a fixação de gratificação de 5% (cinco por cento) até 10%  (dez por cento), sob o salário base do servidor municipal,  “ dentre outros em razão de  assiduidade, disciplina funcional e antiguidade e , ainda, a gratificação ou abono salarial por merecimento até o limite de 100% (cem por cento) do vencimento, a todo servidor público municipal que desempenharem atividades que extrapolem as de seu cargo ou função”.

 

                                      Tamanha liberdade de ação administrativa não é discricionariedade, mas arbítrio. Contraria a necessidade de respeito a valores imanentes à gestão de verbas públicas e abre ensejo para favorecimentos que não se coadunam com a administração de recursos que, em última análise pertencem à própria sociedade local.

 

                                      A solução fere uma concepção mais ampla de justiça e eqüidade, e por isso ofende a moralidade administrativa. Aliás, o deixar a Lei a critério do Prefeito Municipal a avaliação da assiduidade,  disciplina funcional, antiguidade e merecimento não estabelece qualquer critério objetivo para que as aludidas gratificações sejam concedidas.

 

                                     No caso em exame, verifica-se ainda a violação ao princípio da impessoalidade. O absoluto subjetivismo na concessão dos benefícios previstos nos mencionados dispositivos legais impugnados demonstram que essa faculdade do administrador se presta a servir como instrumento para a instituição de benefícios indevidos em favor daqueles que ostentem relações pessoais com o gestor público que momentaneamente esteja no posto de determinados cargos.

 

                                      A ausência de critérios objetivos para a fixação do benefício, igualmente, indica claramente a quebra do princípio da impessoalidade, que deve imperar no âmbito da Administração Pública.         

 

                            Foi violado também o princípio da razoabilidade, que encontra assento no artigo 111 e no artigo 128 da Constituição do Estado de São Paulo.

 

                            Note-se que o artigo 128 da Carta Paulista determina expressamente que as vantagens de qualquer natureza só poderão ser instituídas por lei e quando atendam efetivamente ao interesse público e às exigências do serviço.

 

                            O art. 38, 39 e o caput do art. 45, da Lei n. 509, de 11 de maio de 1995, criam a possibilidade de fixação de gratificações especiais, para hipóteses absolutamente indefinidas.  Releva, a propósito, a lacônica menção à “ dentre outros a assiduidade, disciplina funcional, antiguidade, merecimento”.

 

                            Essa abertura de possibilidades sem qualquer indicação hipotética de real necessidade demonstra que a solução prevista na lei fere o princípio da razoabilidade, ao criar um ônus desnecessário, inapropriado, e descabido para a Administração Pública. Nem se pode afirmar que a fixação de gratificações, nestes termos, por atos administrativos, atenderá à necessidade de respeito ao interesse público e às exigências do serviço.

 

                                      Como anota Diogo de Figueiredo Moreira Neto, o princípio da razoabilidade “visa a afastar o arbítrio que decorrerá da desadequação entre meios e fins”, tendo importância tanto quando da criação da norma como quando de sua aplicação. Ademais, prossegue o autor, “o princípio da proporcionalidade, uma vez admitido como um princípio substantivo autônomo, como é considerado na doutrina alemã do Direito Público, e não apenas com o sentido estrito contido no conceito de razoabilidade, prescreve, especificamente, o justo equilíbrio entre os sacrifícios e os benefícios resultantes da ação do Estado” (Curso de direito administrativo, Rio de Janeiro, Forense, 2006, p. 101). Também neste sentido, Maria Sylvia Zanella Di Pietro (op. cit., p. 95).

 

                                      Ainda em sede doutrinária, Gilmar Ferreira Mendes, examinando a aplicação do princípio da proporcionalidade pelo Pretório Excelso, anotou “de maneira inequívoca a possibilidade de se declarar a inconstitucionalidade da lei em caso de sua dispensabilidade (inexigibilidade), inadequação (falta de utilidade para o fim perseguido) ou de ausência de razoabilidade em sentido estrito (desproporção entre o objetivo perseguido e o ônus imposto ao atingido)” (“A proporcionalidade na jurisprudência do STF”, em Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade, São Paulo, Instituto Brasileiro de Direito Constitucional e Celso Bastos Editor, 1998, p. 83).

