Excelentíssimo Senhor Doutor Desembargador Presidente do Egrégio
Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo
Ação
direta de inconstitucionalidade. Lei n. 4.102, do Município de Sumaré, de
iniciativa parlamentar, que autoriza o Poder Executivo a criar o Programa de
Preservação do Patrimônio Público e Particular. Atribuição de funções à Guarda
Municipal para preservação do patrimônio público e privado e repressão de
ofensa aos seus respectivos bens, com previsão de multa e pagamento de prêmio
aos denunciantes.
Violação
ao princípio da separação de poderes. Iniciativa legislativa reservada ao Chefe
do Poder Executivo em matéria administrativa. Invasão da competência do Chefe
do Poder Executivo para criar órgãos da Administração Pública e descrever suas
atribuições. Ofensa aos arts. 5º, 24, § 2º, 2, 47, II e XIX, a, e 144, da Constituição do Estado de
São Paulo.
Inadmissibilidade
da Guarda Municipal exercer a proteção de bens particulares. Ofensa aos arts.
144 e 147, da Constituição do Estado de São Paulo.
O Procurador Geral de Justiça, com fundamento nos arts. 74, VI,
e 90, III, da Constituição Estadual, no art. 116, VI, da Lei Complementar
Estadual n. 734/93, e nos arts. 125, § 2º, e 129, IV, da Constituição Federal,
e com base nos elementos de convicção constantes do expediente anexo
(Protocolado n. 37.772/08), vem promover a presente AÇÃO DIRETA DE
INCONSTITUCIONALIDADE em face da Lei n. 4.102, de 09 de dezembro de 2005, do
Município de Sumaré, pelos motivos a seguir expostos:
1. A Lei n. 4.102, de 09 de dezembro de
2005, do Município de Sumaré, de iniciativa parlamentar, autoriza o Poder
Executivo a criar o Programa de Preservação do Patrimônio Público e Particular.
Eis o teor da íntegra da referida lei:
“Art. 1º. Fica autorizado o
Poder Executivo a criar o Programa de Preservação do Patrimônio Público e
Particular, objetivando a preservação de imóveis públicos e particulares e a repressão aos
pichadores e depredadores pela Guarda Municipal.
§ 1º. Fica elencada, dentre as funções da Guarda Municipal de Sumaré, a
repreensão a pichadores de Patrimônios Públicos e Particulares no âmbito do
município de Sumaré/SP.
§ 2º. A Guarda Municipal, nas hipóteses de prisão ou apreensão de
pichadores ou depredadores, efetuará o encaminhamento a autoridade policial
competente para que sejam tomadas as medidas previstas em lei.
§ 3º. Paralelamente ao disposto no parágrafo anterior, Guarda Municipal deverá fazer o registro
formal da ocorrência, para manutenção de seus cadastros.
Art. 2º. Fica assegurado ao Poder Público e aos proprietários ou
possuidores de imóveis, mediante solicitação por escrito, a obtenção dos dados
pessoais do pichador ou depredador flagrado, bem como cópia do registro da
ocorrência, para que, querendo promova a ação civil ou penal que entenda
cabível.
Art. 3º. Nos casos de apreensão de menores infratores – menores de 18
(dezoito) anos – deverá a Guarda Municipal, fazer constar, no registro de
ocorrência, seus dados pessoais, bem como dos pais ou representantes legais
para os efeitos do Artigo 2º desta lei.
Art. 4º. As pessoas que forem flagradas pichando imóveis do patrimônio
histórico, monumentos, bancos de praças, viadutos ou propriedades privadas, sem
autorização ficarão sujeitos a multa equivalente a 04 (quatro) salários
mínimos, sem prejuízo do disposto no artigo 2º.
Parágrafo único. Se o infrator for pessoa menor de 18 (dezoito) anos de
idade, a responsabilidade pelo pagamento da multa prevista no caput deste
artigo será dos pais ou representantes legais.
Art. 5º. Poderá ser utilizado o ‘disque denúncia’, dentro das normas de
segurança vigentes para o recebimento de informações que possam auxiliar nas
investigações destinadas a repreensão a pichadores ou depredadores, casos em
que deverão ser acionadas as autoridades competentes.
Art. 6º. Fica o Poder Executivo autorizado a pagar prêmio, estabelecido
por decreto, para pagamento de recompensa a quem fornecer informações dos
infratores, em ação, através do 0800 da Guarda Municipal, assegurando sigilo de
identidade dos denunciantes.
