Excelentíssimo Senhor Doutor Desembargador Presidente do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo

 

 

Protocolado n. 39.612/10

Assunto: Inconstitucionalidade da Lei n. 9.023, de 22 de dezembro de 2009, do Município de Sorocaba.

 

 

Ementa: Constitucional e Financeiro. Lei n. 9.023, de 22 de dezembro de 2009, do Município de Sorocaba. Benefício financeiro a empresas privadas. Vinculação a receita do ICMS. Princípios da não afetação e da igualdade. Inconstitucionalidade. 1. É inconstitucional lei local que outorga benefício ou incentivo financeiro, consistente na devolução de parte da receita proveniente do repasse do ICMS em razão do incremento do valor adicionado da empresa no Município, por violação ao princípio de não afetação da receita de impostos a despesa pública (art. 176, IV, CE). 2. Fórmula normativa que subordina integralmente a concessão do benefício, mercê dos demais requisitos objetivos, à apreciação subjetiva da autoridade caracteriza ofensa à igualdade na medida em que a regra é permeável a dispensa de tratamento orientado por critérios subjetivos, ocultos e pessoais (arts. 111 e 163, II, CE).  

         

          O Procurador-Geral de Justiça do Estado de São Paulo, no exercício da atribuição prevista no art. 116, VI, da Lei Complementar Estadual n. 734, de 26 de novembro de 1993 (Lei Orgânica do Ministério Público de São Paulo), em conformidade com o disposto no art.125, § 2º, e art. 129, IV, da Constituição Federal, e ainda art. 74, VI, e art. 90, III, da Constituição do Estado de São Paulo, com amparo nas informações colhidas no incluso protocolado, vem, respeitosamente, perante esse Egrégio Tribunal de Justiça, promover a presente AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE em face da Lei n. 9.023, de 22 de dezembro de 2009, do Município de Sorocaba , pelos fundamentos a seguir expostos:

I – O Ato Normativo Impugnado

1.                 A Lei n. 9.023, de 22 de dezembro de 2009, do Município de Sorocaba, dispõe sobre a criação de incentivo para instalação de empresas industriais ou comerciais, nos seguintes termos:

“Art. 1º. Fica o Poder Executivo autorizado a incentivar a instalação de empresas industriais e/ou comerciais, no município de Sorocaba, mediante devolução de parte da receita proveniente do repasse constitucional do ICMS em razão do incremento do Valor Adicionado da empresa no Município, nos termos da presente Lei.

Art. 2º. Será incentivada, nos termos desta Lei, a empresa que seja julgada de importância estratégica para o Município com relação ao desenvolvimento econômico e social e que atenda à NBR ISO 14.001, englobando todo o processo produtivo e toda a planta industrial e/ou comercial, cabendo à Secretaria de Desenvolvimento Econômico – SEDE julgar a empresa após a consulta e parecer exarado pelo Conselho Municipal de Desenvolvimento Econômico e Social – CMDES, nos termos da legislação pertinente, cuja decisão final será do Chefe do Poder Executivo.

§ 1º. Não será incentivada a empresa que apresente alto potencial poluidor, conforme classificação adotada pela legislação estadual e definida no Regulamento.

§ 2º. O incentivo de que trata esta Lei não abrange as empresas concessionárias de serviços públicos, bem como aquelas criadas a partir de cisão, incorporação, fusão ou extinção de empresas já instaladas no Município.

Art. 3º. O direito ao incentivo iniciará a partir do exercício seguinte àquele em que a empresa atinja como meta Valor Adicionado igual ou maior a R$100.000.000,00 (cem milhões de reais) acrescidos ao Valor Adicionado do Município, corrigidos anualmente por índice utilizado para a atualização dos tributos municipais.

