Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente do
Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.
Protocolado nº.
39.098/2008
Assunto :
Inconstitucionalidade da Lei nº 4.420, de 17 de abril de 1998 e da Lei 4.490,
de 17 de agosto de 1998, ambas de Marília, modificada pelas Leis nºs. 4.747, de
29 de outubro de 1999 e 4.767, de 23 de novembro de 1999.
Ementa: 1)
Ação direta de inconstitucionalidade. Lei Municipal que institui e
regulamenta o serviço de “moto-táxi”. 2) Competência da União para instituir
diretrizes sobre transportes urbanos e para legislar sobre trânsito e
transporte (art.21 XX e 22 XI da CF/88). 3) Confronto com competência do
Município para tratar, por lei, de assuntos de interesse local, para suplementar
no que couber a legislação dos demais entes federativos, e para tratar de
transportes coletivos (art.30 I, II e V CF/88). 4) Interpretação dos
dispositivos constitucionais à luz do princípio da predominância do
interesse, que inspirou a solução constitucional. 5) Diploma que, mais que não
observar dispositivos da Constituição Federal, desrespeita o princípio da
repartição constitucional de competências (e por isso o próprio princípio federativo),
aplicável aos Municípios por força do art.144 da Constituição Estadual. 6) Inconstitucionalidade reconhecida. |
O Procurador-Geral
de Justiça, no exercício da atribuição prevista no art.116, inciso VI
da Lei Complementar Estadual nº 734, de 26 de novembro de 1993 (Lei Orgânica do
Ministério Público de São Paulo), e ainda em conformidade com o disposto no
art.125, § 2º, e 129, inciso IV da Constituição Federal, e ainda art.74, inciso
VI e art. 90, inciso III da Constituição do Estado de São Paulo, com amparo nas
informações colhidas no incluso protocolado (PGJ nº 39.098/2008), vem,
respeitosamente, perante esse Egrégio Tribunal de Justiça, promover a presente AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE
da Lei nº 4.420, de 17 de abril de 1998 e da Lei 4.490, de 17 de agosto de 1998,
do Município de Marília, esta última modificada pelas Leis nºs. 4.747/99 e
4.767/99, pelos fundamentos a seguir expostos.
1) Do ato
normativo impugnado.
A presente propositura decorre do acolhimento de
representação enviada à Procuradoria-Geral de Justiça pelo D. Promotor de
Justiça da Cidadania de Marília, que, ao examinar o Inquérito Civil nº 16/06,
identificou inconstitucionalidade das normas mencionadas.
Os textos
legais na íntegra estão juntados a esta petição inicial, tendo em conta sua
extensão, desaconselhando a reprodução nesta petição. Podemos resumir afirmando
que a Lei nº 4.420, de 17 de abril de
1998, cria o serviço de moto-taxi no
Município de Marília (art. 1º), sendo certo que a Lei nº 4.490, de 17 de agosto de 1998, do Município de Marília, como
anota a respectiva ementa, “Disciplina o
serviço de moto-táxi no Município de Marília e dá outras providências”. Já
as Leis nº 4.747/99 e 4.767/99
limitam-se a modificar parcialmente a Lei nº 4.490/98. É certo que todas elas
tratam de matéria relativa a trânsito e transporte, aí residindo o cerne da
questão.
2) Violação ao princípio da repartição constitucional
de competências.
Quando
o legislador municipal edita ato normativo que tangencia a competência do
legislador federal, não se tem pura e simplesmente por violada uma norma
contida na Constituição Federal, mas sim, de modo patente e direto, um
princípio constitucional latente na Lei Maior, qual seja, o princípio da
repartição constitucional de competências. Este decorre do pacto federativo
assentado na Constituição de 1988, extraível dos art.1º e 18 da Lei Maior, bem
como de outros dispositivos constitucionais que indicam as matérias atribuídas
às competências administrativas e legislativas de cada ente da Federação.
É
assente na doutrina que a competência legislativa, em nosso sistema
constitucional, é definida pelo critério da predominância do interesse.
É a clássica
lição de José Afonso da Silva, para quem “o
princípio geral que norteia a repartição de competência entre as entidades
componentes do Estado Federal é o da predominância do interesse, segundo o qual
à União caberão aquelas matérias e questões de predominante interesse geral,
nacional, ao passo que aos Estados tocarão as matérias e assuntos de
predominante interesse regional, e aos Municípios concernem os assuntos de
interesse local (...).”[1]
Note-se,
a propósito, que não se trata de invocar norma da Constituição Federal como
parâmetro para o controle da constitucionalidade de lei municipal pelo E.