 

                                      Era mesmo perfeitamente dispensável a previsão legal impugnada, pois a instituição de vantagens pessoais para servidores estava a exigir a edição de lei, strictu senso. De resto, não bastasse a inadequada previsão normativa, vê-se a imposição de ônus desproporcional entre o interesse público e o objetivo perseguido: dar ao Chefe do Executivo ampla liberdade para beneficiar servidores de sua livre escolha com gratificação –estarrecedora– pelo simples cumprimento do dever.

 

                                      Daí a violação aos artigos 111 e 128 da Constituição do Estado de São Paulo.

 

                                     O parágrafo segundo do art. 45, da Lei Municipal n. 509, de 11 de maio de 1995, por ser turno dispõe expressamente “ que as gratificações estabelecidas neste artigo e no anterior serão incorporadas através de Portaria do Executivo, incluindo-se no salário base do Servidor Público Municipal”.

 

                                      Assim sendo, referido dispositivo legal permite a incorporação de tais gratificações ao salário base do servidor público municipal para todos os efeitos e vantagens.

 

                                      Como se por observar, o parágrafo segundo do art. 45, da referida lei municipal cria benefício remuneratório incompatível com o interesse público e com o princípio da moralidade, violando os artigos 111 e  115, XVI e 128, da Constituição do Estado de São Paulo. De fato, assim dispõem  as referidas normas constitucionais:

 

                                       'Art. 111 - A administração pública direta, indireta ou funcional, de qualquer dos Poderes do Estado, obedecerá os princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, razoabilidade, finalidade, motivação,  interesse público e eficiência.

 

                                      Art. 115 - Para a organização da administração pública direta e indireta, inclusive as fundações instituídas ou mantidas por qualquer dos Poderes do Estado, é obrigatório o cumprimento das seguintes normas:  (...)

 

 

                                      XVI - os acréscimos pecuniários percebidos por servidor público não serão computados nem acumulados para fins de concessão de acréscimos  ulteriores sob o mesmo título ou idêntico fundamento (...)

 

                                      Art. 128 - As vantagens de  qualquer natureza só poderão ser instituídas por lei e quando atendam efetivamente ao interesse público e às exigências do serviço.”

                                                                 

 

                                      A Constituição Paulista, em norma que repete o disposto no artigo 37,  da Constituição Federal,  proíbe que se outorgue benefícios aos servidores desvinculados do interesse público. Ora, a incorporação de gratificações para todos os efeitos e vantagens malfere a moralidade, bem assim a razoabilidade.

 

                                      Da cláusula do Estado Democrático de Direito, do alargamento do conceito de legalidade com a inserção dos princípios gerais constitucionais decorre o eficaz controle dos atos estatais, leis  e atos administrativos. A razoabilidade vem sendo utilizada pelo STF para o controle de constitucionalidade  de  leis[1].

                                      E a previsão de que, com apenas 12 meses de exercício de funções gratificadas possa o servidor  incorporar globalmente o  acréscimo  pecuniário  viola a moralidade.

 

                                      A própria Constituição do Estado tem parâmetro   -- independentemente de sua eventual irregularidade formal --   razoável,  no seu artigo 133, que prevê:

        

                                      “Art. 133 - O servidor, com mais de cinco anos de efetivo exercício, que tenha exercido ou venha a exercer,  cargo ou função que lhe proporcione remuneração superior à do  cargo de que seja titular, ou função para a qual foi admitido, incorporará  um  décimo dessa diferença, por ano, até o limite de dez décimos.”

