Excelentíssimo
Senhor Doutor Desembargador Presidente do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado
de São Paulo
Protocolado nº 39.283/08
Assunto: Inconstitucionalidade da expressão “e locação de imóveis para uso dos Delegados de Polícia Civil, Comandante da Base Comunitária de Segurança e do Juiz de Direito e Promotor Público da Vara Distrital de Ilhabela” constante do art. 2º da Lei nº 90, de 30 de janeiro de 1992, do Município de Ilhabela.
Ementa: Ação direta de inconstitucionalidade. Lei nº 90, de 30 de janeiro de 2002, do Município de Ilhabela. Previsão de custeio de locação de imóveis para uso de Delegados de Polícia, Comandante da Base Comunitária de Segurança, Juiz de Direito e Promotor de Justiça da Vara Distrital de Ilhabela. 1. Criação de despesa pública não incluída na lei orçamentária anual, sem indicação de sua fonte de custeio. 2. Comprometimento dos princípios da moralidade, da impessoalidade, da razoabilidade e do interesse público. 3. Emendas parlamentares que incluíram no projeto original de iniciativa do Chefe do Poder Executivo o custeio das locações de Magistrado e de membro do Ministério Público. Ausência de indicação dos recursos necessários e de anulação da proposta. Ofensa à reserva de iniciativa. Violação dos arts. 5º, 25, 111, 175, § 1º, 2, e 176, I, da Constituição Estadual.
O Procurador-Geral de Justiça do Estado de São Paulo, no exercício da atribuição prevista no art. 116, VI da Lei Complementar Estadual n. 734, de 26 de novembro de 1993 (Lei Orgânica do Ministério Público de São Paulo), em conformidade com o disposto no art.125, § 2º, e art. 129, IV, da Constituição Federal, e ainda art. 74, VI, e art. 90, III, da Constituição do Estado de São Paulo, com amparo nas informações colhidas no incluso protocolado, vem, respeitosamente, perante esse Egrégio Tribunal de Justiça, promover a presente AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE do art. 2º da Lei n. 90, de 30 de janeiro de 2002, do Município de Ilhabela, pelos fundamentos a seguir expostos:
I – Os Atos Normativos
Impugnados
1. A Lei n. 90, de 30 de janeiro de 2002, assim dispõe:
“Art. 1º. Fica o Poder Executivo autorizado a custear despesas com a Segurança Pública, através dos Órgãos Oficiais existentes no Município, no valor estimado de até R$ 190.000,00 (cento e noventa mil reais) por ano.
Parágrafo único. O Executivo deverá prestar contas, trimestralmente, dos gastos citados no ‘caput’ do presente artigo.
Art. 2º. As despesas a que se refere o artigo anterior destinam-se aos pagamentos de hospedagem, alimentação, serviço de quarto, lavanderia aos policiais militares designados para o reforço policial do Município, durante o período de temporada de verão, além de material de consumo e locação de imóveis para uso dos Delegados de Polícia Civil, Comandante da Base Comunitária de Segurança e do Juiz de Direito e Promotor Público da Vara Distrital de Ilhabela.
Art. 3º. As despesas decorrentes da presente Lei correrão por conta das verbas próprias constantes do orçamento vigente, as quais, se necessário, serão suplementadas, mediante autorização Legislativa.
Art. 4º. Esta lei entra em vigor na data de sua publicação, retroagindo seus efeitos a 01 de janeiro de 2002.
Art. 5º. Revogam-se as disposições contrárias” (fls. 13/15, 175).
2. A lei em foco resulta de projeto de iniciativa do Chefe do Poder Executivo, cujo texto assim expressava:
“Art. 1º. Fica o Poder Executivo autorizado a custear despesas com a Segurança Pública, através dos Órgãos Oficiais existentes no Município.
Art. 2º. As despesas a que se refere o artigo anterior destinam-se aos pagamentos de hospedagem, alimentação, serviço de quarto, lavanderia aos policiais militares designados para o reforço policial do Município, durante o período de temporada de verão, além de material de consumo e locação de imóveis para uso dos Delegados de Polícia Civil e Comandante da Base Comunitária de Segurança.
Art. 3º. As despesas decorrentes da presente Lei correrão por conta das verbas próprias constantes do orçamento vigente, as quais, se necessário, serão suplementadas.
Art. 4º. Esta lei entra em vigor na data de sua publicação, retroagindo seus efeitos a 01 de janeiro de 2002.