§ 1º. Considera-se como Valor Adicionado aquele utilizado para determinação do índice de participação do município de Sorocaba no produto da arrecadação do ICMS, sendo utilizado, para efeito da verificação da ocorrência da meta fixada no artigo anterior, o critério determinado pela Secretaria da Fazenda do Estado de São Paulo, com base na relação percentual média entre o Valor Adicionado no município de Sorocaba e o valor total do Estado de São Paulo nos dois exercícios anteriores ao da apuração.

§ 2º. A empresa terá prazo máximo de 4 (quatro) anos, contados a partir do ano em que realizar seu primeiro faturamento pela unidade instalada no município de Sorocaba, para atingir a meta determinada no ‘caput’ deste artigo.

Art. 4º. O incentivo de que trata esta Lei será efetivado pela devolução, por parte do município de Sorocaba, de 33,33% (trinta e três inteiros e trinta e três centésimos, por cento) da receita proveniente do repasse constitucional do ICMS a que corresponda o Valor Adicionado da empresa beneficiária.

Parágrafo único. A equação matemática para cálculo do incentivo encontra-se no Anexo I, integrante desta Lei e será revisto na hipótese de alteração na sistemática legal de apuração e participação do Município no produto da arrecadação do ICMS.

Art. 5º. Adquirido o direito ao incentivo, a devolução, em moeda corrente nacional (Reais – R$), será realizada em parcelas mensais, no dia 20 (vinte) do mês imediatamente subseqüente àquele em que for contabilizada a receita mensal do ICMS.

Art. 6º. O incentivo será devido considerando os limites estabelecidos nesta Lei por período não superior a 144 (cento e quarenta e quatro) meses consecutivos a partir do primeiro mês de devolução.

Parágrafo único. Caso a empresa beneficiária deixe de apresentar o Valor Adicionado mínimo previsto no ‘caput’ do art. 3º, após a aquisição do direito ao incentivo, este será interrompido e só voltará a vigorar quando verificado, nos exercícios seguintes, o cumprimento da meta.

Art. 7º. O Poder Executivo e a empresa que pretenda se beneficiar do incentivo de que trata esta Lei celebrarão Termo de Incentivo, que deverá ser ratificado por Decreto, nos termos da presente Lei e conforme dispuser Regulamento.

Art. 8º. Decreto do Poder Executivo regulamentará a presente Lei, no que couber.

Art. 9º. As despesas com a execução da presente correrão por conta de dotação orçamentária própria.

Art. 10. Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação”.

2.                 A lei local possibilita a outorga às empresas privadas de incentivo ou benefício financeiro decorrente da parcela do ICMS repassada ao Município de Sorocaba, consistente na devolução de33% (trinta e três por cento) do incremento do valor adicionado gerado pela empresa no Município. Apesar de a lei estabelecer certos requisitos para sua concessão (melhoria de arrecadação e alcance de meta consubstanciada em valor mínimo para esse fim; proibição a empresas poluidoras ou resultantes de cisão, incorporação, fusão ou extinção de empresas já instaladas em seu território; adequação a normas e padrões de qualidade etc.), o incentivo depende, ainda, que “a empresa seja julgada de importância estratégica para o Município com relação ao desenvolvimento econômico e social” de acordo com consulta e parecer dos órgãos públicos e decisão do Chefe do Poder Executivo.

3.                 Não se trata de benefício fiscal, mas, de benefício financeiro porque pressupõem a extinção do crédito tributário e o ingresso de receita nos cofres públicos que, entretanto, padece de inconstitucionalidade, como será adiante demonstrado.

II – O parâmetro da fiscalização abstrata de constitucionalidade

4.                 A Lei n. 9.023, de 22 de dezembro de 2009, do Município de Sorocaba, contraria frontalmente a Constituição do Estado de São Paulo, a qual está subordinada a produção normativa municipal por força dos seguintes preceitos (ante a previsão dos arts. 1º, 18, 29 e 31 da Constituição Federal):

“Art. 144. Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.

(...)

Art. 297. São também aplicáveis no Estado, no que couber, os artigos das Emendas à Constituição Federal que não integram o corpo do texto constitucional, bem como as alterações efetuadas no texto da Constituição Federal que causem implicações no âmbito estadual, ainda que não contempladas expressamente pela Constituição do Estado”.