Art. 7º. A Secretaria competente da Prefeitura de Sumaré promoverá
campanhas educativas e de divulgação dos dispositivos desta lei, nas escolas do
Município, bem como, nos meios de comunicação que julgar conveniente, com
vistas a efetivar a participação de adolescentes e jovens em palestras e
seminários voltados à conscientização da conservação e preservação do
Patrimônio Público e da Cidadania.
Art. 8º. As despesas com a presente Lei, correrão por conta das dotações
orçamentárias próprias, suplementadas se necessário, tendo como fonte de
custeio o fundo municipal criado com a cobrança das multas, e de recursos
municipais.
Art. 9º. O Poder Executivo regulamentará a presente Lei, dispondo das
medidas necessárias à implantação inicial do Conselho de Preservação de Bens
Públicos e Particulares.
Art. 10. Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação”.
2. A lei local, como visto, atribui a
órgão do Poder Executivo – a Guarda Municipal – atribuições relacionadas à
preservação do patrimônio público e particular da ação danosa de terceiros, em
especial, sua repressão, e prevê multa para quem danificar bens públicos ou
privados, prêmio para os denunciantes desses atos ilícitos e comete ao Poder
Executivo também a tarefa de divulgação de política pública dirigida à
preservação do patrimônio público e particular.
3. Não obstante a válida preocupação
constante da mens legislatoris, a lei
local ostenta vício de inconstitucionalidade na medida em que agride os arts.
5º, 24, § 2º, 2, 47, II e XIX, 144 e 147, da Constituição do Estado de São
Paulo.
4. Postulado básico da organização do
Estado é o princípio da separação dos poderes, constante do art. 5º da
Constituição do Estado de São Paulo, norma de observância obrigatória nos
Municípios conforme estabelece o art. 144 da mesma Carta Estadual, e que assim
dispõe:
“Artigo 5º. São Poderes do Estado,
independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o
Judiciário”.
5. Este dispositivo é tradicional pedra fundamental do Estado
de Direito assentado na idéia de que as funções estatais são divididas e
entregues a órgãos ou poderes que as exercem com independência e harmonia,
vedando interferências indevidas de um sobre o outro. Todavia, o exercício
dessas atribuições nem sempre é fragmentado e estanque, pois, observa a doutrina
que:
“O princípio da separação dos poderes (ou
divisão, ou distribuição, conforme a terminologia adotada) significa, portanto,
entrosamento, coordenação, colaboração, desempenho harmônico e independente das
respectivas funções, e ainda que cada órgão (poder), ao lado de suas funções
principais, correspondentes à sua natureza, em caráter secundário colabora com
os demais órgãos de diferente natureza, ou pratica certos atos que,
teoricamente, não pertenceriam à sua esfera de competência” (J. H. Meirelles Teixeira.
Curso de Direito Constitucional, Rio
de Janeiro: Forense Universitária, 1991, p. 585).
6. Como conseqüência do princípio da separação dos poderes, a
Constituição Estadual, perfilhando as diretrizes da Constituição Federal,
comete a um Poder competências próprias, insuscetíveis de invasão por outro.
Assim, ao Poder Executivo são outorgadas atribuições típicas da função
administrativa, como, por exemplo, dispor sobre a sua organização e seu
funcionamento. Em essência, a separação ou divisão de poderes:
“consiste um confiar cada uma das funções
governamentais (legislativa, executiva e jurisdicional) a órgãos diferentes
(...) A divisão de Poderes fundamenta-se, pois, em dois elementos: (a)
especialização funcional, significando que cada órgão é especializado no
exercício de uma função (...); (b) independência orgânica, significando que,
além da especialização funcional, é necessário que cada órgão seja efetivamente
independente dos outros, o que postula ausência de meios de subordinação” (José
Afonso da Silva. Comentário contextual à
Constituição, São Paulo: Malheiros, 2006, 2ª ed., p. 44).
7. Também por decorrência do citado princípio da separação de
poderes, e à vista dos mecanismos de controle recíprocos de um sobre o outro
para evitar abusos e disfunções, a Constituição Estadual cuidou de precisar a
participação do Poder Executivo no processo legislativo. Como observa a
doutrina:
“É a esse arranjo, mediante o qual, pela
distribuição de competências, pela participação parcial de certos órgãos estatais
controlam-se e limitam-se reciprocamente, que os ingleses denominavam, já
anteriormente a Montesquieu, sistema de ‘freios recíprocos’, ‘controles
recíprocos’, ‘reservas’, ‘freios e contrapesos’ (checks and controls, checks and balances), tudo isso visando um
verdadeiro ‘equilíbrio dos poderes’ (equilibrium
of powers).
(...)