Art. 5º. Revogam-se as disposições contrárias” (fls. 160/164).
3. Em seu processo legislativo, o Chefe do Poder Executivo apresentou substitutivo inserindo no art. 1º a cláusula “no valor estimado de R$ 190.000,00 (cento e noventa mil reais) por ano” e foram aprovadas emendas parlamentares (fls. 160/164, 168/174) acrescentando ao art. 2º proposto o custeio por recursos próprios das despesas de locação de imóveis para o uso do “Juiz de Direito da Vara Distrital de Ilhabela” (Emenda n. 02/2002) e “do Juiz de Direito e Promotor Público da Vara Distrital de Ilhabela” (Subemenda n. 01/2002 à Emenda n. 02/2002).
4. Padece de inconstitucionalidade a parte final do art. 2º da Lei n. 90, de 30 de janeiro de 2002, consistente na expressão “e locação de imóveis para uso dos Delegados de Polícia Civil, Comandante da Base Comunitária de Segurança e do Juiz de Direito e Promotor Público da Vara Distrital de Ilhabela”, resultante tanto do projeto original quanto das emendas parlamentares.
II – O parâmetro da fiscalização
abstrata de constitucionalidade
5. Com efeito, a parte final do art. 2º da Lei n. 90, de 30 de janeiro de 2002, do Município de Ilhabela, contraria frontalmente a Constituição do Estado de São Paulo, a qual está subordinada a produção normativa municipal por força dos seguintes preceitos, ante a previsão dos arts. 1º, 18, 29 e 31 da Constituição Federal, verbis:
“Art. 5º - São Poderes do Estado, independentes
e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.
§ 1º - É vedado a qualquer dos
Poderes delegar atribuições.
§
2º - O cidadão, investido na função de um dos Poderes, não poderá exercer a de
outro, salvo as exceções previstas nesta Constituição.
(...)
Art. 25
– Nenhum projeto de lei que implique a criação ou o aumento de despesa pública
será sancionado sem que dele conste a indicação dos recursos disponíveis,
próprios para atender aos novos recursos.
(...)
Art.
(...)
Art. 144. Os
Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se
auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na
Constituição Federal e nesta Constituição.
(...)
Art. 174. Leis de
iniciativa do Poder Executivo estabelecerão, com observância dos preceitos
correspondentes da Constituição Federal:
(...)
II – as diretrizes
orçamentárias;
III – os orçamentos anuais.
(...)
Art. 175. Os projetos de
lei relativos ao plano plurianual, às diretrizes orçamentárias, ao orçamento
anual e aos créditos adicionais, bem como suas emendas, serão apreciados pela
Assembléia Legislativa.
§ 1º. As emendas ao
projeto de lei do orçamento anual ou aos projetos que o modifiquem serão
admitidas desde que:
(...)
2 – indiquem os recursos
necessários, admitidos apenas os provenientes de anulação de despesa, excluídas
as que incidam sobre:
a) dotações para pessoal e
seus encargos;
b) serviço da dívida;
c) transferências
tributárias constitucionais para Municípios.
3 – sejam relacionadas:
a) com correção de erros ou
omissões;
b) com os dispositivos do
texto do projeto de lei.
(...)
Art. 176. São vedados:
I – o início de
programas, projetos e atividades não incluídos na lei orçamentária anual”.
6.
Corolário dos preceitos
constitucionais estaduais invocados é que as leis geradoras de despesa pública
são de iniciativa reservada ao Chefe do Poder Executivo como expressão do
princípio da separação dos poderes.
7.
A Lei n. 90/02 do
Município de Ilhabela é autêntica lei financeira, pois, disciplina a assunção
de despesa pública pelos cofres públicos.
8.
Bem por isso se evidencia
sua inconstitucionalidade na medida em que cria espécie de despesa pública –
custeio da locação de imóveis para uso de agentes públicos – não incluída na
lei orçamentária anual. É patente a violação ao inciso I do art. 176 da
Constituição Estadual.
9.
Não bastasse, a
inconstitucionalidade por outras razões. Com efeito, caracterizada tanto a
violação ao art. 25 da Constituição Estadual na concepção original do projeto
de lei quanto aos arts. 5º e 175, § 1º, 2, da Constituição Estadual, na
apresentação da emenda e da subemenda aprovadas (que incluíram as despesas de
aluguel de imóvel para uso de Magistrados e membros do Ministério Público).
10.
Com efeito, da propositura
original não consta a indicação precisa, determinada e específica da fonte de
custeio da obrigação (despesa pública) criada, requisito que não foi suprido
com a cláusula constante do art. 3º.