Tribunal de Justiça. Isso, de fato, não seria possível, pois significaria usurpação
da competência do E. STF.
Entretanto,
a repartição constitucional de competências é princípio estabelecido pela CF/88
(art.1º e 18), pois reflete um dos aspectos mais relevantes do pacto
federativo, ao definir os limites da autonomia dos entes que integram a Federação
brasileira. Isso decorre claramente da interpretação sistemática da Constituição
Federal.
Daí que,
violando-se um princípio constitucional (pacto federativo – repartição
constitucional de competências), o que se tem é a ofensa ao art.144 da Constituição
Paulista.
Relevante
notar que em decisão recente, quando do julgamento da ADI 130.227.0/0-00 em 21.08.07, rel. Des. RENATO NALINI, esse E. Tribunal de Justiça acolheu a tese acima
aventada (possibilidade de declaração de inconstitucionalidade de lei municipal
por violação do princípio da repartição de competências estabelecido pela
Constituição Federal), sendo relevante trazer excerto de voto do i. Des. WALTER
GUILHERME, importante para a elucidação da questão:
“(...) Ora, um
dos princípios da Constituição Federal – e de capital importância – é o
princípio federativo, que se expressa, no Título I, denominado ‘Dos Princípios
Fundamentais’, logo no art.1º: ‘A República Federativa do Brasil, formada pela
união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se
Sendo a
organização federativa do Estado brasileiro um princípio fundamental da
República do Brasil, e constituindo elemento essencial dessa forma de estado a
distribuição de competência legislativa dos entes federados, inescapável a
conclusão de ser essa discriminação de competência um princípio estabelecido na
Constituição Federal.
Assim,
quando o referido art.144 ordena que os Municípios, ao se organizarem, devem
atender os princípios da Constituição Federal, fica claro que se estes editam
lei municipal fora dos parâmetros de sua competência legislativa, invadindo a
esfera de competência legislativa da união, não estão obedecendo ao princípio
federativo, e, pois, afrontando estão o art.144 da Constituição do Estado
(...)” (trecho do voto do i. des.
Walter de Almeida Guilherme, no julgamento da ADI 130.227.0/0-00).
No
caso ora em exame, o legislador municipal, de fato, legislou sobre trânsito e
transporte, matéria cuja competência legislativa é privativa da União, nos
termos do art. 22, inc. XI da CF/88, sendo oportuno lembrar, ademais, que
também o art. 21, inc. XX da CF/88 prevê a competência exclusiva da União para
instituir diretrizes relacionadas ao transporte urbano.
Com a devida
venia a entendimento diverso, não é
apropriada a argumentação no sentido de que, na hipótese, o legislador
municipal teria simplesmente, e de forma legítima, regulado uma modalidade de
transporte coletivo, com fundamento na competência prevista no art. 30, inc. V
da CF/88, que assegura aos Municípios a possibilidade de “organizar e prestar, diretamente ou sob o regime de concessão ou
permissão, os serviços públicos de interesse local, incluído o de transporte
coletivo, que tem caráter essencial”.
Tal
competência municipal deve ser compreendida dentro da perspectiva de
predominância de interesse, elemento central na repartição constitucional de
competências. Em outras palavras, é correto concluir que determinada matéria
pode, de fato, ser alvo, concomitantemente, de legislação federal e municipal,
mas desde que nesta última sejam abordados aspectos essencialmente locais.
No caso em
exame, é possível afirmar que estão inseridos na competência privativa do
legislador federal para regular a matéria atinente a trânsito e transporte, v.g.: (a) a existência de determinada
modalidade de transporte (como o de “moto-táxi”); (b) as condições mínimas de
segurança do equipamento a ser utilizado; (c) a configuração básica dos
veículos utilizados em tal modalidade; (d) a qualificação específica mínima a
ser exigida dos condutores; entre outros.
De
outro lado, estaria presente a competência do legislador municipal para, v.g.: (a) regular aspectos essencialmente
locais relacionados ao cadastro dos profissionais da referida categoria junto à
Municipalidade; (b) tratar da concessão da licença (alvará) municipal para
exercício da atividade; (c) padronizar a identificação dos veículos (cores);
entre outros.