 

                                      Ora, como diz a doutrina (DIÓGENES GASPARINI,  Direito Administrativo, p. 211, Saraiva, 8.ª ed.):

 

 

                                     “As vantagens pecuniárias, sejam adicionais, sejam gratificações, não são meios para majorar a remuneração dos servidores, nem são meras liberalidades da Administração Pública. São acréscimos remuneratórios que se justificam nos fatos e situações de interesse da Administração Pública e  do  servidor. Assim, não é sem motivo que a Lei Orgânica do Município de São Paulo estabelece, no seu art. 94, que as vantagens de qualquer natureza somente poderão ser instituídas por  lei  e  quando atendam efetivamente ao interesse e às exigências do serviço público. De igual modo prescreve o art. 128 da Constituição de São Paulo. Fora disso, afirma Hely  Lopes Meirelles (Direito administrativo, cit. p. 406), ” são vantagens anômalas, que não se enquadram quer como adicionais, quer como gratificações, pois não têm a natureza administrativa de nenhum  desses  acréscimos estipendiários,  apresentando-se como liberalidades ilegítimas que o legislador faz à custa dos cofres públicos,   com o único propósito de cortejar o servidor público.”

 

                                      Finalmente, no que diz respeito aos cargos de provimento em comissão de Assessor Jurídico, Assistente Social, Diretor de Saúde e Assistência Social, Dentista, Engenheiro Civil, Engenheiro Agrônomo, Farmacêutico, Médico e Médico Veterinário de constantes do Anexo II, da Lei Municipal n. 509, de 11 de maio de 1995,    houve       afronta      aos   artigos   111 ,  115, II, e V, 144 da Constituição do Estado   de        São Paulo. De  fato, assim dispõem  as referidas normas constitucionais:

 

                                      'Art. 111 - A administração pública direta, indireta ou funcional, de qualquer dos Poderes do Estado, obedecerá os princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, razoabilidade, finalidade, motivação,  interesse público e eficiência.

 

                                      Art. 115 - Para a organização da administração pública direta e indireta, inclusive as fundações instituídas ou mantidas por qualquer dos Poderes do Estado, é obrigatório o cumprimento das seguintes normas:

 

                                      II - a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia, em concurso público de provas ou de provas e títulos,    ressalvadas as nomeações para cargo em comissão, declarado em lei, de livre nomeação e exoneração (...)

 

                                      V – As funções de confiança, exercidas exclusivamente por servidores  ocupantes de cargo efetivo, e os cargos em comissão,  a serem preenchidos       por        servidores de carreira nos casos, condições e percentuais mínimos  previstos em lei, destinam-se apenas às atribuições de direção, chefia e assessoramento (....)

 

                                     Art. 144 – Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por Lei Orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.’

 

                                      Embora o Município seja dotado de autonomia política e administrativa, dentro do sistema federativo (cf. art.1º e art.18 da Constituição Federal), esta autonomia não tem caráter absoluto, pois se limita ao âmbito pré-fixado pela Constituição Federal (cf. José Afonso da Silva, Direito constitucional positivo, 13ª ed., São Paulo, Malheiros, 1997, p.459).

 

                                      A autonomia municipal deve ser exercida com a observância dos princípios contidos na Constituição Federal e na Constituição Estadual (cf. Luiz Alberto David Araújo e Vidal Serrano Nunes Júnior, Curso de direito constitucional, 9ªed., São Paulo, Saraiva, 2005, p.285).

 

                                      A autonomia municipal envolve quatro capacidades básicas: (a) capacidade de auto-organização (elaboração de lei orgânica própria); (b) capacidade de autogoverno (eletividade do Prefeito e dos Vereadores às respectivas Câmaras Municipais); (c) capacidade normativa própria (autolegislação, mediante competência para elaboração de leis municipais); (d) capacidade de auto-administração (administração própria para manter e prestar serviços de interesse local) (Cf. José Afonso da Silva, ob. cit., p.591).