11.
Paralelamente, houve
extrapolação dos limites constitucionais ao poder de emenda parlamentar no
processo legislativo financeiro. A contribuição parlamentar ao projeto de lei
implicou o aumento da despesa pública esboçada pela inovação quantitativa e
qualitativa de seu objeto ao se expandir o dispêndio com a locação de imóveis
para uso de outros agentes públicos (Magistrados e membros do Ministério
Público) para além dos originariamente (Delegados de Polícia e Comandante da
Polícia Militar) concebidos no projeto de lei, sem indicação dos recursos
necessários e ausente qualquer anulação da proposta. A esse pretexto, soa
diáfana a desconformidade ao texto constitucional pela prática de conduta
absolutamente vedada no processo legislativo, pois, corolário da iniciativa
legislativa reservada é a proibição de aumento de despesa, uma vez que ao Poder
Executivo confere-se a oportunidade de criá-la e expandi-lá. Neste sentido,
profícuo o pronunciamento do Supremo Tribunal Federal:
“TRIBUNAL DE JUSTIÇA - INSTAURAÇÃO DE PROCESSO LEGISLATIVO VERSANDO A ORGANIZAÇÃO E A DIVISÃO JUDICIÁRIAS DO ESTADO - INICIATIVA DO RESPECTIVO PROJETO DE LEI SUJEITA À CLÁUSULA CONSTITUCIONAL DE RESERVA (CF, ART. 125, § 1º, ‘IN FINE’) - OFERECIMENTO E APROVAÇÃO, NO CURSO DO PROCESSO LEGISLATIVO, DE EMENDAS PARLAMENTARES - AUMENTO DA DESPESA ORIGINALMENTE PREVISTA E AUSÊNCIA DE PERTINÊNCIA - DESCARACTERIZAÇÃO DA PROPOSIÇÃO LEGISLATIVA ORIGINAL, MOTIVADA PELA AMPLIAÇÃO DO NÚMERO DE COMARCAS, VARAS E CARGOS CONSTANTES DO PROJETO INICIAL - CONFIGURAÇÃO, NA ESPÉCIE, DOS REQUISITOS PERTINENTES À PLAUSIBILIDADE JURÍDICA E AO ‘PERICULUM IN MORA’ - MEDIDA CAUTELAR DEFERIDA. - O poder de emendar projetos de lei - que se reveste de natureza eminentemente constitucional - qualifica-se como prerrogativa de ordem político-jurídica inerente ao exercício da atividade legislativa. Essa prerrogativa institucional, precisamente por não traduzir corolário do poder de iniciar o processo de formação das leis (RTJ 36/382, 385 - RTJ 37/113 - RDA 102/261), pode ser legitimamente exercida pelos membros do Legislativo, ainda que se cuide de proposições constitucionalmente sujeitas à cláusula de reserva de iniciativa (ADI 865/MA, Rel. Min. CELSO DE MELLO), desde que - respeitadas as limitações estabelecidas na Constituição da República - as emendas parlamentares (a) não importem em aumento da despesa prevista no projeto de lei, (b) guardem afinidade lógica (relação de pertinência) com a proposição original e (c) tratando-se de projetos orçamentários (CF, art. 165, I, II e III), observem as restrições fixadas no art. 166, §§ 3º e 4º da Carta Política. Doutrina. Jurisprudência. - Inobservância, no caso, pelos Deputados Estaduais, quando do oferecimento das emendas parlamentares, de tais restrições. Precedentes do Supremo Tribunal Federal. Suspensão cautelar da eficácia do diploma legislativo estadual impugnado nesta sede de fiscalização normativa abstrata” (RTJ 191/412).
12.
Não obstante esse ambiente
padece de inconstitucionalidade material a previsão de custeio de locação de
imóvel para uso de agentes públicos por ofensa direta aos princípios de
moralidade, impessoalidade, razoabilidade e interesse público, inscritos no
art. 111 da Constituição Estadual.
13.
Destoa da compreensão desses
princípios - que orientam a atividade da Administração Pública – que, sob
pretexto de colaboração com a segurança pública, o poder público municipal
disponibilize a certas categorias de agentes públicos o desfrute gratuito de
imóveis para sua moradia – já que assumirá os custos das respectivas locações -
a fim de atraí-los a uma estada mais duradoura na urbe.
14. Trata-se
da instituição de privilégio incompatível com a finalidade a qual se colima o
alcance e agressor das regras deontológicas do exercício de funções públicas.
