EXCELENTÍSSIMO SENHOR DESEMBARGADOR PRESIDENTE DO E. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

 

Protocolado 17.981/07

Assunto: Inconstitucionalidade da Lei 2.786, de 25 de agosto de 2005, do Município de São José do Rio Pardo.

 

Ementa:  Lei municipal que, precedendo à elaboração do Plano Diretor, altera perímetro urbano. Ausência de planejamento e participação comunitária. Ofensa ao artigo 182, § 1º, da Constituição da República e aos artigos 180, inc. II e 181, § 1º, da Constituição do Estado de São Paulo.

           

 

 

O Procurador-Geral de Justiça do Estado de São Paulo, no exercício da atribuição prevista no art. 116, inciso VI da Lei Complementar Estadual 734, de 26 de novembro de 1993 (Lei Orgânica do Ministério Público de São Paulo), em conformidade com o disposto no art.125, § 2º e art. 129, inciso IV da Constituição Federal, e ainda art. 74, inciso VI e art. 90, inciso III da Constituição do Estado de São Paulo, com amparo nas informações colhidas no incluso protocolado, vem, respeitosamente, perante esse Egrégio Tribunal de Justiça, promover a presente AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE da Lei Municipal 2.786, de 25 de agosto de 2005, que altera o perímetro urbano do Município de São José do Rio Pardo, pelos fundamentos a seguir expostos.

1. DO ATO NORMATIVO IMPUGNADO.

O 2º Promotor de Justiça de São José do Rio Pardo, na defesa do Meio Ambiente, trouxe ao conhecimento da Procuradoria-Geral de Justiça que foi promulgada a Lei Municipal 2.786, de 25 de agosto de 2005, que alterou o perímetro urbano do Município de São José do Rio Pardo (fls. 17/23).

Sua Excelência divisou inconstitucionalidade dessa norma, anotando que o novo traçado urbano inclui o “Sítio Macaúbas” (imóvel registrado sob 3.718, do RI local), que se localizaria “fora do contexto urbano do Município” (fls. 2). Afirmou que a promulgação da lei não foi precedida de audiências públicas e que, à época, o Ministério Público movia ação judicial para a constituição da reserva legal na referida propriedade.

A representação foi instruída com peças trasladadas dos autos do processo 575.01.2003.003021-7 (contr. 844/2003), da 1ª. Vara Judicial de São José do Rio Pardo (fls. 4/42).

Em diligência própria desse procedimento, foram colhidas informações do Prefeito Municipal (fls. 53/60) e do Presidente da Câmara Municipal (fls. 48/52) sobre o processo legislativo e a constitucionalidade da norma questionada.

O Prefeito Municipal esclareceu, inicialmente, que o projeto que precedeu a lei em análise originou-se no Executivo e foi apreciado pela Câmara de acordo com suas regras regimentais. Afirmou a constitucionalidade da lei sob o argumento de que a alteração do perímetro urbano do Município é assunto de interesse estritamente local (fls. 53).

A Casa de Leis sustentou que a norma é constitucional e que seu projeto atendeu ao disposto no artigo 30, inciso I, da Constituição Federal, pois a regulamentação do perímetro urbano é assunto de interesse local. Noticiou, em acréscimo, que, após a promulgação da lei, a Câmara rejeitou projeto de “Plano Diretor” (fls. 48/50).

Restava saber, então, se, a alteração do zoneamento urbano foi precedida de planejamento e de participação comunitária, para o atendimento das exigências constantes dos artigos 180 e 181 da Constituição Paulista.

O Prefeito foi outra vez consultado e alegou o seguinte:

Conforme se verifica pelas cópias em anexo, o Projeto de Lei nº 30, de 28 de julho de 2005, foi regularmente apreciado pela E. Câmara Municipal, oportunidade em que foi devidamente discutido pelos ilustres membros do Legislativo Municipal, tendo sido aprovado por unanimidade.