 

                                      Nas quatro capacidades acima estão configuradas: (a) a autonomia política (capacidades de auto-organização e de autogoverno); (b) autonomia normativa (capacidade de fazer leis próprias sobre matéria de suas competências); (c) autonomia administrativa (administração própria   e     organização   dos   serviços locais); (d) autonomia financeira (capacidade de decretação de seus tributos e aplicação de suas rendas), como se colhe, ainda uma vez, nos ensinamentos de José Afonso da Silva (ob. cit., p.591).

                                   Para que possa exercer sua autonomia administrativa, o Município deve criar cargos, empregos e funções, mediante atos normativos, instituindo carreiras, vencimentos, entre outras questões, estruturando-se adequadamente.

 

                                      Todavia, a possibilidade de que o Município organize seus próprios serviços encontra balizamento na própria ordem constitucional, sendo necessário que o faça através de lei, respeitando normas constitucionais federais e estaduais relativas ao regime jurídico do serviço público.

 

                                      A regra, na Administração Pública, deve ser o preenchimento dos cargos através de concurso público de provas ou de provas e títulos, pois assim se garante a acessibilidade geral (prevista inclusive no art. 37 inciso I da Constituição   Federal;       bem      como     no art.115 inciso I da Constituição do Estado de São Paulo). Essa deve ser a forma de preenchimento dos cargos de natureza técnica ou burocrática.

 

                                       A criação de cargos de provimento em comissão, de livre nomeação e exoneração, deve ser limitada aos casos em que seja exigível especial relação de confiança entre o governante e o servidor, para que adequadamente sejam desempenhadas funções inerentes à atividade administrativa e política.

 

                                       Há implícitos limites à criação, por lei, de cargos de provimento em comissão. Assim não fosse, estaria na prática aniquilada a exigência constitucional de concurso para acesso aos cargos públicos.

 

                                       A propósito, anota Hely Lopes Meirelles, amparado em precedente do Pretório Excelso, que “a criação de cargo em comissão, em moldes artificiais e não condizentes com as praxes do nosso ordenamento jurídico e administrativo, só pode ser encarada como inaceitável esvaziamento da exigência constitucional do concurso (STF, Pleno, Repr.1.282-4-SP)” (Direito administrativo brasileiro, 33ªed., São Paulo, Malheiros, 2007, p.440).

 

                                      Podem ser de livre nomeação e exoneração apenas aqueles cargos que, pela própria natureza das atividades desempenhadas, exijam excepcional relação de confiança e lealdade, isto é, verdadeiro comprometimento político e fidelidade com relação às diretrizes estabelecidas pelos agentes políticos, que vão bem além do dever comum de lealdade às instituições públicas, necessárias a todo e qualquer servidor comum.

 

                                      É esse o fundamento da argumentação no sentido de que “os cargos em comissão são próprios para a direção, comando ou chefia de certos órgãos, onde se necessita de um agente que sobre ser de confiança da autoridade nomeante se disponha a seguir sua orientação, ajudando-a a promover a direção superior da Administração. Por essas razões percebe-se quão necessária é essa fragilidade do liame. A autoridade nomeante não pode se desfazer desse poder de dispor dos titulares de tais cargos, sob pena de não poder contornar dificuldades que surgem quando o nomeado deixa de gozar de sua confiança” (cf. Diógenes Gasparini, Direito administrativo, 3ªed., São Paulo, Saraiva, 1993, p.208).

 

                                      Daí a afirmação de que “é inconstitucional a lei que criar cargo em comissão para o exercício de funções técnicas, burocráticas ou operacionais, de natureza puramente profissional, fora dos níveis de direção, chefia e assessoramento superior (cf. Adilson de Abreu Dallari, Regime constitucional dos servidores públicos, 2ª ed., 2ª tir., São Paulo, RT, 1992, p.41, g.n.).

