EXCELENTÍSSIMO SENHOR DESEMBARGADOR PRESIDENTE DO E. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

 

Protocolado nº 41.564/09

Assunto: Inconstitucionalidade do art.3º, da Lei nº 3.268, de 17 de abril de 1997, do Município de Catanduva.

 

Ementa: Alienação de imóvel pela Prefeitura.   Autorização por lei genérica.   Ausência de legislação específica para cada imóvel.   Delegação de atribuição.  Inconstitucionalidade configurada.

 

        

 

 

O Procurador-Geral de Justiça do Estado de São Paulo, no exercício da atribuição prevista no art. 116, inciso VI da Lei Complementar Estadual nº 734, de 26 de novembro de 1993 (Lei Orgânica do Ministério Público de São Paulo), em conformidade com o disposto no art.125, § 2º e art. 129, inciso IV da Constituição Federal, e ainda art. 74, inciso VI e art. 90, inciso III da Constituição do Estado de São Paulo, com amparo nas informações colhidas no incluso protocolado, vem, respeitosamente, perante esse Egrégio Tribunal de Justiça, promover a presente AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE do art.3º, da Lei nº  3.268, de 17 de abril de 1997, do Município de Catanduva, pelos fundamentos a seguir expostos.

DO ATO NORMATIVO IMPUGNADO.

A Lei nº 3.268, de 17 de abril de 1997, do Município de Catanduva, assim dispõe:

“Art. 3º: Fica o Prefeito, através do Projeto para Desenvolvimento Industrial de Catanduva, autorizado a adquirir e alienar áreas de terra necessárias à implantação de empresas industriais, comerciais, prestadoras de serviços e de base tecnológica, bem como executar benfeitorias, acessões, serviços, incentivos e instalações especiais, nos respectivos imóveis.

Parágrafo único: Os benefícios supra-citados poderão ser efetuados diretamente pelo Poder Público ou delegados a terceiros, mediante licitação”.

Referido preceptivo legal é verticalmente incompatível com a Constituição do Estado de São Paulo; houve afronta aos artigos 5º, §1º, 19, inc. IV e 144 da Constituição bandeirante, com as seguintes disposições:

“Art. 5º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

§ 1º- É vedado a qualquer dos Poderes delegar atribuições.

§ 2º- O cidadão, investido na função de um dos Poderes, não poderá exercer a de outro, salvo as exceções previstas nesta Constituição.

'Art. 19 - Compete á Assembléia Legislativa, com a sanção do Governador, dispor sobre todas as matérias de competência do Estado, ressalvadas as especificadas no art.20, e especialmente sobre:

IV - autorização para a alienação de bens imóveis do Estado ou a cessão de direitos reais a eles relativos, bem como o recebimento, pelo Estado, de doações com encargo, não se considerando como tal a simples destinação específica do bem;

Art. 144 - Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto organizarão por Lei Orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.”

A Câmara Municipal delegou inconstitucionalmente (Art. 5.º, § 1º da Constituição do Estado - 'É vedado a qualquer dos Poderes delegar atribuições') ao Executivo  a tarefa de alienar áreas de terra do Município, para implantação de empresas industriais, comerciais, prestadoras de serviço e de base tecnológica!  A delegação havida não se pode admitir e implica em delegar todo o desenvolvimento da urbe para um só órgão, unipessoal, o Executivo, malferindo o art. 5.º da Constituição do Estado de São Paulo.   Como  diz  J. J. Gomes Canotilho:

"Acontece, não raras vezes, que a lei 'reenvia ou remete'  para decreto-lei, decretos, resoluções, portarias etc,  a concretização   ou especificação dos pormenores da sua concretização e aplicação ("através de regulamentos regulará a presente lei"). As remissões da lei para outros instrumentos legais, regulamentares ou até meramente administrativos, suscita problemas de conformidade constitucional com os princípios democrático e de Estado de direito. Quando o ato da remissão tem a mesma hierarquia e emana da mesma entidade, a remissão dinâmica não levanta problemas de maior. Ela já levanta problemas constitucionais quando, por exemplo, uma lei remete para regulamentos ou atos pararegulamentares. Neste caso, a administração pode arrogar-se um poder paraconstitucional e apócrifo, convertendo-se o destinatário da remissão em sujeito da remissão. Perante o perigo desta inversão de competências, com violação do princípio democrático e do princípio do Estado de direito, há que salientar:

(l) uma remissão não pode ser feita em condições mais benévolas do que aquelas que vigoram para as próprias autorizações legislativas (...) a remissão não pode permitir a definição das relações entre o Estado e os cidadãos através de regulamentos e, muito menos, através de actos “pararegulamentares” (comandos administrativos, instruções, circulares, despachos interprerativos) administrativos transformando estes em fontes de normação primária;

(3) a remissão para actos pararegulamentares ou comandos administrativos só pode ter efeitos meramente internos". ('Direito  Constitucional e Teoria da Constituição', p. 716, Almedina, Coimbra, 4.ª ed.).

O princípio da reserva de lei, consoante adverte  JORGE MIRANDA  ("Manual de Direito Constitucional", tomoV/217-220, item n. 62, 2a ed., 2000, Coimbra Editora) - traduz postulado revestido de função excludente, de caráter negativo (que veda, nas matérias a ela sujeitas, como sucede no caso ora em exame, quaisquer intervenções, a título primário, de órgãos estatais não-legislativos), e cuja incidência também reforça, positivamente, o princípio que impõe, à administração e à jurisdição, a necessária submissão aos comandos fundados em norma legal, de tal modo que, conforme acentua o ilustre Professor da Universidade de Lisboa, "quaisquer intervenções  - tenham conteúdo normativo ou não normativo - de órgãos administrativos ou jurisdicionais só podem dar-se a título secundário, derivado ou executivo, nunca com critérios próprios ou autônomos de decisão".