5.                 Na espécie, a incompatibilidade vertical da lei local com a Constituição do Estado de São Paulo se manifesta pelo contraste direto com a seguinte disposição constitucional estadual:

“Art. 111. A administração pública direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes do Estado, obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, razoabilidade, finalidade, motivação, interesse público e eficiência.

(...)

Art. 163. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado ao Estado:

(...)

II - instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente, proibida qualquer distinção em razão de ocupação profissional ou função por eles exercida, independentemente da denominação jurídica dos rendimentos, títulos ou direitos.

(...)

Art. 176. São vedados:

(...)

IV - a vinculação de receita de impostos a órgão, fundo ou despesa, ressalvadas as permissões previstas no artigo 167, IV, da Constituição Federal e a destinação de recursos para a pesquisa científica e tecnológica, conforme dispõe o artigo 218, § 5º, da Constituição Federal”.

6.                 O art. 176, IV, da Constituição Estadual, reverbera o princípio constitucional da não afetação de receita de impostos a órgão, fundo ou despesa, constante do art. 167, IV, da Constituição Federal, verbis:

Art. 167. São vedados:

(...)

IV - a vinculação de receita de impostos a órgão, fundo ou despesa, ressalvadas a repartição do produto da arrecadação dos impostos a que se referem os arts. 158 e 159, a destinação de recursos para as ações e serviços públicos de saúde, para manutenção e desenvolvimento do ensino e para realização de atividades da administração tributária, como determinado, respectivamente, pelos arts. 198, § 2º, 212 e 37, XXII, e a prestação de garantias às operações de crédito por antecipação de receita, previstas no art. 165, § 8º, bem como o disposto no § 4º deste artigo;

(...)

§ 4º. É permitida a vinculação de receitas próprias geradas pelos impostos a que se referem os arts. 155 e 156, e dos recursos de que tratam os arts. 157, 158 e 159, I, a e b, e II, para a prestação de garantia ou contragarantia à União e para pagamento de débitos para com esta”.

7.                 O princípio da não afetação da receita de impostos a órgão, fundo ou despesa, denota a característica não vinculada dessa espécie tributária (Kiyoshi Harada. Direito Financeiro e Tributário, São Paulo: Atlas, 1998, 4ª ed., p. 74) e significa que “não pode haver mutilação das verbas públicas. O Estado deve ter disponibilidade da massa de dinheiro arrecadado, destinando-o a quem quiser, dentro dos parâmetros que ele próprio elege como objetivos preferenciais” (Régis Fernandes de Oliveira. Curso de Direito Financeiro, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 328).

8.                 Com efeito, o princípio da não-afetação se justifica “na medida em reserva ao orçamento e à própria Administração, em sua atividade discricionária na execução da despesa pública, espaço para determinar os gastos com os investimentos e as políticas sociais” (Ricardo Lobo Torres. Tratado de Direito Constitucional, Financeiro e Tributário, Rio de Janeiro: Renovar, 2000, 2ª ed., vol. V, p. 275) e “em virtude da generalidade e da impessoalidade que haverão de presidir a elaboração e a execução do orçamento, em obséquio, inclusive, ao postulado de igualdade, que não poderia tolerar privilégios na destinação dos recursos públicos, que pertencem a toda a coletividade e não a um grupo de suseranos” (Eduardo Marcial Ferreira Jardim. Manual de Direito Financeiro e Tributário, São Paulo: Saraiva, 1994, 2ª ed., p. 25).