 

                                      É a natureza do cargo e das funções a ele cometidas pela lei que estabelece o imprescindível “vínculo de confiança” (cf. Alexandre de Moraes, Direito constitucional administrativo, São Paulo, Atlas, 2002, p. 158), que justifica a dispensa do concurso. Daí o entendimento de que tais cargos devam ser destinados “apenas às atribuições de direção, chefia e assessoramento” (cf. Odete Medauar, Direito administrativo moderno, 5ªed., São Paulo, RT, p.317).

 

                                      Essa também é a posição do Pretório Excelso, como se infere no precedente cuja ementa é a seguir transcrita:

 

                                     E M E N T A: Concurso público: plausibilidade da alegação de ofensa da exigência constitucional por lei que define cargos de Oficial de Justiça como de provimento em comissão e permite a substituição do titular mediante livre designação de servidor ou credenciamento de particulares: suspensão cautelar deferida. 1. A exigência constitucional do concurso público não pode ser contornada pela criação arbitrária de cargos em comissão para o exercício   de  funções que não pressuponham o vínculo de confiança que explica o regime de livre nomeação e exoneração que os caracteriza; precedentes. 2. Também não e de admitir-se que, a título de preenchimento provisório de vaga ou substituição do titular do cargo - que deve ser de provimento efetivo, mediante concurso público -, se proceda, por tempo indeterminado, a livre designação de servidores ou ao credenciamento de estranhos ao serviço público. (ADI-MC 1141/GO, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, J. 10/10/1994, Pleno, DJ 04-11-1994, PP-29829, EMENT  VOL-01765-01 PP-00169, g.n.)”.

 

                                      Escrevendo na vigência da ordem constitucional anterior, mas em lição plenamente aplicável ao caso em exame, anotava Márcio Cammarosano a existência de limites à criação de cargos em comissão pelo legislador. A Constituição objetiva, com a permissão para criação de tais cargos, “propiciar ao Chefe de Governo o seu real controle mediante o concurso, para o exercício de certas funções, de pessoas de sua absoluta confiança, afinadas com as diretrizes políticas que devem pautar a atividade governamental. Não é, portanto, qualquer plexo unitário de competências que reclama seja confiado o seu exercício a esta ou aquela pessoa, a dedo escolhida, merecedora da absoluta confiança da autoridade superior, mas apenas aquelas que, dada a natureza das atribuições a serem exercidas pelos seus titulares, justificam exigir-se deles não apenas o dever elementar de lealdade às instituições constitucionais e administrativas a que servirem, comum a todos os funcionários, como também um comprometimento político, uma fidelidade às diretrizes estabelecidas pelos agentes políticos, uma lealdade pessoal à autoridade superior(...). Admite-se que a lei declare de livre provimento e exoneração cargos de diretoria, de chefia, de assessoria superior, mas não há razão lógica que justifique serem declarados de livre provimento e exoneração cargos como os de auxiliar administrativo, fiscal de obras, enfermeiro, médico, desenhista, engenheiro, procurador, e outros mais, de cujos titulares nada mais se pode exigir senão o escorreito exercício de suas atribuições, em caráter estritamente profissional, técnico, livres de quaisquer preocupações e considerações de outra natureza” (Provimento de cargos públicos no direito brasileiro, São Paulo, RT, 1984, p.95/96).

 

                                      Veja-se, a propósito, que os cargos citados são criados em profusão, com desvio de finalidade, já que as funções a serem desempenhadas são técnicas, burocráticas ou operacionais,   não exigindo dos agentes que as  vocacionem qualquer vínculo de  confiança  com os administradores.

 

                                    Observe-se que,  a própria denominação dos cargos ora glosados, já indica que se destinam ao desempenho de atividades meramente burocráticas ou técnicas, de caráter subalterno na estrutura da Administração Municipal.

 

                                      Além disso, é nitidamente perceptível que se trata de hipótese em que, de forma casuísta e pormenorizada, foram criados cargos em comissão em profusão.

