EXCELENTÍSSIMO SENHOR DESEMBARGADOR PRESIDENTE DO E. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

 

Protocolado nº 025.898/12

Assunto: Inconstitucionalidade do art. 7º, da Lei Complementar n. 577, de 08 de setembro de 2010; e dos incisos I e II, do art. 9º, desta mesma Lei, cuja redação foi alterada pelo art. 2º da Lei Complementar n. 626, de 03 de janeiro de 2012, do Município de Leme.

 

 

Ementa: Ação Direta de Inconstitucionalidade tendo como objeto a Lei Complementar Municipal n. 577, de 08 de setembro de 2010, alterada pela Lei Complementar n. 626, de 03 de janeiro de 2012, ambas do Município de Leme, que cria cargos de provimento em comissão, aos quais não correspondem funções de direção, chefia e assessoramento, mas funções próprias dos cargos de provimento efetivo.  Violação do art. 115, inc. II e V, da Constituição do Estado de São Paulo. Pedido para que se declare a inconstitucionalidade parcial da referida lei, especificamente com relação aos cargos de provimento em comissão relacionados.

 

 

 

O Procurador-Geral de Justiça do Estado de São Paulo, no exercício da atribuição prevista no art. 116, inciso VI da Lei Complementar Estadual nº 734, de 26 de novembro de 1993 (Lei Orgânica do Ministério Público de São Paulo), em conformidade com o disposto no art. 125, § 2º e art. 129, inciso IV da Constituição Federal, e ainda art. 74, inciso VI e art. 90, inciso III da Constituição do Estado de São Paulo, com amparo nas informações colhidas no incluso protocolado, vem, respeitosamente, perante esse Egrégio Tribunal de Justiça, promover a presente AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE  parcial da Lei Complementar  Municipal n. 577, de 08 de setembro de 2010,  alterada pela Lei Complementar n. 626, de 03 de janeiro de 2012, ambas do Município de Leme, pelos fundamentos a seguir expostos.

 

I – DOS ATOS NORMATIVOS IMPUGNADOS

 

O art. 7º, da Lei Complementar n. 577, de 08 de setembro de 2010, do Município de Leme, que “dispõe sobre a estrutura administrativa da Câmara de Vereadores do Município de Leme e dá outras providências”, criou, dentre outros, os seguintes cargos de provimento em comissão (fls. 17):

I- Assessor Especial da Presidência - 02 cargos;

II- Assessor Legislativo - 03 cargos;

 A Lei Complementar n. 626, de 03 de janeiro de 2012, do Município de Leme, que “dá nova redação aos artigos 8º e 9º da Lei Complementar n. 577, de 08 de setembro de 2010, que ‘dispõe sobre a estrutura administrativa da Câmara de Vereadores do Município de Leme e dá outras providências’”, por sua vez, descreve as atribuições, dentre outros, dos cargos de provimento em comissão de Assessor Especial da Presidência e de Assessor Legislativo.

Ocorre que, aos cargos relacionados, ora impugnados, não correspondem funções de direção, chefia e assessoramento. São lotações que não se situam na administração superior, nem demandam a estrita confiança, cujas missões devem ser realizadas por servidores de carreira, até mesmo para não haver solução de continuidade por sucessão de administradores.

A previsão normativa desses cargos de provimento em comissão não condiz com o artigo 37, incisos II e V, da Constituição Federal, ou com o artigo 115, incisos II e V, da Constituição Estadual.

É o que será demonstrado a seguir.

II – DA FUNDAMENTAÇÃO

A Constituição em vigor consagrou o Município como entidade federativa indispensável ao nosso sistema federativo, integrando-o na organização político-administrativa e garantindo-lhe plena autonomia, como se observa da análise dos arts. 1.º, 18, 29, 30 e 34, VI, “c” da CF (cf. Alexandre de Moraes, “Direito Constitucional”, São Paulo: Atlas, 7.ª ed., p. 261).

A autonomia concedida aos Municípios não tem caráter absoluto e soberano. Pelo contrário, encontra limites nos princípios emanados dos poderes públicos e dos pactos fundamentais, que instituíram a soberania de um povo (cf. De Plácido e Silva, “Vocabulário Jurídico”, Rio de Janeiro: Forense, v. I, 1984, p. 251), sendo definida por José Afonso da Silva como “a capacidade ou poder de gerir os próprios negócios, dentro de um círculo prefixado por entidade superior”, que no caso é a Constituição (Curso de Direito Constitucional Positivo, 8ª. ed., São Paulo: Malheiros, 1992, p. 545).