9.                 Pois, no domínio da atividade financeira a Administração Pública tem a prerrogativa de estabelecimento de metas e prioridades e os recursos oriundos dos impostos se destinam, via de regra, ao atendimento das necessidades gerais, porque “o propósito do princípio é evitar a edição de leis que, vinculando receita proveniente de impostos, prejudiquem o custeio de despesas genéricas pelo orçamento” (Luiz Alberto David Araújo e Vidal Serrano Nunes Júnior. Curso de Direito Constitucional, São Paulo: Saraiva, 1999, 3ª ed., p. 348), assegurando “que os recursos sejam livres e à disposição para a realização de obras e serviços, em conformidade com as necessidades existentes e em obediência à escala de prioridades estabelecida a partir de análise rigorosa da situação existente” (José Afonso da Silva. Comentário contextual à Constituição, São Paulo: Malheiros, 2006, 2ª ed., p. 697).

9.                 No entanto, a norma paradigma do inciso IV do art. 176 da Constituição Paulista oferece exceções. No que interessa, ela remete àquelas expressas no art. 167, IV, da Constituição Federal, e, ainda, por interpretação sistemática alberga as demais constantes da Constituição Federal (v.g.: arts. 100, § 15, 165, § 8º, 167, § 4º, 204, parágrafo único, art. 216, § 6º, Constituição Federal). De qualquer maneira, as exceções configuraram direito estrito, merecendo interpretação restritiva e refutando ampliações de seu alcance e de seu sentido, e, ademais, só podem figurar na própria Constituição.

10.               Com efeito, “as exceções estão especificadas, tratando-se dos fundos aludidos nos arts. 158 e 159 e também dos recursos de educação e saúde. Ainda é exceção a prestação de garantia às operações de crédito por antecipação de receita e pagamento de crédito da União” (Régis Fernandes de Oliveira. Curso de Direito Financeiro, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 328).

11.               Nem se alegue repousar a lei local na primeira exceção (“a repartição do produto da arrecadação dos impostos a que se referem os arts. 158 e 159”).

12.               A Constituição Federal consagra, a latere da discriminação das competências tributárias, a repartição das receitas tributárias nos arts. 157 a 159 que compreende três modalidades: a) participação direta dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios no produto da arrecadação de imposto de competência da União (arts. 157, I e 158, I); b) participação no produto de impostos de receita partilhada (arts. 157, II, e 158, II a IV); c) participação em fundos (art. 159). Articula-se a partir dessa concepção que “nas duas primeiras modalidades (...), as receitas pertencem às entidades aí contempladas nos exatos limites da determinação constitucional (...) Nas hipóteses dos arts. 157, I, e art. 158, I, as entidades beneficiadas apropriam-se diretamente das verbas que lhe pertencem. Nas demais hipóteses, as entidades políticas tributantes devolvem o quantum respectivo às entidades beneficiadas porque a elas pertence de direito, e pode ser exigido judicialmente. Na terceira modalidade, participação nos fundos, regulada pelo art. 159, a entidade beneficiada tem uma expectativa de receber o quantum que lhe cabe, segundo os critérios aí estabelecidos” (Kiyoshi Harada. Direito Financeiro e Tributário, São Paulo: Atlas, 1998, 4ª ed., pp. 55-58).

13.               Ou, em outras palavras, a repartição de receitas tributárias expressa a “participação sobre a arrecadação de impostos alheios” como “principal mecanismo de transferências financeiras intergovernamentais” que podem ser constitucionais (art. 159), legais (Lei Complementar n. 87/96) ou voluntárias (art. 25, Lei Complementar n. 101/00), “diretas (entregues diretamente aos entes menores ou por eles apropriadas mediante mera transferência orçamentária) ou indiretas (realizadas através de fundos de participação ou de destinação, disciplinados no art. 159 da Constituição Federal de 1988)” (Flávio Rubinstein, in Orçamentos Públicos, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 53, coordenação José Maurício Conti).

14.               De maneira mais contundente, explica-se que a Administração Pública “fica também proibida de proceder à vinculação de receita de impostos a órgão, fundo ou despesa, salvo, é lógico, a própria repartição do produto da arrecadação dos impostos” (Celso Ribeiro Bastos. Curso de Direito Financeiro e de Direito Tributário, São Paulo: Saraiva, 1992, 2ª ed., p. 79).