Nesse
sentido, Hely Lopes Meirelles averba que “o
trânsito e o tráfego são daquelas matérias que admitem a tríplice
regulamentação – federal, estadual e municipal – conforme a natureza e âmbito
do assunto a prover. (...) Os meios de circulação e transporte interessam a
todo o país, e por isso mesmo a Constituição da República reservou para a União
a atribuição privativa de legislar sobre trânsito e transporte (art.22 XI),
permitindo que os Estados-membros legislem supletivamente a respeito da
matéria, nos termos de lei complementar pertinente. (...) De um modo geral, pode-se
dizer que cabe à União legislar sobre os assuntos nacionais de trânsito e
transporte, ao Estado-membro compete regular e prover os aspectos regionais e a
circulação intermunicipal em seu território, e ao Município cabe a ordenação do
trânsito urbano, que é de seu interesse local (CF, art.30 I e V).”[2]
Ora, para
confirmar o raciocínio acima, basta observar que a União, cumprindo a
competência privativa que lhe foi constitucionalmente reservada, editou o
Código Brasileiro de Trânsito (Lei 9.503/97), fixando expressamente as matérias
da alçada do Município (art. 24, com vinte e um incisos). Destas não é viável
extrair, nem mesmo indiretamente, a possibilidade de regulamentar, da forma
como ocorreu no caso em exame, a questão do transporte de passageiros através
do serviço de “moto-táxi”.
Aliás,
o silêncio do legislador federal, na hipótese, foi eloqüente. Não deve ser
compreendido como autorização, implícita, para que o legislador municipal
regule modalidade de transporte coletivo não prevista na lei federal. Ao
contrário, deve ser compreendida como impossibilidade de criação de nova
modalidade de transporte coletivo não prevista no diploma geral.
Ademais, é
intuitivo que uma nova modalidade de transporte coletivo desperte a necessidade
de tratamento uniforme em todo o território nacional. Isso seria suficiente
para concluir que eventual regulamentação do serviço de transporte de
passageiros em “moto-táxi” teria que advir de lei federal.
Não se
desconhece que esse E. Tribunal de Justiça tem se posicionado no sentido da
constitucionalidade de leis municipais que tratam do tema. Tal foi a conclusão
extraída do sistema constitucional quando do julgamento da ADI 128.925-0/5-00,
em 28.03.2007, rel. Des. RUY CAMILO, nos termos da ementa a
seguir transcrita:
“AÇÃO DIRETA
DE INCONSTITUCIONALIDADE. Serviço de 'moto-táxi’ instituído pelo Município de
São João da Boa Vista - Matéria que se insere na competência do Município - Lei
constitucional - Inocorrência de afronta aos arts. 111, 117 e 144 da Carta
Bandeirante - ação improcedente.”
No
julgado acima referido foi salientado que: (a) não se confunde a competência
privativa da União para legislar sobre trânsito e transporte (art. 22, inc. XI
da CF/88) e a competência exclusiva dos Municípios para legislar sobre
transportes coletivos em seu território (art.30, inc. V da CF/88); e (b)
conseqüentemente não há conflito entre a posição que vem sendo adotada por esse
C. Órgão Especial e outros julgados do E. STF sobre a mesma matéria.
Com a devida
venia, entretanto, parece-nos que tal
entendimento não é apropriado, pois, como visto, embora tenha o Município
competência para legislar sobre transportes coletivos, esta é adstrita a
aspectos do tema exclusivamente relacionados ao interesse local, pois em
perspectiva geral, que revela interesse nacional, torna-se incontornável a
invocação da competência do legislador federal.
Todas as
regras constitucionais que tratam da questão da repartição de competências na
Federação brasileira não podem ser lidas sem a sua compreensão sistemática e
finalista, ou seja, tendo como pano de fundo a idéia de que o princípio que
inspira a Lei Maior, no particular, é o da predominância do interesse. Esse é o
motivo pelo qual o Pretório Excelso tem afirmado, reiteradamente, que são inconstitucionais
leis estaduais que regulam aspectos de ordem geral associados à temática de
transportes coletivos. A propósito, confira-se:
"Ação
direta de inconstitucionalidade. L. Distrital 3.787, de 02 de fevereiro de
2006, que cria, no âmbito do Distrito Federal, o sistema de moto-service —
transporte remunerado de passageiros com uso de motocicletas:
inconstitucionalidade declarada por usurpação da competência privativa da União
para legislar sobre trânsito e transporte (CF, art. 22, XI). Precedentes: ADIn
2.606, Pl., Maurício Corrêa, DJ 7-2-03; ADIn 3.136, 1º-8-06, Lewandowski; ADIn
3.135, 1º-8-06, Gilmar." (ADI 3.679, Rel. Min. Sepúlveda Pertence,
julgamento em 18-6-07, DJ de 3-8-07)
“Lei do
Estado do Pará. Serviço de transporte individual de passageiros prestado por
meio de ciclomotores, motonetas e motocicletas. Competência privativa da União
para legislar sobre trânsito e transporte (art. 22, XI, CF). Precedentes (ADI
2.606/SC).” (ADI 3.135, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgamento em 1º-8-06, DJ de
8-9-06). No mesmo sentido: ADI 3.136, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, julgamento
em 1º-8-06, DJ de 10-11-06.