A autonomia municipal se assenta em quatro capacidades básicas: (a) auto-organização, mediante a elaboração de lei orgânica própria, (b) autogoverno, pela eletividade do Prefeito e dos Vereadores as respectivas Câmaras Municipais, (c) autolegislação, mediante competência de elaboração de leis municipais sobre áreas que são reservadas à sua competência exclusiva e suplementar, (d) auto-administração ou administração própria, para manter e prestar os serviços de interesse local (cf. José Afonso da Silva, ob. cit., p. 546).

Nessas quatro capacidades, encontram-se caracterizadas a autonomia política (capacidades de auto-organização e autogoverno), a autonomia normativa (capacidade de fazer leis próprias sobre matéria de sua competência), a autonomia administrativa (administração própria e organização dos serviços locais) e a autonomia financeira (capacidade de decretação de seus tributos e aplicação de suas rendas, que é uma característica da auto-administração) (ob. e loc. cits).

Assim, por força da autonomia administrativa de que foram dotadas, as entidades municipais são livres para organizar os seus próprios serviços, segundo suas conveniências locais. E, na organização desses serviços públicos, a Administração cria cargos e funções, institui classes e carreiras, faz provimentos e lotações, estabelece vencimentos e vantagens e delimita os deveres e direitos de seus servidores (cf. Hely Lopes Meirelles, Direito Municipal Brasileiro, 8ª. ed., São Paulo: Malheiros, 1996, p. 420).

Contudo, a liberdade conferida aos Municípios para organizar os seus próprios serviços não é ampla e ilimitada; ela se subordina às seguintes regras fundamentais e impostergáveis: (a) a que exige que essa organização se faça por lei; (b) a que prevê a competência exclusiva da entidade ou Poder interessado; e (c) a que impõe a observância das normas constitucionais federais pertinentes ao servidor público (ob. e loc. cits.)

No caso em exame, o Legislador Municipal criou cargos de provimento em comissão para o exercício de funções estritamente técnicas ou profissionais, próprias dos cargos de provimento efetivo. São funções que denotam a natureza profissional do vínculo entre seus agentes e a Administração Pública e que, por essa razão, só poderiam ser preenchidas por concurso público.

Segundo Ruy Cirne Lima (Princípios de Direito Administrativo, RT, 6.ª ed., p. 162), o funcionário público profissional se peculiariza por quatro característicos básicos, a saber: (a) natureza técnica ou prática do serviço prestado; (b) retribuição de cunho profissional; (c) vinculação jurídica à Administração Direta; (d) caráter permanente dessa vinculação.

Desse modo, nitidamente diferenciado dos cargos que reclamam provimento em comissão, as funções profissionais devem ser exercidas em caráter permanente, ou seja, pelo quadro estável de servidores públicos municipais, os quais, em conformidade com o disposto no art. 115, inciso II, da Constituição do Estado de São Paulo, só podem ser arregimentados por concurso público de provas ou de provas e títulos.

Na verdade, o cargo em comissão destina-se apenas às atribuições de “direção, chefia e assessoramento” (CF., art. 37, inciso V, com a redação dada pela EC n.º 19/98) e tem por finalidade propiciar ao governante o controle das diretrizes políticas traçadas. Exige, portanto, das pessoas indicadas a titularizá-los, absoluta fidelidade à orientação fixada pela autoridade nomeante. Em outras palavras, o cargo de provimento em comissão está diretamente ligado ao dever de lealdade à linha fixada pelo agente político superior.

Daí porque a exceção contida na parte final do inciso II, do artigo 115, da Constituição do Estado de São Paulo - “ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração” -, que, no ponto, reproduz a dicção do artigo 37, inciso II, da Constituição da República, tem alcance limitado a situações excepcionais, relativas aos cargos cuja natureza especial justifique a dispensa de concurso público.

Torna-se evidente, portanto, que a limitação apontada não tem caráter puramente formal, de simples e não criteriosa indicação legal de cargos de provimento em comissão, que pudesse afastar o princípio constitucional da igual acessibilidade aos cargos públicos.

Bem a propósito, ao estudar com profundidade esse assunto, Márcio Cammarosano deixou anotado que o princípio democrático implica no princípio da igualdade “e este no princípio da igual acessibilidade dos cargos públicos, com o que se resguarda também o princípio da probidade administrativa” (Provimento de Cargos Públicos no Direito Brasileiro, São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 45).

Assim, para que a lei criadora de um cargo em comissão não venha a se constituir em burla ao princípio constitucional arrolado, enunciado expressamente pelo artigo 37, incisos I e II, da Constituição da República, deverá observar criteriosamente a natureza das funções a serem desempenhadas, pois, no dizer de Celso Antonio Bandeira de Mello (O Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade, Editora Revista dos Tribunais, 1.ª edição, pág. 49), “impende que exista uma adequação racional entre o tratamento diferençado construído e a razão diferencial que lhe serviu de supedâneo”.

