EXCELENTÍSSIMO SENHOR DESEMBARGADOR PRESIDENTE DO E. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

 

Protocolado nº 31.660/09

Assunto: Inconstitucionalidade do § 3º do art. 36 e do § 2º do art. 66 da Lei Complementar n. 206, de 27 de dezembro de 2006, do Município de Mogi Mirim.

 

 

Ementa: Ação direta de inconstitucionalidade do § 3º do art. 36 e do § 2º do art. 66, todos da Lei Complementar n. 206, de 27 de dezembro de 2006, do Município de Mogi Mirim. A regra da ascensão, conforme estipulada pela Lei Complementar n. 206, de 27 de dezembro de 2006, viola princípios constitucionais que exigem a realização de concurso público para acesso aos cargos e empregos na administração pública, e, por conseqüência, viola também a regra da acessibilidade geral e da isonomia com relação ao provimento de cargos na administração pública. Inteligência da Súmula 685 do STF. Precedentes do STF: ADI 231, Rel. Min. Moreira Alves, julgamento em 5-8-92, DJ de 13-11-92; ADI 3.582, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgamento em 1º-8-07, DJ de 17-8-07; ADI 3.434-MC, voto do Min. Joaquim Barbosa, julgamento em 23-8-06, DJ de 28-9-07;ADI 388, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgamento em 20-9-07, DJ de 19-10-07; ADI 3.442, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgamento em 7-11-07, DJ de 7-12-07.

O Procurador-Geral de Justiça do Estado de São Paulo, no exercício da atribuição prevista no art. 116, inciso VI da Lei Complementar Estadual nº 734, de 26 de novembro de 1993 (Lei Orgânica do Ministério Público de São Paulo), em conformidade com o disposto nos artigos 125, § 2º e 129, inciso IV da Constituição Federal, e ainda art. 74, inciso VI e art. 90, inciso III da Constituição do Estado de São Paulo, com amparo nas informações colhidas no incluso protocolado, vem, respeitosamente, perante esse Egrégio Tribunal de Justiça, promover a presente AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE do § 3º do art. 36 e do § 2º do art. 66, todos da Lei Complementar n. 206, de 27 de dezembro de 2006, do Município de Mogi Mirim, pelos fundamentos a seguir expostos.

1. DO ATO NORMATIVO IMPUGNADO.

A Lei Complementar n. 206, de 27 de dezembro de 2006, que dispõe sobre a reorganização administrativa e a reestruturação do quadro de pessoal com plano de empregos, carreira e salários do SAAE (Serviço Autônomo de Água e Esgoto de Mogi Mirim), reza no § 3º do art. 36:

“A ascensão será feita mediante processo seletivo interno nos quais será aferida a qualificação dos servidores públicos para ocuparem as vagas no nível imediatamente superior ao que exercem, dentro da carreira do Grupo Ocupacional a que seu emprego pertence observado os requisitos da carreira mencionados no Anexo VIII desta Lei Complementar”.

A análise do Anexo II da Lei Complementar n. 206, de 27 de dezembro de 2006, coloca dentro de um mesmo Grupo Ocupacional funções que não guardam exata similitude. Veja-se, por exemplo, que dentro da denominação Agente de Serviço V estão as funções que vão de “artesão” a “pintor de parede”. O mesmo se diz da Tabela “B” da classificação da carreira dos empregos técnicos administrativos, também do Anexo II, colocando sob a mesma denominação “fiscal de obras” e “técnico de taxidermista”.  

Remarque-se que o § 2º do art. 66 da Lei Complementar n. 206, de 27 de dezembro de 2006, claramente afronta a regra do concurso público, ao assentar:

“Obrigatoriamente, a ascensão será a primeira fase para o preenchimento de vagas disponíveis no Quadro Efetivo da Autarquia, após decorridos 180 (cento e oitenta) dias da publicação da presente Lei, e as vagas remanescentes não preenchidas serão destinadas a Concurso Público”.

Ocorre, porém, que as carreiras estabelecidas no Anexo II da Lei Complementar n.º 206, de 27 de dezembro de 2006 são fictícias, porquanto não correspondem ‘ao agrupamento de classes da mesma profissão ou atividade, escalonadas segundo a hierarquia do serviço’ (cf. HELY LOPES MEIRELLES, Direito Administrativo Brasileiro, p. 396), mas sim à série de classes de atividades diferentes e escalonadas pelo nível de vencimento – a exemplo da classe formada por empregos permanentes de agente de trânsito e guarda municipal (Agente de Serviço VII) –, donde se conclui que a promoção vertical, que constitui o meio normal de se galgar postos dentro da mesma carreira, vem servindo na realidade à transposição do servidor público de um emprego para outro com atribuições diferentes.