 

                                      Admitir como válida, do ponto de vista constitucional, a criação de cargos em comissão para “chefia administrativa” e outros (assistentes, assessores, encarregados, etc.), para setores criados em profusão, com casuísmo e de forma aleatória no quadro organizacional do Município, é dar aos dispositivos constitucionais que envolvem a regra do concurso, e à sua exceção, interpretação equivocada, meramente literal.

 

                                      Cumpre recordar que as exceções devem ser interpretadas restritivamente (Carlos Maximiliano, Aplicação do direito, 18ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 1999, p.225).

 

                                      Note-se que os cargos em comissão criados pelo Anexo II da lei aqui impugnada revelam postos na administração, como visto, de caráter subalterno, em que predominará sempre o conhecimento e aptidão técnica do servidor. Não se vislumbra, em tais casos, qualquer exigência de especial relação de confiança entre o seu ocupante e o Chefe do Executivo.

 

                                      Justifica-se, deste modo, a afirmação de que tais cargos não são de natureza tal que se justifique, sob o perfil dos limites constitucionais existentes na matéria em exame, o provimento em comissão.

 

                                      É necessário ressaltar que a posição aqui sustentada encontra esteio em julgados desse E. Tribunal de Justiça.

 

 

                                      No julgamento da ADI 111.387-0/0-00, em 11.05.2005, o relator, Sr. Desembargador Munhoz Soares, destacou que:

 

                                     “Os cargos criados, contudo, pela legislação sub judice, têm natureza técnica ou prática, ou seja, de seus titulares, nada mais se lhes podendo exigir senão o escorreito exercício de suas atribuições, em caráter estritamente profissional, técnico, diferenciando-se, por conseguinte, daqueles que admitem provimento em comissão, limitados a situações excepcionais, de natureza especial, justificantes da dispensa concursal pública. Aqueles cargos, especificamente impugnados, exigem que seus titulares exerçam suas funções profissionais em caráter permanente, ou seja, pelo quadro estável de servidores públicos, que, pelos textos constitucionais, só podem ser providos por concurso. Não há, assim, razão lógica justificante para que sejam declarados de livre provimento e exoneração”.

 

                                 Também quando do julgamento da ADI 112.403-0/1-00, em 12 de janeiro de 2005, o relator, Sr. Desembargador Barbosa Pereira destacou, em seu voto, que:

 

                                “As leis municipais ora questionadas, ao criarem cargos de provimento em comissão, sem a presença de características excepcionais hábeis a qualificá-los como sendo daqueles que exigem de seus ocupantes o requisito da confiabilidade afrontam princípios constitucionais”.

 

                                      A dispensa de concurso não pode ficar apenas condicionada ao aspecto formal, de simples indicação em lei, eis que isso importaria em deixar ao legislador ordinário um poder discricionário  absoluto, inclusive o de afastar a exigência do concurso para todos os cargos do serviço público, bastando, para tanto, declará-los “em comissão” e de “livre nomeação”. Restaria, assim, neutralizada toda a eficácia do princípio constitucional que impõe a aprovação prévia em concurso público para a investidura em cargo ou emprego público. Assim, para que a lei criadora de um cargo em comissão não venha a se constituir em burla ao princípio constitucional arrolado, enunciado expressamente nos incisos I,  II e V,  do artigo 115 da Constituição Paulista, deverá observar criteriosamente a natureza das funções a serem desempenhadas.

 

 

                                     

 

 

                                    Por todo o exposto, evidencia-se a necessidade de reconhecimento da inconstitucionalidade dos dispositivos legais antes indicados.

 

                                      Assim, aguarda-se o recebimento e processamento da presente ação declaratória, para que seja ao final julgada procedente, reconhecendo-se a inconstitucionalidade do  art. 38, 39 e 45 e seu parágrafo 2º (cuja nova redação foi dada pela Lei Municipal n. 618, de 05 de dezembro de 2001), bem como, do Anexo II, (quanto aos cargos de provimento em comissão de Assessor Jurídico, Assistente Social, Diretor de Saúde e Assistência Social, Dentista, Engenheiro Civil, Engenheiro Agrônomo, Farmacêutico, Médico e Médico Veterinário), todos da Lei n. 509 de 11 de maio de 1995, do Município de Flora Rica, bem assim de todos os anteriores atos normativos que contenham previsão  dos cargos ora impugnados, sempre de provimento em comissão  (para se evitar o efeito repristinatório).

