EXCELENTÍSSIMO SENHOR DESEMBARGADOR PRESIDENTE DO EGRÉGIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO.

 

 

Ementa: 1) Lei n. 6.480, de 29 de dezembro de 2008, do Município de Guarulhos que autoriza a Prefeitura de Guarulhos a suspender os processos de reintegração de posse em áreas públicas e dá outras providências. Lei Autorizativa de iniciativa parlamentar. 2)Violação dos artigos 5º, §1º, 47, II e XIV e 144, todos da Constituição do Estado de São Paulo. 3) Ação Direta de Inconstitucionalidade visando a declaração da inconstitucionalidade da lei impugnada.

 

 

               O PROCURADOR-GERAL DE JUSTIÇA, no exercício da atribuição prevista no artigo 116, inciso VI, da Lei Complementar nº 734, de 26.11.93, e em conformidade com o disposto nos artigos 125, § 2º, e 129, inciso IV, da Constituição Federal, e artigo 74, inciso VI, e 90, inciso III, da Constituição Estadual, tendo em vista o contido no protocolado anexo (PGJ nº 000.2548/09), vem, respeitosamente, promover perante esse Colendo Tribunal de Justiça a presente AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE, com pedido de medida liminar,  da Lei nº 6.480, de 29 de dezembro de 2008, do Município de Guarulhos, que “ Autoriza a Prefeitura de Guarulhos a suspender os processos de reintegração de posse em áreas públicas e dá providências”, pelos motivos e fundamentos a seguir expostos.

 

           1. O diploma impugnado tem a seguinte redação:

 

 

“Art. 1º - Fica a Prefeitura de Guarulhos autorizada a requerer a suspensão do processo de reintegração de posse de área pública que tiver decretada a reintegração em caráter liminar ou definitivo, ocupada para fins de moradia popular, até a implantação do Programa Municipal de Moradia Popular.

 

Art. 2º VETADO.

 

Art. 3º - Dentro do prazo de 3 (três) meses, a contar da data da supensão de cada processo, a Prefeitura de Guarulhos deverá elaborar estudo sócio-econômico em relação à respectiva ocupação, a fim  de constatar ou não o efetivo interesse social. Caso constatada a existência de interesse social, o processo de reintegração deverá ser retomado.

 

Art. 4º - VETADO.

 

Art. 5º - As despesas decorrentes da aplicação desta Lei correrão por conta de dotações próprias, apresentadas se necessário.

 

Art. 6º - Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário”.

 

           O ato normativo, como será demonstrado a seguir, é verticalmente incompatível com nossa ordem constitucional.

 

           A Lei Municipal nº 6.480, de 29 de dezembro de 2008, de Guarulhos, fere o princípio da separação de poderes previsto no art.5º e §1º, 47 II e XIV, c.c. o art.144 da Constituição do Estado, que têm a seguinte redação:

 

“Art.5º. São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

 

§1º. É vedado a qualquer dos Poderes delegar atribuições.

 

(...)

 

Art.47. Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas nesta Constituição:

 

(...)

 

II – exercer, com auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior da administração estadual;

 

(...)

 

XIV – praticar os demais atos de administração, nos limites da competência do Executivo;

 

(...)

 

Art.144. Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organização por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.”

 

           A Lei Municipal nº 6.480, de 29 de dezembro de 2008,  de Guarulhos, tem essencialmente duas finalidades: (a) autorizar a Municipalidade a suspender processo de reintegração de posse de área pública que tiver decretada a reintegração em caráter liminar ou definitivo, ocupada para fins de moradia; e (b) fazer com que, a Prefeitura Municipal de Guarulhos, dentro do prazo de 3 (três) meses, a contar da suspensão de cada processo, elabore estudo sócio-econômico em relação à respectiva  ocupação, a fim de manifestar ou não o efetivo interesse social, que uma vez existente ensejará a retomada do processo de reintegração.