E este E. Tribunal de Justiça já decidiu, no célebre caso das 'Operações Interligadas' (ADin n.º 045.352.0/5-00, que:

Ação Direta de Inconstitucionalidade. Carência de ação afastada - Viabilidade do controle de constitucionalidade de lei municipal em face da Constituição Estadual que repete comando da Carta Republicana - Lei n° 11.773/95, do Município de São Paulo - "Operações Interligadas" - Possibilidade de modificação de índices urbanísticos e características de uso e ocupação do solo, mediante aprovação pelo Poder Executivo, em detrimento das normas insertas nos artigos 5°, § 1°, e 181, "capu", da Constituição do Estado de São Paulo -  Inconstitucional a delegação de poder em matéria de reserva legal - A Constituição Bandeirante estabeleceu reserva legal acerca do tema de direito urbanístico (artigo 181, "caput"), o que torna     defeso o cometimento de regramento individual de índices urbanísticos de uso e ocupação do solo ao Poder Executivo,  que  não  pode  legislar  por   ato administrativo,  pena  de  subtrair  competência constitucional do Poder Legislativo.     Preliminar afastada - Inconstitucionalidade declarada.

Lembra o saudoso mestre Hely Lopes Meirelles que:

Alienação é toda transferência de propriedade, remunerada ou gratuita, sob forma de venda, doação, dação em pagamento, permuta, investidura, legitimação de posse ou concessão de domínio.   Qualquer dessas formas de alienação pode ser usada pelo Município, desde que satisfaça as exigências administrativas para o contrato alienador e atenda aos requisitos específicos do instituto utilizado.    Em princípio toda alienação de bem público depende de lei autorizadora, de licitação (Lei 8.666, de 1993, art.17, I-II) e de avaliação da coisa a ser alienada;”  (Direito Municipal Brasileiro, 16ª edição, Malheiros Editores, 2008, pág.326) original sem grifo e saliência

E essa atividade deve ser exercida pelo Legislativo, individualmente para cada área a ser alienada, sob pena de se configurar a indesejável delegação de atribuição.

Registre-se que o Estado Democrático de Direito impõe a repartição do poder e a fuga ao poder monolítico e absoluto.  Não convém olvidar que, segundo uma tradição célebre, um notável liberal inglês do século XIX, Lord Acton, afirmou: "Todo o poder tende a corromper, e o poder absoluto corrompe absolutamente". [1]

Montesquieu afirmara, lembre-se, ser experiência eterna que aquele que detém o poder é levado a dele abusar, e é preciso que encontre limites. O poder absoluto é uma ameaça aos súditos.[2]

 CONCLUSÃO E PEDIDO.

Por todo o exposto, evidencia-se a necessidade de reconhecimento da inconstitucionalidade da norma aqui apontada.

Assim, aguarda-se o recebimento e processamento da presente Ação Declaratória, para que ao final seja julgada procedente, reconhecendo-se a inconstitucionalidade do art.3º, da Lei nº 3.268, de 17 de abril de 1997, do Município de Catanduva.

Requer-se ainda sejam requisitadas informações à Câmara Municipal e ao Prefeito Municipal, bem como posteriormente citado o Procurador-Geral do Estado para se manifestar sobre o ato normativo impugnado.

Posteriormente, aguarda-se vista para fins de manifestação final.

São Paulo, 7 de julho de 2009.

 

                        Fernando Grella Vieira

                        Procurador-Geral de Justiça

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Protocolado nº 41.564/09

Interessado:  Procuradoria-Geral de Justiça

Assunto: Inconstitucionalidade do art.3º, da Lei nº 3.268, de 17 de abril de 1997, do Município de Catanduva.

 

 

 

 

 

 

 

1.     Distribua-se a petição inicial da ação direta de inconstitucionalidade, em face do art.3º, da Lei nº 3.268, de 17 de abril de 1997, do Município de Catanduva, junto ao Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

2.     Oficie-se ao interessado, informando-lhe a propositura da ação, com cópia da petição inicial.

 

 

                   São Paulo, 7 de julho de 2009.

 

 

 

 

Fernando Grella Vieira

Procurador-Geral de Justiça

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[1] Karl Deutsch, Política e governo, UnB, 2.ª ed., p. 226.

[2] Como expõe Maurice Duverger, 'in' Droit Constitutionnel et des Institutions Politiques, p. 198 e ss.: "A idéia mesma de uma limitação dos governantes é relativamente moderna. Na Antigüidade, mesmo grega ou romana, a comunidade, o grupo, a 'cidade', estava em lugar primeiro em relação ao indivíduo. A confusão  do poder político e do poder religioso destruiu toda a idéia de limitar as prerrogativas dos governantes, investidos de um caráter clerical.  É do cristianismo, como fundo, a idéia de limitar os governantes.  Em primeiro lugar, porque sua concepção mesma do Homem, imagem refletida da Divindade,  conduziu a dar ao indivíduo preeminência  sobre o grupo. Em seguida, porque a existência da Igreja Católica absolutizou a separação do poder  político e do poder religioso. Quando se formaram os Estados modernos, independentes do poder papal, a Igreja esforçou-se por limitar as prerrogativas dos governantes, em nome da religião e da moral,  das quais ela se proclamava  a intérprete. Os teólogos da Idade Média desenvolveram a idéia das «leis injustas» e forjaram a teoria da resistência à opressão, primeira expressão de uma doutrina coerente com a limitação dos governantes."