15.               Assim exposto, a interpretação constitucional revela que para a entidade dotada de competência tributária a destinação de parcela da receita oriunda de seus impostos é vinculada às entidades beneficiadas com a participação na arrecadação, e não que a titularidade ou o ingresso da receita daí partilhada na entidade beneficiada possa ser por ela vinculada, salvo aquela oriunda dos arts. 198, § 2º, e 212, da Constituição Federal e para os fins ali indicados. Ademais, ressalta a adequada exegese constitucional que em se tratando de receita resultante da arrecadação e participação no ICMS a sua afetação (ou vinculação) só é admitida nas hipóteses constitucionalmente previstas.

16.               Ora, como a regra é a não afetação da receita de impostos, não há espaço tampouco para argüição de sua inaplicabilidade em razão de a receita repassada ao Município por conta de repasse de parcela do ICMS não se referir a tributo da competência tributária municipal. Para o efeito do alcance do princípio da não afetação é irrelevante se a receita é oriunda de imposto de competência própria ou alheia (isto é, resultante da participação). Note-se, a propósito, que a fórmula constitucional expressiva da regra da não afetação não menciona “vinculação de impostos”, mas, e com maior dimensão, “vinculação da receita de impostos”, o que abrange, destarte, a arrecadação tributária própria ou partilhada.

17.               De fato, o dado relevante é a consideração do ingresso decorrente da participação no produto de impostos de outro ente tributante (transferência corrente) é como receita pública derivada de natureza tributária, pois, obtida a partir de obrigação legal que grava o patrimônio particular e transfere suas riquezas ao Estado – perfeitamente amoldada ao conceito de tributo constante do art. 3º do Código Tributário Nacional.

18.                A vantagem prevista na lei local é um benefício ou incentivo financeiro. O erário municipal recebe parcela da arrecadação de imposto alheio e o concede um percentual ao particular, gerando dispêndio público, pois, o benefício é egresso do erário municipal. Consoante elucida a literatura especializada, a partir da arrecadação, “quando o dinheiro entra nos cofres públicos, ele fica sujeito às regras do Direito Financeiro” (Celso Ribeiro Bastos. Curso de Direito Financeiro e de Direito Tributário, São Paulo: Saraiva, 1992, 2ª ed., p. 136), o que compreende as regras da repartição de receitas tributárias. Registre-se que, como acentua a doutrina, a diferença entre privilégios fiscais e financeiros é apenas jurídico-formal, pois, “tanto faz diminuir-se a receita, pela isenção ou dedução, como aumentar-se a despesa, pela restituição ou subvenção, que a mesma conseqüência financeira será obtida” (Ricardo Lobo Torres. Tratado de Direito Constitucional, Financeiro e Tributário, Rio de Janeiro: Renovar, 2000, 2ª ed., vol. V, p. 259).

19.               O benefício financeiro em foco pode ser encarado, para o Município de Sorocaba, como subvenção econômica, espécie de transferência corrente (arts. 12, §§ 2º e 3º, II, Lei n. 4.320/64), na medida em que se refere ao fomento de atividades econômicas. É, de qualquer maneira, um incentivo financeiro da espécie denominada de restituição de tributo a título de incentivo, assim explicado: “a importância restituída já não é tributo, categoria exclusiva de receita, mas um prestação de direito público idêntica a qualquer outra obrigação do Estado. Não se confunde com a obrigação tributária, por ser exatamente o inverso desta, aparecendo como obrigação financeira criada por lei. (...) No conceito de subvenção, que é indeterminado e multissignificativo, pode se subsumir, pelas semelhanças que com ela guarda, o de restituição-incentivo, isto é, a devolução de tributo como mecanismo de estímulo fiscal”, inegável renúncia de receita (Ricardo Lobo Torres. Tratado de Direito Constitucional, Financeiro e Tributário, Rio de Janeiro: Renovar, 2000, 2ª ed., vol. V, pp. 267-268, 334-335).