 

           Eventual análise sobre os processos de reintegração de posse de área pública é ato de característica essencialmente administrativa, e deve ser praticado, deste modo, pela Administração Pública, sendo dispensável autorização legislativa.

 

           Em outras palavras, não é necessário que a lei autorize o Município, através do Chefe do Executivo, a fazer aquilo que, pela própria natureza das coisas, já se insere na sua esfera de atribuições.

 

           Ademais, o projeto de lei que deu ensejo ao ato normativo impugnado é de autoria parlamentar, o que demonstra que houve violação da regra da separação de poderes.

 

           É ponto pacífico na doutrina, bem como na jurisprudência, que ao Poder Executivo cabe primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de planejamento, organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder Público. De outra banda, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e abstração.

 

           O legislador municipal, na hipótese analisada, praticou verdadeiro ato materialmente administrativo, na prática ao conceder autorização para a suspensão do processo de reintegração de posse de área pública que tiver decretada a reintegração em caráter liminar ou definitivo, ocupada para fins de moradia popular, algo que o Município poderia fazer, sem a necessidade de lei autorizadora.

 

           Ademais, referido diploma, na prática, invadiu a esfera da gestão administrativa, que cabe ao Poder Executivo, e envolve o planejamento, a direção, a organização e a execução de atos de governo. Isso equivale à prática de ato de administração, de sorte a malferir a separação dos poderes.

 

           Cumpre recordar aqui o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que “a Prefeitura não pode legislar, como a Câmara não pode administrar. Cada um dos órgãos tem missão própria e privativa: a Câmara estabelece regra para a Administração; a Prefeitura a executa, convertendo o mandamento legal, genérico e abstrato, em atos administrativos, individuais e concretos. O Legislativo edita normas; o Executivo pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a harmonia e independência dos Poderes, princípio

constitucional (art.2º) extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”. Sintetiza, ademais, que “todo ato do Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art.2º c/c o art.31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15ªed., atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p.708 e 712).

 

           Deste modo, quando a pretexto de legislar, o Poder Legislativo administra, editando leis que equivalem na prática a verdadeiros atos de administração, viola a harmonia e independência que deve existir entre os poderes estatais.

 

           Esse E. Tribunal de Justiça tem declarado a inconstitucionalidade de leis municipais de iniciativa parlamentar que interferem na gestão administrativa, com amparo na violação da regra da separação de poderes. Confira-se os seguintes julgados: ADI 149.044-0/8-00, rel. des. Armando Toledo, j.20.02.2008, v.u.; ADI 134.410-0/4, rel. des. Viana Santos, j. 05.03.2008; ADI 142.496-0/9-00, rel. Junqueira Sangirardi, j. 07.05.08, v.u.; ADI ° 154.411-0/5-00, rel. Walter Swensson, j.02.04.08, v.u..

 

           Não bastasse isso, a doutrina e a jurisprudência já assentaram, de forma consistente, que as denominadas “leis autorizativas” – como a Lei Municipal nº 6.480/2008 de Guarulhos - são inconstitucionais, essencialmente em razão da quebra da regra da separação de poderes.

 

           Em trabalho publicado na Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos da Instituição Toledo de Ensino (Bauru, n. 29, ago/nov. 2000, pp. 259-267), disponível também na internet (Endereço eletrônico:  www.srbarros.com.br), sustenta o Professor Sérgio Resende de Barros:

 

 “Em 17 de março de 1982 – ainda sob a Constituição (Emenda Constitucional nº 1/69) anterior à atual – o plenário do Supremo Tribunal Federal julgou representação (nº 993-9) por inconstitucionalidade de uma lei estadual (Lei nº 174, de 8/12/77, do Estado do Rio de Janeiro) que autorizava o Chefe do Poder Executivo a praticar ato que já era de sua competência constitucional privativa. Nesse julgamento, decidiu, textualmente: O só fato de ser autorizativa a lei não modifica o juízo de sua invalidade por falta de legítima iniciativa. Não obstante a clareza do acórdão (Diário da Justiça de 8/10/82, p. 10187, Ementário nº 1.270-1, RTJ 104/46), persistiu por toda a Federação brasileira, nos níveis estadual e municipal, a prática de "leis" autorizativas (....).