Afigura-se claro que não se enquadra no conceito de classe o agrupamento de cargos e empregos públicos com atribuições sem nenhuma afinidade, tampouco constitui uma carreira o conjunto formado por classes de profissões ou atividades diversas.

No julgamento da ADIn n.º 951/SC (Rel. Min. JOAQUIM BARBOSA), em que se questionava a validade jurídico-constitucional de normas que apresentavam conteúdo semelhante ao das normas que estão sendo impugnadas nesta ação, o Excelso Pretório assentou que:

O Tribunal julgou ação direta ajuizada contra diversos artigos de normas catarinenses que, dispondo sobre o plano de carreiras, cargos e vencimentos dos servidores do Tribunal de Contas e do Pessoal do Poder Judiciário do Estado de Santa Catarina, estabeleceram "a forma de provimento derivado que não a promoção, como o acesso (que corresponde, no plano federal, à ascensão funcional), o enquadramento em cargo distinto do anterior e a transferência". Declarou-se, por unanimidade, a inconstitucionalidade do art. 12, caput, e §§ 1º, 2º e 3º, da LC estadual 78/93 por se entender caracterizada a ofensa ao art. 37, II, da CF, já que os dispositivos impugnados estabeleciam modalidades derivadas de investidura em cargo público sem atendimento à exigência de realização de concurso público.”

É conveniente esclarecer que a promoção é instituto próprio dos cargos estruturados em carreira (CF, art. 39, ‘caput’, e seu § 8.º), inexistindo, a princípio, ofensa à Constituição na previsão legal de passagem do servidor para a classe subseqüente da carreira a qual pertence. Assim, se as carreiras estabelecidas por lei correspondessem efetivamente ao agrupamento de classes da mesma profissão ou atividade, escalonadas segundo a hierarquia do serviço, nenhum problema haveria. Diversa, porém, será a situação quando houver a criação artificial de carreiras, como neste caso, em que a regra moralizadora do concurso saiu violada, tornando-se, assim, necessário proclamar a inconstitucionalidade dos dispositivos legais que tratam da promoção vertical, os quais não têm subsistência autônoma, por serem umbilicalmente ligados ao Anexo II (arrastamento).

A regra da ascensão, conforme estipulada pela Lei Complementar n. 206, de 27 de dezembro de 2006, viola princípios constitucionais que exigem a realização de concurso público para acesso aos cargos e empregos na administração pública, e, por conseqüência, viola também a regra da acessibilidade geral e da isonomia com relação ao provimento de cargos na administração pública, que decorrem dos seguintes dispositivos da Constituição Estadual:

Art. 111. A administração pública direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes do Estado, obedecerá aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, razoabilidade, finalidade, motivação, interesse público e eficiência.

Art.115. Para a organização da administração pública direta e indireta, inclusive as fundações instituídas ou mantidas por qualquer dos Poderes do Estado, é obrigatório o cumprimento das seguintes normas:

I – os cargos, empregos e funções públicas são acessíveis aos brasileiros que preencham os requisitos estabelecidos em lei, assim como os estrangeiros, na forma da lei;

II – a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia, em concurso público de provas ou de provas e títulos, ressalvadas as nomeações para cargo de provimento em comissão, declarado em lei, de livre nomeação e exoneração.

É oportuno recordar que tais dispositivos são reproduções do disposto no art. 37, incisos I e II, da CR/88, sendo todos (os da Constituição Federal e os da Estadual), aplicáveis aos Municípios por força do art. 144 da Constituição Paulista.

Com efeito, o § 3º do art. 36 Lei Complementar n. 206, de 27 de dezembro de 2006, do Município de Mogi Mirim, ofende o princípio da  impessoalidade, consubstanciado na universalização do concurso público, proibido qualquer tipo de  transposição, ascensão ou acesso

Vale recordar que o conceito de carreira diz respeito ao “agrupamento de classes da mesma profissão ou atividade, escalonadas segundo a hierarquia do serviço, para acesso privativo dos titulares dos cargos que a integram, mediante provimento originário” (cf. Hely Lopes Meirelles, Direito Administrativo Brasileiro, 34ª. ed., São Paulo, Malheiros, 2008, p. 424). No mesmo sentido: Edmir Netto de Araújo, Curso de Direito Administrativo, São Paulo, 2005.