20.               De qualquer modo, sendo resultante de receita tributária de impostos soa inadmissível sua vinculação a despesa específica e determinada que não se compreende no âmbito das exceções previstas no inciso IV do art. 176 da Constituição Federal.

21.                 Em hipótese bem semelhante, assim decidiu o Supremo Tribunal Federal:

“LEI ESTADUAL QUE DETERMINA QUE OS MUNICÍPIOS DEVERÃO APLICAR, DIRETAMENTE, NAS ÁREAS INDÍGENAS LOCALIZADAS EM SEUS RESPECTIVOS TERRITÓRIOS, PARCELA (50%) DO ICMS A ELES DISTRIBUÍDA - TRANSGRESSÃO À CLÁUSULA CONSTITUCIONAL DA NÃO-AFETAÇÃO DA RECEITA ORIUNDA DE IMPOSTOS (CF, ART. 167, IV) E AO POSTULADO DA AUTONOMIA MUNICIPAL (CF, ART. 30, III) - VEDAÇÃO CONSTITUCIONAL QUE IMPEDE, RESSALVADAS AS EXCEÇÕES PREVISTAS NA PRÓPRIA CONSTITUIÇÃO, A VINCULAÇÃO, A ÓRGÃO, FUNDO OU DESPESA, DO PRODUTO DA ARRECADAÇÃO DE IMPOSTOS - INVIABILIDADE DE O ESTADO-MEMBRO IMPOR, AO MUNICÍPIO, A DESTINAÇÃO DE RECURSOS E RENDAS QUE A ESTE PERTENCEM POR DIREITO PRÓPRIO - INGERÊNCIA ESTADUAL INDEVIDA EM TEMA DE EXCLUSIVO INTERESSE DO MUNICÍPIO - DOUTRINA - PRECEDENTES - PLAUSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO - CONFIGURAÇÃO DO ‘PERICULUM IN MORA’ - MEDIDA CAUTELAR DEFERIDA” (STF, ADI-MC 2.355-PR, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, 19-06-2002, m.v., DJe 28-06-2007).

22.               Nesse julgamento, o eminente Relator, Ministro Celso de Mello, assentou premissas eloqüentes integralmente ajustadas à espécie:

“O exame do diploma legislativo estadual em causa parece evidenciar que a hipótese de afetação da receita oriunda da arrecadação de imposto (ICMS), nele prevista, não se subsume ao rol taxativo, que, em numerus clausus, encontra fundamento no art. 167, IV, da Constituição da República, expondo-se, em conseqüência, tal vinculação – porque instituída com inobservância do modelo federal – à censura do próprio magistério jurisprudencial firmado, no tema, pelo Supremo Tribunal Federal, quer sob a égide da Carta Política anterior (RTJ 120/997, Rel. Min. OCTAVIO GALLOTTI – RTJ 127/56, Rel. Min. OCTAVIO GALLOTTI – RE 100.435-SP, Rel. Min. SOARES MUÑOZ), quer em face da vigente Lei Fundamental (RDA 185/148, Rel. Min. MARCO AURÉLIO – RDA 192/174, Rel. Min. CARLOS VELLOSO)”. 

23.               Não obstante a força e o vigor da ofensa ao art. 176, IV, da Constituição Estadual, manifesta também a inconstitucionalidade da lei local por seu divórcio com os art. 111 e 163, II, da Constituição Estadual.

24.               Tais preceitos amparam o princípio da impessoalidade (art. 111) e o princípio especial da isonomia tributária (art. 163, II), reproduzindo as normas dos arts. 37 e 150, II, da Constituição Federal.