Entendemos que o Legislativo Municipal tem legitimidade constitucional para apreciação de projetos de lei dessa natureza sem a necessidade de realização de audiência pública preliminar. Por sua vez, os senhores Vereadores também têm legitimidade para representar a população para a análise da conveniência e oportunidade de aprovação de um projeto de lei. Mais: a necessidade de eventuais discussões antecedentes não foi aventada pela Câmara Municipal, que, como dito, aprovou o projeto por unanimidade, após parecer favorável de sua Comissão de Justiça e Redação. Por isso entendemos que o pressuposto da participação comunitária consistiu na própria apreciação do projeto no Legislativo Municipal, o que ocorreu conforme o previsto na legislação de regência à espécie (fls. 70).

Da análise de todo o processado e, em particular, das informações prestadas pelo Alcaide, se concluiu que a Lei em análise ofende frontalmente o artigo 180, inciso II, e o artigo 181, § 1º, da Constituição do Estado de São Paulo.

É o que será demonstrado a seguir.

 

2. FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA

A definição do perímetro urbano deve ser feita por lei municipal, tanto para fins urbanísticos, como para efeitos tributários.

É que a Constituição da República concedeu ao Município competência legislativa especial relacionada à política de desenvolvimento urbano (art. 30, I e 182, § 1º), cabendo-lhe promover o adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano.

Hely Lopes Meirelles chega a dizer que, para os fins urbanísticos, “a competência é privativa e irretirável do Município : lei urbanística deve estabelecer os requisitos da urbanização e lei específica, como esta de que tratam os autos, delimitará a zona urbana.

Tratando-se de lei que altera o zoneamento, três parâmetros (artigos 5º, 144, 180 e 181 da Constituição do Estado) devem ser observados para a constatação de sua constitucionalidade: (a) a iniciativa cabe apenas do Chefe do Executivo; (b) a necessidade do planejamento; (c) e a necessidade de participação das comunidades envolvidas.

Há que se saber, então, se os tais parâmetros serviriam ao caso em exame.

Quanto à iniciativa, cabe admitir que o projeto de lei que precedeu à edição da norma em análise foi apresentado pelo Chefe do Executivo Municipal, o que afasta a possibilidade de alegação de inconstitucionalidade por vício de iniciativa ou quebra da regra da separação de poderes (fls. 53).

O Prefeito foi concitado a informar se o projeto de lei que alterou o zoneamento urbano foi precedido de planejamento e participação comunitária. Nada falou sobre o planejamento, mas confessou que a comunidade não foi envolvida na discussão (“a necessidade de eventuais discussões não foi aventada pela Câmara Municipal”), cogitando de que a participação do Poder Legislativo na formação da norma a supriria.

Os autos, porém, evidenciam que não houve o planejamento.

Com efeito, a mensagem que remeteu à Edilidade o projeto de lei limitou-se a dizer que “as alterações ora propostas aumentam o perímetro urbano de nosso município, agregando áreas que futuramente poderão servir de núcleos urbanos, visando assim ao desenvolvimento de nossa comunidade” (fls. 78).

Nenhuma linha foi dedicada à situação fática concreta que determinaria a ampliação da zona urbana consoante às atuais exigências comunitárias e necessidades da população.

Sob esse aspecto, ainda, é sintomático que, após a promulgação da lei impugnada, o Poder Executivo tenha remetido para a Câmara Municipal nova proposta de alteração do perímetro urbano (projeto de lei 34, de 2 de maio de 2006), que foi rejeitada por recomendação da assessoria jurídica sob o argumento de que, à época, se aguardava a elaboração do Plano Diretor (fls. 51).

O plano diretor, como se sabe, é o instrumento que fixa os objetivos e prioridades locais, de acordo com as demandas dos munícipes, e orienta os projetos de urbanização e reurbanização que lhe seguem. Deve abranger a totalidade do território do Município e, de acordo com o Estatuto da Cidade, deverá prever a delimitação da área urbana.

Bem por isso, figura-se casuística a lei impugnada que, precedendo à edição do plano diretor, altera o perímetro urbano tão somente para contemplar “áreas que futuramente poderão servir de núcleos urbanos”, dentre as quais o “sítio Macaúbas”, imóvel tipicamente rural (fls. 15 e 27) e no curso de ação civil pública destinada a compelir seu proprietário a instituir a reserva florestal.