Afastado pela Constituição atual o princípio do acesso aos cargos públicos pelo concurso apenas na primeira investidura, como anteriormente; houve a moralização e universalização do concurso público. Assim, não pode haver ‘enquadramento’ que desrespeite as carreiras específicas, como lembra CELSO ANTONIO BANDEIRA DE MELLO: 

'Derivação vertical. É a passagem do titular de um para outro cargo, com elevação funcional. Na legislação federal há duas dis­tintas formas de provimento que implicam derivação vertical: uma é a promoção, que na legislação paulista denomina-se acesso; outra é a ascensão, que não tem correspondente na legislação paulista. Veja­mos em que consiste cada qual. 'Promoção', na legislação federal, ou acesso, na legislação do Esta­do de São Paulo, é a modalidade de provimento em que há passagem do titular de um cargo para outro mais elevado, dentro da mesma car­reira. É uma forma pela qual se progride naturalmente no serviço pú­blico, segundo critérios de merecimento e antigüidade. Esta forma de progresso, a que se fez referência, não é, necessariamente, ascensão na escala hierárquica, ainda que, muita vez, pretenda-se caracterizá-la assim. Na verdade, tudo vai depender do sistema  de  classificação de cargos adotado. Com efeito, só há elevação na hierarquia quando al­guém assume posição de mando (cargo de chefia ou direção). A promoção pode ser - e assim geralmente ocorre nos sistemas adotados entre nós -, simplesmente, elevação na carreira, isto é, passagem pa­ra cargo da mesma profissão, pelo menos em tese de maior complexi­dade ou responsabilidade.

'Ascensão' é a forma de provimento derivado consistente na elevação do titular de cargo alocado na classe final de uma dada carreira (série de classe) para cargo da classe inicial de outra car­reira, predefinida legalmente como complementar da anterior”(Regime Jurídico dos Servidores da Administração Direta e Indireta, Malheiros, 3.ª ed., p.44).

O Supremo Tribunal Federal tem declarado inconstitucionais leis que prevêem ou previram a transposição ou a ascensão  (ADI  837-4-DF, Rel. Min. MOREIRA ALVES):

EMENTA: Ação direta de inconstitucionalidade. Formas de provimento derivado. Inconstitucionalidade.  Tendo sido editado o Plano de Classificação dos Cargos do Poder Judiciário posteriormente à propositura desta ação direta, ficou ela prejudicada quanto aos servidores desse Poder. No mais, esta Corte, a partir do julgamento da ADIN 231, firmou o entendimento de que são inconstitucionais as formas de provimento derivado representadas pela ascensão ou acesso, transferência e aproveitamento no tocante a cargos ou empregos públicos. Outros precedentes: ADIN 245 e ADIN 97. Inconstitucionalidade, no que concerne às normas da Lei nº 8.112/90, do inciso III do artigo 8º; das expressões ascensão e acesso no parágrafo único do artigo 10; das expressões acesso e ascensão no § 4º do artigo 13; das expressões ou ascensão e ou ascender no artigo 17; e do inciso IV do artigo 33. Ação conhecida em parte, e nessa parte julgada procedente para declarar a inconstitucionalidade dos incisos e das expressões acima referidos (ADI 837, Relator(a):  Min. MOREIRA ALVES, Tribunal Pleno, julgado em 27/08/1998, DJ 25-06-1999 PP-00002 EMENT VOL-01956-01 PP-00040).

Deve-se registrar, por oportuno, novamente, o posicionamento de HELY LOPES MEIRELLES:

“A criação, transformação e extinção de cargos, empregos e funções públicas do Poder Executivo exige lei de iniciativa privativa do Presidente da República, dos Governadores dos Estados e do Distrito Federal e dos Prefeitos Municipais, conforme seja federal, estadual ou municipal a Administração interessada, abrangendo a Administração direta, autárquica e fundacional (CF, art. 48, X, c/c o art. 61, § 1a, 11, "d"). Com a EC 32/2001, ao Chefe do Executivo compete privativamente dispor sobre a "extinção de funções ou cargos quando vagos" (CF, art. 84, VI, "b"). Assim, não estando vago, a extinção depende de lei, também de sua iniciativa privativa. A privatividade de iniciativa do Executivo toma inconstitucional o projeto oriundo do Legislativo, ainda que sancionado e promulgado pelo Chefe do Executivo, porque as prerrogativas constitucionais são irrenunciáveis por seus titulares. A transformação de cargos, funções ou empregos do Executivo é admissível desde que realizada por lei de sua iniciativa. Pela transformação extinguem-se os cargos anteriores e se criam os novos, que serão providos por concurso ou por simples enquadramento dos servidores já integrantes da Administração, mediante apostila de seus títulos de nomeação. Assim, a investidura nos novos cargos poderá ser originária (para os estranhos ao serviço público) ou derivada (para os servidores que forem enquadrados), desde que preencham os requisitos da lei. Também podem ser transformadas funçoes em cargos, observados o procedimento legal e a investidura originária ou derivada, na forma da lei. Todavia, se a transformação "implicar em alteração do título e das atribuições do cargo, configura novo provimento", que exige o concurso público.” (Direito Administrativo Brasileiro, p. 395,).