25.               Em maior ou menor escala, tais princípios manifestam a noção – basilar ao regime republicana – de igualdade, vedando a outorga de tratamentos discriminatórios desarrazoados. É inadmissível a dispensa, na lei ou na sua execução, de tratamento desigualitário entre pessoas, e, em especial, contribuintes, “que se encontrem em situação equivalente”. A vedação de ofensa à isonomia implica duas espécies de proibições: privilégios odiosos e discriminação fiscal. E abrange qualquer instrumento fiscal, tanto na receita, quanto na despesa, de forma negativa ou positiva, como incentivos, subvenções, subsídios e restituições de tributos (Ricardo Lobo Torres. Tratado de Direito Constitucional, Financeiro e Tributário, Rio de Janeiro: Renovar, 2000, 2ª ed., vol. V, pp. 167-168).

26.               Não se predispõe à afirmação de que a criação do benefício financeiro previsto na lei local seja, de per si, violador da isonomia. O que se evidencia, claramente, do texto legal é a abertura de potente válvula a tratamentos discriminatórios em seu art. 2º.

27.               É que apesar de a lei estabelecer certos requisitos para sua concessão (melhoria de arrecadação e alcance de meta consubstanciada em valor mínimo para esse fim; proibição a empresas poluidoras ou resultantes de cisão, incorporação, fusão ou extinção de empresas já instaladas em seu território; adequação a normas e padrões de qualidade etc.), o incentivo depende, ainda, que “a empresa seja julgada de importância estratégica para o Município com relação ao desenvolvimento econômico e social” de acordo com consulta e parecer dos órgãos públicos e decisão do Chefe do Poder Executivo, conforme reza o art. 2º da lei local.

28.               É justamente nessa fórmula normativa – que subordina integralmente a concessão do benefício, mercê dos demais requisitos objetivos – que se radica a ofensa à igualdade na medida em que a regra é permeável a dispensa de tratamento orientado por critérios subjetivos, ocultos e pessoais.

29.               Totalmente pertinente a invocação do magistério a admoestar que a restituição de tributo “por beneficiar o contribuinte, enquadra-se na proibição do art. 150, II, da CF 88, quando odiosa” (Ricardo Lobo Torres. Tratado de Direito Constitucional, Financeiro e Tributário, Rio de Janeiro: Renovar, 2000, 2ª ed., vol. V, p. 268).

30.               Destarte, proporcionando a regra jurídica enfocada tratamento desigual entre contribuintes com idêntica, similar ou equivalente situação jurídica, implica ofensa ao conteúdo jurídica da igualdade prestigiada nos arts. 111 e 163, II, da Constituição Estadual. 31.            Por estas razões, deve ser declarada a inconstitucionalidade.

III – Pedido liminar

32.               À saciedade demonstrado o fumus boni iuris, pela ponderabilidade do direito alegado, soma-se a ele o periculum in mora. A atual tessitura da norma impugnada, apontada como violadora de princípios e regras da Constituição do Estado de São Paulo é sinal, de per si, para suspensão de sua eficácia até final julgamento desta ação porque permite dispêndio público de maneira ilegítima, periclitando as forças do erário com a potencialidade real e concreta de danos irreversíveis ou de difícil reparação.

33.               À luz deste perfil, requer-se a concessão de liminar para suspensão da eficácia, até final e definitivo julgamento desta ação, da Lei n. 9.023, de 22 de dezembro de 2009, do Município de Sorocaba.

IV - Pedido

34.               Face ao exposto, requer o recebimento e processamento da presente ação que deverá ser julgada procedente para declaração da inconstitucionalidade da Lei n. 9.023, de 22 de dezembro de 2009, do Município de Sorocaba, à vista da ofensa aos arts. 111, 163, II, e 176, IV, da Constituição Estadual.

35.               Requer-se, ainda, sejam requisitadas informações à Câmara Municipal e ao Prefeito Municipal de Sorocaba, bem como posteriormente citado o Procurador-Geral do Estado para se manifestar sobre os atos normativos impugnados, protestando por nova vista, posteriormente, para manifestação final.

                    Termos em que, pede deferimento.

São Paulo, 01 de junho de 2010.

 

 

Fernando Grella Vieira

Procurador-Geral de Justiça

       

 

 

 

                

 

 

 

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