E, ainda que assim não fosse, a falta de participação comunitária é, por si só, fundamento suficiente ao reconhecimento da inconstitucionalidade da lei em análise.

Não tem cabimento o raciocínio desenvolvido nas informações do Prefeito de que a aprovação do projeto de lei pelo Poder Legislativo atende a tal requisito.

De fato, a Constituição não contém palavras inúteis.

Nesse passo, deve-se atentar para a expressa determinação contida na Carta Bandeirante e dirigida aos Municípios para que assegurem a participação das respectivas entidades comunitárias no estudo, encaminhamento e solução dos problemas, planos, programas e projetos que lhes sejam concernentes quando da edição de normas relativas ao desenvolvimento urbano.

Ora, se na formação das leis conjugam-se atos dos poderes Executivo e Legislativo, é curial que a determinação constitucional concernente ao Direito Urbanístico representa um plus do processo da formação da norma. Por tal razão, a apreciação da lei pela Câmara Municipal não dispensa esse requisito.

É como pensa esse Sodalício.

Colhe-se, em recente julgado, primorosa lição acerca da necessidade de planejamento e participação comunitária para a alteração do perímetro urbano:

O argumento principal da inconstitucionalidade da lei em foco está na alteração de zona rural em zona urbana, sem aprovação anteriormente de um Plano Diretor para essa finalidade, onde deveria ser elaborado prévio estudo e ampla discussão com a sociedade, evitando a aprovação, sem legislação específica, de vários loteamentos em áreas de grande extensão territorial, podendo resultar impacto ambiental.

(...)

O diploma legal é argüido de inconstitucional por não obedecer, fundamentalmente, em sua gênese, determinação expressa e autoaplicável do art. 180, II e V, da Carta Estadual, inserido no capítulo da política urbana e relativa ao plano diretor, que assegura a participação da sociedade na elaboração das leis.

Nos autos não se verifica um planejamento municipal adequado e nenhum envolvimento da sociedade local direta ou indiretamente por suas entidades ou classes de associações, que pudessem de alguma forma expressar ou opinar sobre o assunto, o que é de elevada importância, para todos aqueles residentes próximo a áreas protegidas ambientalmente.

O Plano Diretor envolve estudos técnicos, valoração de ações, é um diploma legal de política urbana de um município, com o objetivo de ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes.

Não há notícias de estudos pertinentes, detalhados e conclusivos norteados pelo interesse público, em benefício da sociedade local, inexiste qualquer indício de planejamento ou comprovação de observância de normas urbanísticas, também não consta a manifestação da sociedade local, assim, violado está o artigo 180 inciso II e V, da Constituição do Estado de São Paulo (...)

Diploma desta importância jamais poderia merecer um tratamento displicente e ao arrepio das normas constitucionais O controle de constitucionalidade pode ser preventivo ou sucessivo. O objetivo precípuo deste controle preventivo ocorre antes de sua entrada em vigor, encontrando-se ainda em processo de formação, buscando justamente evitar que ingresse no ordenamento jurídico normas de efeitos inconstitucionais.

Na lição de José Nilo de Castro acentua que "as políticas de controle do solo urbano e a implementação de uma política de assentamento racional, justo, ordenado, do homem na cidade se impõem, para salvá-los, seja o homem, seja a cidade, enquanto habitante e espaço habitável... Os municípios a este intento, devem cercar-se de especialistas na área de engenharia, urbanismo, saneamento, sociologia, juristas entre outros - ou contratar firmas especializadas de consultoria, a fim de que se faça diagnóstico completo da cidade, coletando-se-lhes os objetivos. Obrigatoriamente participarão da elaboração do plano diretor as associações representativas da comunidade, além de se abrir oportunidade de iniciativa de projeto de lei a população." (In Direito Positivo, Del Rey, Belo Horizonte, p. 263/265).

A própria Constituição Federal de 1988 (art. 29, XII), prescreve a cooperação das associações representativas no planejamento municipal.

Em verdade, não tomou as devidas cautelas a municipalidade, quando da elaboração da lei, não poderiam os legisladores votar sem antes proceder prévia consulta aos setores interessados.