A distribuição das funções entre os órgãos
do Estado (poderes), isto é, a determinação das competências, constitui tarefa
do Poder Constituinte, através da Constituição. Donde se conclui que as
exceções ao princípio da separação, isto é, todas aquelas participações de cada
poder, a título secundário, em funções que teórica e normalmente competiriam a
outro poder, só serão admissíveis quando a Constituição as estabeleça, e nos
termos em que fizer. Não é lícito à lei ordinária, nem ao juiz, nem ao
intérprete, criarem novas exceções, novas participações secundárias, violadoras
do princípio geral de que a cada categoria de órgãos compete aquelas funções
correspondentes à sua natureza específica” (J. H. Meirelles Teixeira. Curso de Direito Constitucional, Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 1991, pp. 581, 592-593).
8. Assim, se em princípio a competência normativa é do domínio
do Poder Legislativo, certas matérias por tangenciarem assuntos de natureza
eminentemente administrativa e, concomitantemente, direitos de terceiros ou o
próprio exercício dos poderes estatais, são reservadas à iniciativa legislativa
do Poder Executivo.
9. Neste sentido, a Constituição Estadual estabelece que:
“Art.
(...)
§ 2º - Compete,
exclusivamente, ao Governador do Estado a iniciativa das leis que disponham
sobre:
(...)
2 – criação e extinção das Secretarias de
Estado e órgãos da administração pública, observado o disposto no art. 47, XIX;
(...)
Art. 47 - Compete privativamente
ao Governador, além de outras atribuições previstas nesta Constituição:
(...)
II - exercer, com o auxílio dos Secretários
de Estado, a direção superior da administração estadual;
(...)
XIX – dispor, mediante decreto, sobre:
a) organização e funcionamento da
administração estadual, quando não implicar aumento de despesa, nem criação ou
extinção de órgãos públicos”.
10. Esse desenho normativo de status
constitucional – aplicável aos Municípios por obra do art. 144 da Constituição
Estadual - permite assentar as seguintes conclusões: a) a iniciativa
legislativa não é ampla nem livre, só podendo ser exercida por sujeito a quem a
Constituição entregou uma determinada competência; b) ao Chefe do Poder
Executivo a Constituição prescreve iniciativa legislativa reservada em matérias
inerentes à Administração Pública; c) há matérias administrativas que, todavia,
escapam à dimensão do princípio da legalidade consistente na reserva de lei em
virtude do estabelecimento de reserva de norma do Poder Executivo. A propósito,
frisa Hely Lopes Meirelles a linha divisória da iniciativa legislativa:
“Leis de iniciativa da Câmara ou, mais
propriamente, de seus vereadores são todas as que a lei orgânica municipal não
reserva, expressa e privativamente à iniciativa do prefeito. As leis orgânicas
municipais devem reproduzir, dentre as matérias previstas nos arts. 61, § 1º, e
165 da CF, as que se inserem no âmbito da competência municipal” (Direito
Municipal Brasileiro, São Paulo: Malheiros, 1997, 9ª ed., p. 431).
11. Reproduzindo o art. 144, § 8º, da Constituição Federal, a
Constituição do Estado de São Paulo prescreve no art. 147 regra – igualmente
aplicável no âmbito municipal (art. 144, Constituição Estadual) – dispondo que:
“Art. 147. Os
Municípios poderão, por meio de lei municipal, constituir guarda municipal,
destinada à proteção de seus bens, serviços e instalações, obedecidos os
preceitos da lei federal”.
12. Ora, o contraste da lei local com esses dispositivos da
Constituição Estadual exibe sua inconstitucionalidade.
13. O Poder Legislativo, mediante lei de iniciativa parlamentar,
usurpou, de um lado, a iniciativa legislativa reservada do Chefe do Poder
Executivo para deflagrar o processo legislativo disciplinando atribuições de
órgão da Administração Pública (Guarda Municipal) – com previsão de funções
novas, de sanções e obrigações pecuniárias – violando os art. 5º e 24, § 2º, 2,
da Constituição do Estado (aplicáveis ao Município por força de seu art. 144),
e de outro, por invadir esfera privativa de atribuição do Chefe do Poder
Executivo consistente na disciplina da organização administrativa por meio de
decreto, ferindo os arts. 5º e 47, II e XIX, a, da Constituição Bandeirante (aplicáveis ao Município por força
de seu art. 144).
14. Neste sentido, e tendo em conta que as disposições da
Constituição Paulista reproduzem os arts. 61, § 1º, II, e, e 84, VI, a, da
Constituição Federal, colhe-se da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal a
conclusão de inconstitucionalidade em caso similar:
“AÇÃO DIRETA DE
INCONSTITUCIONALIDADE. LEI N. 10.238/94 DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL.