 

                                      Requer-se ainda sejam requisitadas informações        ao Prefeito Municipal e à Câmara Municipal de Flora

 

Rica, bem como posteriormente citado o Procurador-Geral do Estado para manifestar-se sobre os atos normativos impugnados.

 

                                      Posteriormente, aguarda-se vista para fins de manifestação final.

 

 

                            São Paulo, 16 de dezembro de 2008.

 

 

FERNANDO GRELLA VIEIRA

PROCURADOR-GERAL DE JUSTIÇA

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Protocolado PGJ nº 17.937/07

Interessado: Promotoria de Justiça de Pacaembu

 

 

 

 

 

                                                1.Distribua-se a petição inicial da ação direta de inconstitucionalidade, em face dos arts. 38, 39 e 45 e seu parágrafo 2º (cuja nova redação foi dada pela Lei Municipal n. 618, de 05 de dezembro de 2001), bem como, do Anexo II, todos da Lei n. 509, de 11 de maio de 1995, do Município de Flora Rica, junto ao Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

                                                 2.Oficie-se ao interessado, informando-lhe a propositura da ação, com cópia da petição inicial.

 

 

                São Paulo, 17 de dezembro de 2008

 

 

FERNANDO GRELLA VIEIRA

Procurador-Geral de Justiça

 

 

 



[1] Informativo STF - Brasília, 14 a 18 de outubro de 1996 – n.º 49. Inscrição em Concurso: Limite de Idade. A estipulação de limite de idade para a inscrição em concurso público só se legitima em face do art. 7º, XXX, da CF - "proibição de diferença de salários, de exercício de funções e de critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil" (aplicável aos servidores públicos por força do disposto no art. 39, § 2º, da CF) - quando tal limite possa ser justificado pela natureza das atribuições do cargo a ser preenchido. Na falta de justificação razoável, a lei, ou o edital, que adote esse critério para restringir o universo de concorrentes será inconstitucional.

Inscrição em Concurso: Limite de Idade. Com base nesse entendimento, a Turma teve por desarrazoado - e portanto inconstitucional - o limite de idade estabelecido para a inscrição em concursos para provimento de cargos de professor, no Estado do Rio Grande do Sul, e de auditor do tesouro nacional, na Bahia. Considerou-se, no primeiro caso, que o limite de idade não seria justificável pela natureza das atribuições do cargo de professor; e, no segundo, que, se a carreira de auditor fiscal do tesouro nacional, pela natureza das atribuições dos cargos que a compõem, não pudesse ser integrada, desde seus níveis iniciais, por pessoas com idade superior a 35 anos, não teriam sido dispensados da observância desse requisito, estabelecido genericamente pelo edital, os candidatos ocupantes de cargo ou emprego na Administração direta e autarquias federais. Precedentes citados: RMS 21033-DF (RTJ 135/958) e RMS 21046-RJ (RTJ 135/528).RE 176.369-RS e RE 185.300-BA, Rel. Min. Moreira Alves, j. 15.outubro.1996.

ADin n.º 2.019-6 – Mato Grosso do Sul. Rel. Min. Ilmar Galvão. Ato normativo que, ao erigir em pressuposto de benefício assistencial não o estado de necessidade dos beneficiários, mas sim circunstâncias concretas em que eles foram gerados, contraria o princípio da razoabilidade, consagrado no mencionado dispositivo constitucional (art. 5.º LIV). J. 2.8.01 Tratava-se de lei estadual que instituiu programa de concessão de um salário mínimo mensal para crianças geradas a partir de estupro.