 

 Insistente na prática legislativa brasileira, a "lei" autorizativa constitui um expediente, usado por parlamentares, para granjear o crédito político pela realização de obras ou serviços em campos materiais nos quais não têm iniciativa das leis, em geral matérias administrativas. Mediante esse tipo de "leis" passam eles, de autores do projeto de lei, a co-autores da obra ou serviço autorizado. Os constituintes consideraram tais obras e serviços como estranhos aos legisladores e, por isso, os subtraíram da iniciativa parlamentar das leis. Para compensar essa perda, realmente exagerada, surgiu "lei" autorizativa, praticada cada vez mais exageradamente. Autorizativa é a "lei" que – por não poder determinar – limita-se a autorizar o Poder Executivo a executar atos que já lhe estão autorizados pela Constituição, pois estão dentro da competência constitucional desse Poder. O texto da "lei" começa por uma expressão que se tornou padrão: "Fica o Poder Executivo autorizado a...". O objeto da autorização – por já ser de competência constitucional do Executivo – não poderia ser "determinado", mas é apenas "autorizado" pelo Legislativo. Tais "leis", óbvio, são sempre de iniciativa parlamentar, pois jamais teria cabimento o Executivo se autorizar a si próprio, muito menos onde já o autoriza a própria Constituição. Elas constituem um vício patente.

 (...)

 Pelo que, se uma lei fixa o que é próprio da Constituição fixar, pretendendo determinar ou autorizar um Poder constituído no âmbito de sua competência constitucional, essa lei é inconstitucional. Não é só inócua ou rebarbativa. É inconstitucional, porque estatui o que só o Constituinte pode estatuir, ferindo a Constituição por ele estatuída. O fato de ser mera autorização não elide o efeito de dispor, ainda que de forma não determinativa, sobre matéria de iniciativa alheia aos parlamentares. Vale dizer, a natureza teleológica da lei – o fim: seja determinar, seja autorizar – não inibe o vício de iniciativa. A inocuidade da lei não lhe retira a inconstitucionalidade. A iniciativa da lei, mesmo sendo só para autorizar, invade competência constitucional privativa.

 (...)

 Em suma, as "leis" autorizativas são inconstitucionais:

a.  por vício formal de iniciativa, invadindo campos em que compete privativamente ao Chefe do Executivo iniciar o processo legislativo;       

b.  por usurparem a competência material do Poder Executivo, disposta na Constituição, nada importando se a finalidade é apenas autorizar;      

c.  por ferirem o princípio constitucional da separação de poderes, tradicional e atual na ordenação constitucional brasileira.”

 

           Esse entendimento já foi adotado pelo Egrégio Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul:

 

“A lei que autoriza o Executivo a agir em matérias de sua iniciativa privada implica, em verdade, uma determinação, sendo, portanto inconstitucional”. (ADIN n. 593099377 – rel. Des. Maria Berenice Dias – j. 7.8.00).

 

           Mutatis mutandis, já proclamou esse Egrégio Plenário que:

 

“Ao Executivo haverá de caber sempre o exercício de atos que impliquem no gerir as atividades municipais. Terá, também, evidentemente, a iniciativa das leis que lhe propiciem a boa execução dos trabalhos que lhe são atribuídos. Quando a Câmara Municipal, o órgão meramente legislativo, pretende intervir na forma pela qual se dará esse gerenciamento, está a usurpar funções que são de incumbência do Prefeito”  (Adin n. 53.583-0, rel. Des. FONSECA TAVARES).

 

 

 

           2- Da liminar.

 

           Estão presentes, na hipótese examinada, os pressupostos do fumus bonis iuris e do periculum in mora, a justificar a suspensão liminar da vigência e eficácia do ato normativo impugnado.