Vivifica-se na cláusula constante do preceito legal impugnado dose de interesse
público secundário influenciada por um pendor patrimonialista. A respeito,
Maria Sylvia Zanella Di Pietro bem explica que “a imoralidade salta aos olhos quando a
Administração Pública é pródiga em despesas legais, porém inúteis, como
propaganda ou mordomia, quando a população precisa de assistência médica,
alimentação, moradia, segurança, educação” (Discricionariedade
Administrativa na Constituição de 1988, São Paulo: Atlas, 1991, p. 111,
116).
15.
Os estipêndios pagos pelos
cofres públicos aos agentes públicos compreendem montante necessário para
despesas (efêmeras ou prolongadas) próprias de habitação e moradia, sendo
injustificável que agentes prestadores de serviço público estadual – que devem
residir na urbe de suas lotações - recebam vantagem adicional do poder público
local para seu desempenho regular das funções inerentes ao cargo.
Acrescente-se, ainda, que, no caso de Magistrados e membros do Ministério
Público, os profissionais dessas carreiras são adornados por garantias e
predicados peculiares para assegurar o exercício imparcial de suas graves
funções institucionais e que, objetivamente estimado, o benefício contido na
lei local impugnada poderia colocar em risco a credibilidade e a independência
da função.
16.
Até porque, se procedentes
fossem as razões inspiradoras da instituição do benefício, elas serviriam para
justificar sua extensão para qualquer espécie de agente público, prestador de
funções na urbe, qualquer que seja a natureza, nível e esfera a que pertençam.
Em suma, não há razão lógica para a instituição da discriminação contida no
benefício.
III
– Pedido liminar
17. À
saciedade demonstrado o fumus boni iuris,
pela ponderabilidade do direito alegado, soma-se a ele o periculum in mora. A atual tessitura do preceito normativo do
Município de Ilhabela apontado como violador de princípios e regras da
Constituição do Estado de São Paulo é sinal, de per si, para suspensão de sua eficácia até final julgamento
desta ação máxime considerando seu impacto nas despesas públicas, razão pela
qual salutar a concessão da medida liminar para impedir a continuidade de
excessivo ônus financeiro ao erário.
18. À luz
deste perfil, requer a concessão de liminar para suspensão da eficácia, até
final e definitivo julgamento desta ação, da expressão “e locação de imóveis
para uso dos Delegados de Polícia Civil, Comandante da Base Comunitária de
Segurança e do Juiz de Direito e Promotor Público da Vara Distrital de
Ilhabela” constante do art. 2º da Lei n. 90, de 30 de janeiro de 1992, do
Município de Ilhabela.
IV
– Pedido
20. Face
ao exposto, requerendo o recebimento e o processamento da presente ação para
que, ao final, seja julgada procedente para declarar a inconstitucionalidade da
expressão “e locação de imóveis para uso dos Delegados de Polícia Civil,
Comandante da Base Comunitária de Segurança e do Juiz de Direito e Promotor
Público da Vara Distrital de Ilhabela” constante do art. 2º da Lei n. 90, de 30
de janeiro de 1992, do Município de Ilhabela.
21. Requer-se ainda sejam requisitadas informações à Câmara Municipal e ao Prefeito Municipal de Ilhabela, bem como posteriormente citado o Procurador-Geral do Estado para se manifestar sobre o ato normativo impugnado, protestando por nova vista, posteriormente, para manifestação final.
São Paulo, 24 de setembro de 2009.
Fernando Grella Vieira
Procurador-Geral de Justiça
wpmj
Protocolado nº 39.283/08
Interessado: Promotoria de Justiça de Ilhabela
Assunto: Inconstitucionalidade da expressão “e locação de imóveis para uso dos Delegados de Polícia Civil, Comandante da Base Comunitária de Segurança e do Juiz de Direito e Promotor Público da Vara Distrital de Ilhabela” constante do art. 2º da Lei nº 90, de 30 de janeiro de 1992, do Município de Ilhabela.
1. Distribua-se a petição inicial da ação direta de inconstitucionalidade, em face de expressão do art. 2º da Lei nº 90, de 30 de janeiro de 1992, do Município de Ilhabela, junto ao Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.
2. Oficie-se ao interessado, informando-lhe a propositura da ação, com cópia da petição inicial.
São Paulo, 24 de setembro de 2009.
Fernando Grella Vieira
Procurador-Geral de Justiça
lgl