Afinado a esse mesmo entendimento, Hely Lopes Meirelles (Direito Administrativo Brasileiro, 18ª. ed, São Paulo: Malheiros, p. 378) adverte sobre pronunciamento do Supremo Tribunal Federal no sentido de que “a criação de cargo em comissão em moldes artificiais e não condizentes com as praxes de nosso ordenamento jurídico e administrativo, só pode ser encarada como inaceitável esvaziamento da exigência constitucional de concurso”.

E, da mesma forma, já decidiu o Pretório Excelso que “a exigência constitucional do concurso público não pode ser contornada pela criação arbitrária de cargos em comissão para o exercício de funções que não pressuponham o vínculo de confiança que explica o regime de livre nomeação e exoneração que os caracteriza.” (STF, RTJ 156/793)

Na esteira desse raciocínio, é inescusável que a parte final do inciso II do art. 115 da Constituição do Estado de São Paulo, tem alcance circunscrito a situações em que o requisito da confiança seja predicado indispensável ao exercício do cargo. De fato, como se trata de uma exceção à regra do concurso público, a criação de cargos em comissão pressupõe o atendimento do interesse público e só se justifica para o exercício de funções de “direção, chefia e assessoramento”, em que seja necessário o estabelecimento de vínculo de confiança entre a autoridade nomeante e o servidor nomeado. Fora desses parâmetros, é inconstitucional qualquer tentativa de criação de cargos dessa natureza.

É incontestável que os cargos anteriormente relacionados, cuja validade jurídico-constitucional ora se examina, não se apresentam como cargos ou funções da administração superior, ou mesmo de “direção, chefia e assessoramento”, que exijam relação de confiança ou especial fidelidade às diretrizes traçadas pela autoridade nomeante, mas sim de cargos comuns, de natureza profissional, que devem ser assumidos em caráter permanente por servidores aprovados em concurso.

No caso dos autos, as tarefas atribuídas aos cargos de Assessor Especial da Presidência e Assessor Legislativo, encontram-se assim definidas:

a)   Assessor Especial da Presidência:

“Prestar assessoria ao Presidente da Câmara; organizar, promover e executar todas as condutas necessárias para assessorar a Presidência na realização de eventos no âmbito interno e externo da Câmara; assessorar a Presidência junto à imprensa, redigindo e distribuindo comunicados à imprensa sob a orientação do presidente; executar qualquer outra atividade que por sua natureza, esteja inserida no âmbito de suas atribuições e outros serviços afins para assessoramento da Presidência” (art. 9º, II, da Lei n. 577/2010, com a redação dada pela Lei n. 626/2012- fls. 26);

 

         b) Assessor Legislativo:

“Assessora aos membros da Bancada de Vereadores e as comissões permanentes, na análise, elaboração e encaminhamento das proposições legislativas solicitadas, bem como nas atividades burocráticas, para atender suas demandas; assessora aos vereadores da bancada e as comissões permanentes, nos assuntos técnicos, efetuando análise, pesquisas, propostas que subsidiarão na tomada de decisão, assessora os membros das Bancadas e das comissões permanentes, na organização, controle das atividades burocráticas, bem como na redação de requerimentos, indicações, moções, ofícios de demais documentos referentes ou relativos aos interesses da Bancada de Vereadores; promove a integração das atividades da bancada, uniformizando procedimentos e o trabalho parlamentar; executa outras tarefas correlatas que lhe forem determinadas pela presidência e pela mesa diretora; atuar em todas as etapas do processo legislativo” (art.9, III, da Lei n. 577/2010, com a redação dada pela Lei n. 626/2012 – fls. 26).

          Tais atividades, como se pode observar, são nitidamente técnicas, burocráticas ou operacionais, subalternas que não exigem qualquer vínculo de confiança com o administrador público, revelando, desta forma, a criação indiscriminada, abusiva e artificial de cargos de provimento em comissão, que ofende os princípios de moralidade, impessoalidade, razoabilidade e interesse público, inscritos no art. 111, que orientam os incisos II e V do art. 115 da Constituição Estadual.

        Em relação ao Assessor Legislativo, tal situação fica ainda mais clara e evidente, na medida em que inexiste vinculo especial de confiança entre ocupante de cargo de provimento em comissão e membro das bancadas e comissões permanentes.

III – DA CONCLUSÃO

Por todo o exposto, evidencia-se a necessidade de reconhecimento da inconstitucionalidade dos cargos de provimento em comissão de Assistente Especial da Presidência e de Assessor Legislativo, bem como de suas respectivas atribuições.