Dispensa maiores digressões a afirmação de que a realização de concurso público, para acesso aos cargos, empregos, e funções públicas, é a regra. Ela só admite exceções nas estritas hipóteses previstas na Constituição Federal e Estadual, quais sejam, (a) a nomeação para cargos de provimento em comissão previstos em lei específica de cada ente federativo (nos casos de cargos ou funções de direção, chefia ou assessoramento superior da administração, em que deva prevalecer o vínculo de especial confiança entre o servidor e o agente superior ao qual se vincule), e (b) a contratação temporária, nas hipóteses previstas em lei de cada ente federativo, para atendimento a necessidade temporária de excepcional interesse público (cf. art. 115, incs. II, V e X, da Constituição Paulista; art. 37, incs. I, II e IX, da CR/88).

Diante disso, qualquer dispensa indevida da realização de concurso para fins de ingresso no serviço público, ou mesmo a realização de provimentos a partir de concursos internos, para que servidores ocupem cargos ou empregos situados em carreira distinta, ou finalmente o simples aproveitamento de servidores em cargos ou empregos integrantes de carreira distinta, são atos que significam, na prática, burla à regra do concurso. Traduzem-se, do mesmo modo, em criação de óbice à acessibilidade de todos os cidadãos aos cargos públicos previstos em lei, e, por conseguinte, violação ao princípio da isonomia. Criam, finalmente, possibilidade de favorecimento, com quebra do princípio da impessoalidade.

É oportuno averbar que no STF a matéria é pacífica. Encontra-se sedimentada no verbete nº 685 da súmula da jurisprudência dominante da Corte, com a seguinte dicção:

É inconstitucional toda modalidade de provimento que propicie ao servidor investir-se, sem prévia aprovação em concurso público destinado ao seu provimento, em cargo que não integra a carreira na qual anteriormente investido. (SÚM. 685).

Há diversos precedentes do STF que, sob vários aspectos e em situações diferentes, confirmam que nosso sistema constitucional não transige com a regra do concurso público. Assim, como quando a Corte veda a ascensão e a transferência, que são formas de ingresso em carreira diversa daquela para a qual o servidor público ingressou por concurso (ADI 231, Rel. Min. Moreira Alves, julgamento em 5-8-92, DJ de 13-11-92; ADI 3.582, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgamento em 1º-8-07, DJ de 17-8-07); ou ao proibir o mero enquadramento de prestadores de serviço (ADI 3.434-MC, voto do Min. Joaquim Barbosa, julgamento em 23-8-06, DJ de 28-9-07); ou mesmo ao vedar o enquadramento de servidores que exerçam determinadas funções, em cargos que integram carreira distinta, ainda que com período prévio de reciclagem (ADI 388, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgamento em 20-9-07, DJ de 19-10-07; ADI 3.442, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgamento em 7-11-07, DJ de 7-12-07).

2. CONCLUSÃO E PEDIDO.

Por todo o exposto, evidencia-se a necessidade de reconhecimento da inconstitucionalidade das normas aqui apontadas.

Assim, aguarda-se o recebimento e processamento da presente Ação Declaratória, para que ao final seja julgada procedente, reconhecendo-se a inconstitucionalidade do § 3º do 36 e do §2º do art. 66, todos da Lei Complementar n. 206, de 27 de dezembro de 2006.

Requer-se ainda sejam requisitadas informações à Câmara Municipal e ao Prefeito Municipal, bem como posteriormente citado o Procurador-Geral do Estado para se manifestar sobre o ato normativo impugnado.

Posteriormente, aguarda-se vista para fins de manifestação final.

São Paulo, 22 de fevereiro de 2010.

 

                         José Luiz Abrantes

                         Procurador-Geral de Justiça

                        - em exercício -

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