 

           A razoável fundamentação jurídica decorre dos motivos expostos anteriormente, que indicam, de forma clara, que a lei impugnada na presente ação padece de vício de inconstitucionalidade.

 

           O perigo da demora decorre especialmente da idéia de que, sem a imediata suspensão da vigência e eficácia do ato normativo impugnado, instalar-se-á, provavelmente, situação consumada, decorrente da utilização ilegítima do imóvel alcançado pela autorização para  a suspensão do processo de reintegração de posse em área pública prevista na lei.

           A não concessão da liminar gerará fato consumado, bastando imaginar as dificuldades que surgirão para a concretização da eficácia do controle concentrado de constitucionalidade, caso a decisão favorável, nesta ação direta, ocorra após a suspensão da reintegração de posse autorizada pela lei.

 

 

 

           A idéia do fato consumado, com repercussão concreta, guarda relevância para a apreciação da necessidade da concessão da liminar na ação direta de inconstitucionalidade. Válida tal afirmação, na medida em que providências administrativas que ulteriormente serão necessárias para o restabelecimento do status quo ante, com a esperada procedência da ação, trarão ônus e custos para a Administração Pública e para a ordem urbanística.

 

           Assim, a imediata suspensão da eficácia do ato normativo, cuja inconstitucionalidade é palpável, evita qualquer desdobramento no plano dos fatos que possa significar, na prática, prejuízo concreto tanto no aspecto administrativo, como do ponto de vista urbanístico.

 

           De resto, ainda que não houvesse essa singular situação de risco, restaria, ao menos, a excepcional conveniência da medida. Com efeito, no contexto das ações diretas e da outorga de provimentos cautelares para defesa da Constituição, o juízo de conveniência é um critério relevante, que vem condicionando os pronunciamentos do Supremo Tribunal Federal, preordenados à suspensão liminar de leis aparentemente inconstitucionais (cf. ADIN-MC 125, j. 15.2.90, DJU de 4.5.90, p. 3.693, rel. Min. Celso de Mello; ADIN-MC 568, RTJ 138/64; ADIN-MC 493, RTJ 142/52; ADIN-MC 540, DJU de 25.9.92, p. 16.182).

 

 

           Diante do exposto, requer-se a concessão da liminar, para fins de suspensão imediata da eficácia da Lei Municipal nº 6.480, de 29 de dezembro de 2008.

 

           É a solução mais adequada ao caso.

 

 

3 - Conclusão e pedido.

 

           Por todo o exposto, evidencia-se a necessidade de reconhecimento da inconstitucionalidade da norma aqui apontada.

 

           Assim, aguarda-se o recebimento e processamento da presente ação declaratória, para que ao final seja julgada procedente, reconhecendo-se a inconstitucionalidade da Lei Municipal nº 6.480, de 29 de dezembro de 2008, de Guarulhos.

 

           Requer-se ainda sejam requisitadas informações à Câmara Municipal     e    à     Prefeitura Municipal     de    Guarulhos, bem como

 

 

 

 

posteriormente citado o Procurador-Geral do Estado para manifestar-se sobre o ato normativo impugnado.

 

           Posteriormente, aguarda-se vista para fins de manifestação final.

 

 

           São Paulo, 05 de fevereiro de 2009.

 

             FERNANDO GRELLA VIEIRA

    PROCURADOR-GERAL DE JUSTIÇA

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Protocolado PGJ nº 2.548/09

Interessado: Promotoria de Justiça de Guarulhos

 

 

 

 

 

                                                1.Distribua-se a petição inicial da ação direta de inconstitucionalidade, em face da Lei nº 6.480, de 29 de dezembro de 2008, do Município de Guarulhos, junto ao Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

                                                 2.Oficie-se ao interessado, informando-lhe a propositura da ação, com cópia da petição inicial.

 

 

                São Paulo, 05 de fevereiro de 2009

 

 

FERNANDO GRELLA VIEIRA

Procurador-Geral de Justiça