Todas leis devem ser precedidas de mecanismos e formas para garantir o direito básico de participação da sociedade na sua elaboração, com isso pode-se afirmar que todas as leis estaduais que versarem sobre política urbana deverão obedecer, além dos trâmites comuns a toda e qualquer legislação, a mais uma condicionante, qual seja, a participação das entidades comunitárias legalmente constituídas, sob pena de o diploma legal padecer de vício formal, por ofensa à democracia participativa e ao princípio da publicidade.

(...)

Não houve debates com a comunidade e em nenhum momento se aponta que houve qualquer discussão prévia, nenhum laudo técnico, ou "experts" e nenhuma audiência durante a tramitação do projeto, estando patente o vício formal.

Em suma, tem-se claro que a Lei Municipal 2.786, de 25 de agosto de 2005, do Município de São José do Rio Pardo, alterou o perímetro urbano sem prévio planejamento e sem consulta à comunidade, desatendendo o comando dos artigos 180, inciso II e 181 da Constituição do Estado de São Paulo, cumprindo seja declarada a sua inconstitucionalidade.

 

3. PEDIDO DE LIMINAR.

Estão presentes, na hipótese examinada, os pressupostos do fumus bonis iuris e do periculum in mora, a justificar a suspensão liminar da vigência e eficácia do ato normativo impugnado.

A razoável fundamentação jurídica decorre dos motivos expostos anteriormente, que indicam, de forma clara, que a Lei impugnada na presente ação padece de vício de inconstitucionalidade.

O perigo da demora decorre especialmente da idéia de que, sem a imediata suspensão da vigência e eficácia do ato normativo impugnado, instalar-se-á, provavelmente, situação consumada decorrente do novo desenho urbano.

A idéia do fato consumado, com repercussão concreta, guarda relevância para a apreciação da necessidade da concessão da liminar na Ação Direta de Inconstitucionalidade. Válida tal afirmação, na medida em que providências administrativas que ulteriormente serão necessárias para o restabelecimento do statu quo ante, com a esperada procedência da ação, trarão ônus e custos para a Administração Pública.

Assim, a imediata suspensão da eficácia do ato normativo, cuja inconstitucionalidade é palpável, evita qualquer desdobramento no plano dos fatos que possa significar, na prática, prejuízo concreto para o Poder Público Municipal no aspecto administrativo.

De resto, ainda que não houvesse essa singular situação de risco, restaria, ao menos, a excepcional conveniência da medida. Com efeito, no contexto das ações diretas e da outorga de provimentos cautelares para defesa da Constituição, o juízo de conveniência é um critério relevante, que vem condicionando os pronunciamentos mais recentes do Supremo Tribunal Federal, preordenados à suspensão liminar de leis aparentemente inconstitucionais (cf. ADIN-MC 125, j. 15.2.90, DJU de 4.5.90, p. 3.693, rel. Min. Celso de Mello; ADIN-MC 568, RTJ 138/64; ADIN-MC 493, RTJ 142/52; ADIN-MC 540, DJU de 25.9.92, p. 16.182).

Diante do exposto, requer-se a concessão da liminar, para fins de suspensão imediata da eficácia do ato normativo impugnado, ou seja, a Lei Municipal 2.786, de 25 de agosto de 2005, do Município de São José do Rio Pardo, durante o trâmite da presente Ação Direta de Inconstitucionalidade.

 

4. CONCLUSÃO E PEDIDO.

Por todo o exposto, evidencia-se a necessidade de reconhecimento da inconstitucionalidade da norma aqui apontada.

Assim, aguarda-se o recebimento e processamento da presente Ação Declaratória, para que ao final seja julgada procedente, reconhecendo-se a inconstitucionalidade da Lei Municipal 2.786, de 25 de agosto de 2005, que alterou o perímetro urbano do Município de São José do Rio Pardo.

Requer-se ainda sejam requisitadas informações à Câmara Municipal e ao Prefeito Municipal, bem como posteriormente citado o Procurador-Geral do Estado para se manifestar sobre o ato normativo impugnado.

Posteriormente, aguarda-se vista para fins de manifestação final.

São Paulo, 11 de setembro de 2008.

 

 

 

Fernando Grella Vieira

Procurador-Geral de Justiça

 

Jesp