INSTITUIÇÃO DO PROGRAMA ESTADUAL DE ILUMINAÇÃO PÚBLICA, DESTINADO AOS
MUNICÍPIOS. CRIAÇÃO DE UM CONSELHO PARA ADMIUNISTRAR O PROGRAMA. LEI DE
INICIATIVA PARLAMENTAR. VIOLAÇÃO DO ARTIGO 61, § 1º, INCISO II, ALÍNEA ‘E’, DA
CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. 1. Vício de iniciativa, vez que o projeto de lei foi
apresentado por um parlamentar, embora trate de matéria típica de
Administração. 2. O texto normativo criou novo órgão na Administração Pública
estadual, o Conselho de Administração, composto, entre outros, por dois
Secretários de Estado, além de acarretar ônus para o Estado-membro. Afronta ao
disposto no artigo 61, § 1º, inciso II, alínea ‘e’ da Constituição do Brasil. 3.
O texto normativo, ao cercear a iniciativa para a elaboração da lei
orçamentária, colide com o disposto no artigo 165, inciso III, da Constituição
de 1988.
14. Mas, a inconstitucionalidade da lei municipal enfocada não se
resume ao aspecto formal. Também no aspecto material a lei local divorcia da
Constituição Estadual, em especial seu art. 147 (aplicável ao Município por
obra de seu art. 144), que reproduz o § 8º do art. 144 da Constituição
Brasileira.
15. Com efeito, ao prever a lei local que a Guarda Municipal terá
por função também a proteção e a preservação do patrimônio particular, com a
prerrogativa de lançamento de multa inclusive, denota-se francamente sua
inconstitucionalidade na medida em que o art. 147 da Constituição Paulista
circunscreve a atuação da Guarda Municipal à proteção de bens, serviços e instalações do Município. Destarte, o
excesso revelador da inconstitucionalidade é exibido, no ponto, nas expressões
constantes do art. 1º, caput, e § 1º,
e do art. 4º, referentes ao patrimônio particular ou privado.
16. As guardas municipais não podem assumir funções típicas da
polícia preventiva ou repressiva reservadas no desenho normativo constitucional
às Polícias Civil e Militar da União e dos Estados (art. 144, Constituição
Federal; arts.
“Resta ao gestor das coisas municipais,
laborar no sentido de atuar nesta área de segurança pública porém,
submetendo-se à limitação constitucional, onde poderá haver atuação municipal
apenas na proteção dos bens, serviços e instalações da própria Municipalidade.
(...)
Fica restrita a atuação destas Guardas
Municipais a prédios públicos, instalações, equipamentos, mesmo de pessoas que
estejam prestando serviços públicos nos logradouros de grande fluxo de pessoas
como as praias, jardins, praças entre outros locais” (Reinaldo Moreira Bruno. Guarda Municipal, Belo Horizonte: Del
Rey, 2004, pp. 46-47).
17. Portanto,
a lei local impugnada nesta sede viola frontalmente os arts. 5º, 24, § 2º, 2
47, II e XIX, a, 144, e 147, da
Constituição Estadual.
18. Face ao exposto,
requer:
a) seja
determinado o processamento do feito, observando as prescrições legais e
regulamentares;
b) sejam colhidas
as informações necessárias dos Excelentíssimos Senhores Prefeito e Presidente
da Câmara Municipal de Sumaré, sobre as quais protesta por manifestação
oportuna;
c) seja ouvido o
douto Procurador-Geral do Estado, nos termos do art. 90, § 2º, da Constituição
Estadual;
d) seja julgada
procedente a presente ação, declarando-se a inconstitucionalidade integral da Lei
n. 4.132, de 09 de dezembro de 2005, do Município de Sumaré, ou das expressões
referentes ao patrimônio particular ou privado, constantes de seus arts. 1º, caput, e § 1º, e 4º, promovendo-se a
comunicação prevista no art. 90, § 3º, da Constituição Estadual.
19. Requer, ainda, tendo em vista a forte
plausibilidade do direito alegado e o perigo de demora, a concessão de liminar inaudita altera parte, até final e
definitiva decisão, para suspensão da eficácia da lei impugnada que viola
flagrantemente o ordenamento jurídico positivo, considerando a contundente perturbação
no cenário da separação de poderes com implicações financeiras e orçamentárias
e o evidente desvio de atribuições constitucionais da guarda municipal, cujas
conseqüências poderão ser perniciosas para a sociedade e para o regular
funcionamento dos serviços públicos e das finanças públicas.
Termos
em que, pede deferimento.
São
Paulo, 03 de junho de 2008.
Fernando Grella Vieira
Procurador-Geral
de Justiça