E assim,
mais que violar dispositivos da Constituição Federal, a lei em exame
transgrediu o próprio princípio da repartição constitucional de competências,
aplicável ao caso por força do art.144 da Constituição do Estado.
Entendimento
diverso, com a devida venia, significa
contrariar o disposto no art. 21, inc. XX, art. 22, inc. XI, e art. 30, incs. I, II e V, todos da Constituição
Federal, conferindo-lhes sentido diverso daquele que verdadeiramente ostentam,
redundando em afronta direta ao já mencionado art. 144 da Constituição
Bandeirante.
4) Da liminar
Estão
presentes, na hipótese examinada, os pressupostos do fumus bonis iuris e do periculum
in mora, a justificar a suspensão liminar da vigência e eficácia do ato
normativo impugnado.
A razoável
fundamentação jurídica decorre dos motivos expostos anteriormente, que indicam,
de forma clara, que a Lei impugnada na presente ação padece de vício de inconstitucionalidade.
O perigo da
demora decorre especialmente da idéia de que, sem a imediata suspensão da
vigência e eficácia do ato normativo questionado, o povo mariliense estará
sujeito a modalidade de transporte coletivo regulamentado por lei inconstitucional
e sem nenhuma segurança, como revela os vários depoimentos juntados aos autos.
Eventuais acidentes, comuns com essa espécie de veículo automotor, poderá
ensejar a busca por indenizações junto ao Erário Público, dado sua
inconstitucional atuação, não só deixando de coibir, mas sobretudo
regulamentando em lei a modalidade de transporte em nítida invasão de
competência.
A idéia do
fato consumado, com repercussão concreta, guarda relevância para a apreciação
da necessidade da concessão da liminar na ação direta de inconstitucionalidade.
Note-se que, com a procedência da ação, pelas razões declinadas, não será possível
restabelecer o status quo ante. Assim,
a imediata suspensão da eficácia da Lei questionada, cuja inconstitucionalidade
é palpável, evitará maiores prejuízos ao Município e ao povo mariliense, além
daqueles que já sofreu até o momento.
De
resto, ainda que não houvesse essa singular situação de risco, restaria, ao
menos, a excepcional conveniência da medida. Com efeito, no contexto das ações
diretas e da outorga de provimentos cautelares para defesa da Constituição, o
juízo de conveniência é um critério relevante, que vem condicionando os
pronunciamentos mais recentes do Supremo Tribunal Federal, preordenados à
suspensão liminar de leis aparentemente inconstitucionais (cf. ADIN-MC 125, j.
15.2.90, DJU de 4.5.90, p. 3.693, rel. Min. Celso de Mello; ADIN-MC 568, RTJ
138/64; ADIN-MC 493, RTJ 142/52; ADIN-MC 540, DJU de 25.9.92, p. 16.182).
Diante do
exposto, requer-se a concessão da liminar, para fins de suspensão imediata da eficácia dos atos normativos impugnados, ou
seja, Lei nº 4.420, de 17 de abril de 1998 e da Lei 4.490, de 17 de agosto de
1998, ambas de Marília, esta última modificada pelas Leis nºs. 4.747/99 e
4.767/99, até o julgamento final da presente ação.
5) Conclusão e pedido.
Por todo o
exposto, evidencia-se a necessidade de reconhecimento da inconstitucionalidade
do diploma legal aqui apontado.
Assim,
aguarda-se o recebimento e processamento da presente ação, para que ao final
seja julgado procedente o pedido com declaração da inconstitucionalidade Lei nº
4.420, de 17 de abril de 1998 e da Lei 4.490, de 17 de agosto de 1998, ambas de
Marília, esta última modificada pelas Leis nºs. 4.747, de 29 de outubro de 1999
e 4.767, de 23 de novembro de 1999.
Requer-se
ainda sejam requisitadas informações à Câmara Municipal de Marília e do
Prefeito Municipal de Marília, bem como citado o Procurador-Geral do Estado,
para manifestar-se sobre o ato normativo impugnado.
Posteriormente,
aguarda-se vista para fins de manifestação final.
São Paulo, 9 de maio de 2008.
FERNANDO GRELLA VIEIRA
PROCURADOR-GERAL DE JUSTIÇA