IV – DO PEDIDO LIMINAR

À saciedade demonstrado o fumus boni iuris, pela ponderabilidade do direito alegado, soma-se a ele o periculum in mora. A atual tessitura do preceito legal do Município de Leme apontados como violadores de princípios e regras da Constituição do Estado de São Paulo é sinal, de per si, para suspensão de sua eficácia até o final julgamento desta ação.

Está claramente demonstrado que o excesso de cargos de provimento em comissão configura motivo consistente para reconhecimento de sua inconstitucionalidade.

O perigo da demora decorre, especialmente, da ideia de que, sem a imediata suspensão da vigência e da eficácia da disposição normativa questionada, subsistirá a sua aplicação. Serão realizadas despesas  que, dificilmente, poderão ser revertidas aos cofres públicos na hipótese provável de procedência da ação direta.

Basta lembrar que os pagamentos realizados aos servidores públicos nomeados para ocuparem tais cargos, certamente, não serão revertidos ao erário, pela argumentação usual, em casos desta espécie, no sentido do caráter alimentar da prestação e da efetiva prestação dos serviços.

A ideia do fato consumado, com repercussão concreta, guarda relevância para a apreciação da necessidade da concessão da liminar na ação direta de inconstitucionalidade.

Note-se que, com a procedência da ação, pelas razões declinadas, não será possível restabelecer o status quo ante.

Assim, a imediata suspensão da eficácia das normas impugnadas evitará a ocorrência de maiores prejuízos, além dos que já se verificaram.

De resto, ainda que não houvesse essa singular situação de risco, restaria, ao menos, a excepcional conveniência da medida.

Com efeito, no contexto das ações diretas e da outorga de provimentos cautelares para defesa da Constituição, o juízo de conveniência é um critério relevante, que vem condicionando os pronunciamentos do Supremo Tribunal Federal, preordenados à suspensão liminar de leis aparentemente inconstitucionais (cf. ADIN-MC 125, j. 15.2.90, DJU de 4.5.90, p. 3.693, rel. Min. Celso de Mello; ADIN-MC 568, RTJ 138/64; ADIN-MC 493, RTJ 142/52; ADIN-MC 540, DJU de 25.9.92, p. 16.182).

À luz deste perfil, requer a concessão de liminar para a suspensão da eficácia, até o final e definitivo julgamento desta ação, nas partes em que prevê a criação e descreve as atribuições dos cargos de provimento em comissão de Assessor Especial da Presidência e Assessor Legislativo.

V – DO PEDIDO

Por todo o exposto, aguarda-se o recebimento e o processamento da presente Ação Declaratória, para que, ao final, seja julgada procedente, reconhecendo-se a inconstitucionalidade parcial do art. 7º, da Lei Complementar n. 577, de 08 de setembro de 2010, do Município de Leme,  no tocante à criação dos cargos de provimento em comissão de Assessor Especial da Presidência e de Assessor Legislativo, e dos incisos II e III, do art. 9º, desta mesma Lei, cuja redação foi alterada pelo art. 2º, da Lei Complementar n. 626, de 03 de janeiro de 2012, do Município de Leme.

Requer-se, ainda, que sejam requisitadas informações à Câmara Municipal e ao Prefeito Municipal de Leme, bem como posteriormente citado o Procurador-Geral do Estado para se manifestar sobre os atos normativos impugnados.

Posteriormente, aguarda-se vista para fins de manifestação final.

 

São Paulo, 13 de julho de 2012.

 

Márcio Fernando Elias Rosa

Procurador-Geral de Justiça

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Protocolado nº 025.898/12

Assunto: Inconstitucionalidade do art. 7º, da Lei Complementar n. 577, de 08 de setembro de 2010; e dos incisos I e II, do art. 9º, desta mesma Lei, cuja redação foi alterada pelo art. 2º da Lei Complementar n. 626, de 03 de janeiro de 2012, do Município de Leme.

 

 

 

1.     Distribua-se a petição inicial da ação direta de inconstitucionalidade, em face, do art. 7º, da Lei Complementar n. 577, de 08 de setembro de 2010, do Município de Leme, no tocante à criação dos cargos de provimento em comissão de Assessor Especial da Presidência e de Assessor Legislativo, e dos incisos II e III, do art. 9º, desta mesma Lei, cuja redação foi alterada pelo art. 2º, da Lei Complementar n. 626, de 03 de janeiro de 2012, do Município de Leme, junto ao Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

2.     Oficie-se ao interessado, informando-lhe a propositura da ação, com cópia da petição inicial.

 

                   São Paulo, 13 de julho de 2012.

 

 

 

Márcio Fernando Elias Rosa

Procurador-Geral de Justiça

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